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O (amplo) espaço deixado pelo positivismo jurídico contemporâneo

4 CONDIÇÕES, POSSIBILIDADES E LIMITES DAS INTERAÇÕES JUDICIAIS TRANSNACIONAIS EM MATÉRIA CONSTITUCIONAL

4.2 A PERGUNTA POR RACIONALIDADE E CONTROLE DA DECISÃO JUDICIAL

4.2.1 O (amplo) espaço deixado pelo positivismo jurídico contemporâneo

Parece inegável constatar que o positivismo jurídico foi a mais influente e disseminada teoria do direito do século XX. Foi ele o movimento teórico que, até então, melhor desenvolveu o estatuto autônomo do direito enquanto ciência. É ele, também, a que mais se dirigem as críticas contemporâneas385. Apesar desta importância, o positivismo jurídico contemporâneo não apresentou uma teoria apta a controlar a decisão judicial. Pelos

384 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Traduzido por Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995, p. 67 e 80.

385 Cf. DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução à teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006; BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico

limites deste trabalho, esta hipótese será demonstrada recorrendo a dois dos principais autores positivistas do século XX: Hans Kelsen e Herbert Hart.

A questão da decisão judicial no pensamento de Kelsen pode ser encarada em duas frentes: como ato criativo de derivação normativa no contexto da dinâmica jurídica e, no contexto da interpretação, como ato de vontade discricionário. Para uma compreensão adequada da temática que este estudo propõe é essencial relacionar ambas as frentes.

No modelo kelseniano, a unidade e a validade de uma ordem jurídica decorrem da produção de normas jurídicas em conformidade com outras normas jurídicas e, em última instância, pelo respeito à norma fundamental. Normas superiores fundamentam e determinam a forma de produção de normas inferiores. Há uma relação de “supra-infra-ordenação”386 entre elas. O sistema jurídico é um sistema hierarquizado e não um sistema no qual as normas estão dispostas uma ao lado da outra. A decisão judicial não foge a esta construção.

Todo ato de produção normativa é, ao mesmo tempo, aplicação e criação de uma norma. É aplicação porque a produção de uma norma precisa respeitar uma norma superior. É criação porque se trata de uma norma nova, que, embora tenha seu processo e, por vezes, conteúdo, regulado, não se confunde com a norma superior. Ambas as operações, contudo, não se confundem com a observância do Direito. Esta é “apenas” a adequação da conduta humana à norma oposta à norma que enseja a sanção. Kelsen concede importância secundária à observância do Direito, afirmando que apenas a aplicação e a criação são funções jurídicas em sentido estrito387.

Para Kelsen, a atividade judicial é uma atividade de produção de uma norma individual. Sendo assim, é, ao mesmo tempo, aplicação de uma norma superior que determina o processo e o conteúdo da norma judicial e criação de uma norma nova. Neste processo, o julgador deve averiguar se estão presentes as questões de fato que ensejam a aplicação da norma, bem como se a norma em questão é vigente e constitucional, ou seja, respeita o seu processo de aplicação/criação determinado pela constituição388.

Diferentemente da concepção clássica (positivismo primitivo), Kelsen afirma que a decisão judicial não é um ato meramente declaratório no qual o julgador “descobre” o Direito em questão. O procedimento descrito acima é um procedimento constitutivo. Este processo de construção é de exclusividade do órgão judicial estabelecido pelas normas gerais. As opiniões, inclusive das partes, sobre a atuação do julgador são totalmente irrelevantes para a

386 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7.ed. Traduzido por João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 247.

387 Ibid., p. 260-263. 388 Ibid., p. 263-264.

constituição da sentença. Apenas a opinião do juiz é relevante para a decisão. Evidentemente esta decisão pode ser questionada em grau de recurso, mas, no fim, será um tribunal que determinará a eventual sanção ou não, sendo juridicamente irrelevante se o fato que lhe deu ensejo “realmente” aconteceu389.

Kelsen admite a possibilidade de um sistema jurídico conferir ao órgão julgador a competência de, além de decidir em conformidade com a norma superior, decidir com base em uma norma criada por ele mesmo. Em ambos os casos continua havendo uma norma individual e não geral. A diferença será de grau de limitação. No primeiro caso, a limitação será baixíssima. Contudo, mesmo no segundo caso (quando há uma norma superior) o autor entende que há um espaço considerável de livre apreciação por parte do julgador para produção da norma individual. A norma jurídica geral é sempre uma moldura esperando preenchimento por parte do órgão julgador390.

Completando a sua posição sobre a atuação judicial, Kelsen vai tentar resolver a questão da “ilegalidade da sentença”. É faticamente possível que uma sentença seja incompatível com a norma superior que lhe daria validade. Para o autor, contudo, uma norma contrária a normas é uma contradição de termos. Não pode haver uma norma nula, pois, sendo nula, ela seria inválida e, por isso, inexistente. A contrariedade de uma sentença em relação à norma superior quer dizer, simplesmente, que esta norma individual pode vir a ser anulada por um órgão judicial superior.

Entretanto, sempre existe a possibilidade de esta norma individual não ser anulada ou ser confirmada por um tribunal de última instância. Desta constatação, Kelsen retira duas conclusões: um tribunal de última instância sempre recebe do sistema a possibilidade de decidir conforme ou desconforme a ordem jurídica; ao mesmo tempo, como as decisões de juízes podem não vir a ser alvo de recursos, o autor entende que todo e qualquer julgador também recebe a mesma competência: decidir conforme ou não conforme o ordenamento391.

Esta ampla possibilidade que Kelsen confere aos órgãos julgadores abre por demais o sistema jurídico. Este fato só é agravado com a posição que o autor assume em relação à interpretação jurídica.

Para o autor a aplicação/criação de uma norma individual sempre passará por um processo mental de análise da norma superior. Este processo é chamado de interpretação. A norma a interpretar sempre terá uma relativa indeterminação, seja ela intencional ou não

389 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7.ed. Traduzido por João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 264-268.

390 Ibid., p. 271-272. 391 Ibid., p. 295-299.

intencional. Esta indeterminação abre para o julgador um espaço de liberdade de apreciação. A moldura formada pela norma superior sempre oferecerá ao aplicador da norma diversas possibilidades. A escolha final caberá à livre apreciação e se constitui como um ato de

vontade discricionário, que Kelsen chamará de interpretação autêntica. Esta decisão final não

pode ser controlada e nem está disponível à ciência jurídica para apreciação de correção. A postura da ciência jurídica é meramente descritiva, constituindo-se em uma interpretação inautêntica392.

Da mesma forma que acontece no pensamento de Kelsen, a atuação judicial pode ser encarada, em Hart, em duas frentes. A primeira diz respeito à relação entre o ato de julgar, as normas de julgamento e a norma de reconhecimento. A segunda envolve a questão da textura aberta das normas e a discricionariedade interpretativa/aplicativa do julgador. Ambas estão relacionadas entre si.

Ao se referir à relação entre as normas de julgamento e as demais normas secundárias, Hart afirma que todo sistema que possui normas de julgamento possui, implícita a ela, uma norma de reconhecimento mais imperfeita e precária. Afirma isso na medida em que as normas de julgamento conferem ao órgão julgador a possibilidade de decidir definitivamente sobre o desrespeito a determinada norma. Esta decisão constituirá uma nova fonte de direito, pois não poderá ser desconsiderada no futuro393.

A segunda questão, tratada por Hart em relação à decisão judicial, envolve a refutação de duas teses sobre a atuação judicante: o formalismo e o ceticismo. Para o autor, é impossível haver um sistema em que todas as normas prevejam todas as suas hipóteses de aplicação. É próprio da linguagem, em geral, e da linguagem jurídica, em especial, a “textura aberta”. Por vezes, o julgador se verá diante de casos em que o sistema não prevê, de forma explícita e prévia, uma norma apta a resolvê-lo. Em tais situações, segundo Hart, o juiz terá uma margem de manobra discricionária, que permitirá que ele escolha qual a decisão a ser tomada, valendo-se de critérios, inclusive, pessoais. Nestas situações, o juiz deverá agir como um legislador parcimonioso, criar uma norma e aplicá-la. Isso não significa, segundo o autor, arbitrariedade. É falso, para ele, uma escolha entre a total submissão do juiz à lei e a sua total liberdade394.

392 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7.ed. Traduzido por João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 387-397.

393 HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Traduzido por Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 126.

Hart vai dizer que a discricionariedade não é equivalente à livre criação do direito ou arbítrio, afirmando que os juízes e tribunais estão cientes de que fazem parte de um sistema cujas normas são, em regra, aptas a conduzir a uma decisão adequada. Tais disposições são encaradas pelos julgadores como normas que não podem ser ignoradas “no exercício da autoridade de que dispõem para tomar decisões incontestáveis dentro do sistema”. Ao assumir a função de juiz, o sujeito encontra uma norma “estabelecida como tradição e aceita como o padrão para o desempenho de sua função”. Este fato seria capaz de limitar a atuação do julgador, uma vez que ele não é o autor desta tradição395. Enfim, embora, por vezes, seja muito difícil prever como os juízes decidirão, mormente em casos não explicitamente regulados ou quando as normas possuam textura aberta, uma eventual previsão se funda na certeza de que os julgadores consideram as normas como padrões suficientemente precisos, aptos a limitar, sem excluir, a discricionariedade judicial396.

Por fim, toda esta discussão sobre o papel da decisão judicial e a discricionariedade vai reverberar na ideia de norma de reconhecimento. Hart se pergunta qual a consequência para o fato de que um tribunal possa decidir sobre eventual dúvida envolvendo a norma suprema deste sistema. Haveria abalo na ideia de que a norma de reconhecimento é o supremo critério de identificação de pertinência e validade de um sistema?

Hart responde afirmando que se deve ter em mente que a própria existência de um sistema jurídico depende do fato de que existem normas que não podem ser questionadas em todos os seus aspectos. Para ele a “possibilidade de os tribunais terem, em determinado momento, autoridade para decidir essas questões restritivas referentes aos critérios últimos de validade” depende apenas do fato de que, “à época, a aplicação desses critérios a uma vasta área do direito, inclusive às normas que conferem autoridade aos próprios tribunais, não deixa margem a dúvidas, embora dúvidas existam quanto à extensão e ao limite precisos da norma”397.

No que diz respeito à decisão judicial, Kelsen confere amplíssima margem de manobra ao órgão julgador. Somando-se tudo que se disse sobre a atuação dos juízes/ tribunais é facilmente perceptível que o direito concreto a aplicar (função que, segundo Kelsen, é a mais importante na dinâmica jurídica) e sua forma de consecução não realizam um fechamento adequado do sistema. É tão vasta a zona de liberdade e tão poucas as exigências feitas ao julgador que o sistema jurídico acaba sendo fechado “de qualquer maneira”. Kelsen

395 HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Traduzido por Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 187-188.

396 Ibid., p. 190. 397 Ibid., p. 197.

sequer é explícito em dizer que a decisão tem que fazer referência a elementos do sistema normativo. A construção da norma de decisão pode ser totalmente guiada por critérios não pertencentes ao ordenamento, assumindo, apenas no fim, o formato exigido pelo sistema.

Hart, por outro lado, dá um passo além neste quesito. Conforme foi dito, a liberdade do julgador é reduzida pela constatação de que os juízes entendem que, no exercício de sua função, devem respeito às normas do sistema e não podem encará-las como conselhos ou meras possibilidades. Para Hart, os juízes sentem-se limitados pelas disposições normativas mesmo quando diante de normas de textura aberta. Entretanto, o autor não explora de forma adequada como isto, de fato, ocorre nem como pode ocorrer de forma melhor, mais adequada. Não parece relevante para Hart se perguntar sobre a efetiva limitação que esta “cultura da responsabilidade” atua.

É neste ponto que, entende-se, o positivismo jurídico mais peca. Ao não se voltar para o estudo do sujeito que interpreta e aplica as normas do sistema ou, ao menos, para o procedimento racional desta aplicação, o positivismo contemporâneo concede uma margem de manobra muito ampla ao julgador. A ausência de uma teoria hermenêutica, uma teoria da interpretação jurídica ou mesmo de uma teoria da justificação racional da decisão é a principal falha do positivismo jurídico (fato admitido, inclusive, por autores declaradamente positivistas398).

A ausência de uma preocupação com o sujeito, com uma teoria hermenêutica, bem como com uma teoria da argumentação, leva a uma postura insuficiente para lidar com este importante momento do sistema jurídico que é o momento decisório. A assunção da inevitabilidade da discricionariedade judicial não contribui, se não muito pelo contrário, para uma atuação judicante adequada a um Estado Democrático. A impossibilidade de resolver todas as questões no âmbito da normatização legislativa não desonera uma teoria do direito de apontar para uma responsabilidade epistemológica do julgador.

Este fato é especialmente preocupante quando se tem em mente o objeto do presente estudo: as interações judiciais transnacionais em matéria constitucional. Conforme foi explanado acima, este tipo de atuação judicial exige um modelo de racionalidade próprio, bem como mecanismos sistêmicos e pragmáticos claros. Relegar o funcionamento das interações à mera discricionariedade judicial ou ato de vontade do julgador é subcomplexo para lidar com a tensão entre identidade e alteridade das ordens jurídicas envolvidas. Além disso, sem

398 Cf. DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: introdução à teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 209-220; RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 305-307.

mecanismos claros que apontem para a racionalidade da decisão judicial, as interações podem passar a ser meros atos de pura retórica, uso de argumento de autoridade ou de uso decorativo. De qualquer maneira, as interações discricionárias têm muito mais a prejudicar do que a contribuir para se alcançar respostas mais adequadas.

Por tudo isso, fica evidente que o positivismo jurídico contemporâneo tem muito pouco a contribuir para a temática em questão, ao menos no que diz respeito ao controle e racionalidade. Assim, é preciso buscar modelos teóricos que oferecem, de forma consistente e não ingênua, mecanismos aptos a lidar com as diversas questões e dificuldades levantadas pelas interações judiciais transnacionais em matéria constitucional. É o que se passa a fazer na sequência.

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