• Nenhum resultado encontrado

O papel da jurisprudência na construção e preservação da identidade

4 CONDIÇÕES, POSSIBILIDADES E LIMITES DAS INTERAÇÕES JUDICIAIS TRANSNACIONAIS EM MATÉRIA CONSTITUCIONAL

4.5 A DOUTRINA, A JURISPRUDÊNCIA E A ARTICULAÇÃO ADEQUADA COM A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL

4.5.3 O papel da jurisprudência na construção e preservação da identidade

Tal qual a doutrina, o papel desempenhado pela jurisprudência na atuação judicial também é, tradicionalmente, discutido no bojo das fontes do direito. Diferentemente do que se

afirma sobre a doutrina, contudo, a perspectiva tradicional sobre o tema costuma atribuir à jurisprudência verdadeiro caráter de fonte do direito.

Segundo Miguel Reale, jurisprudência deve ser entendia como a “revelação” do direito processada a partir do exercício da jurisdição de forma harmônica e continuada pelos juízes e tribunais. Jurisprudência, portanto, não é algo produzido com um ou poucos precedentes. É decorrência da aplicação da lei ao longo do tempo pelos órgãos julgadores. Por vezes, para o autor, a atividade judicial pode vir a inovar na ordem jurídica, mormente quando é preciso suprir uma lacuna deixada pelo legislador ou quando é autorizado ao juiz julgar por equidade. Mesmo fora destas situações, nas quais o caráter de fonte do direito fica bastante evidente, a jurisprudência deve ser entendida como fonte na medida em que uma regra é, no fundo, sua interpretação, e o magistrado faz parte de uma estrutura de poder apta a “fazer surgir” o direito (critério utilizado pelo autor para demarcar o caráter de fonte ou não). Não se trata, portanto, de fonte secundária ou acessória555. Ainda segundo o autor, é evidente que a

jurisprudência é fonte do direito principalmente nos sistemas jurídicos anglo-americanos, ou seja, que adotam o common law556. Não obstante, é crescente a sua utilização mesmo nos

sistemas civilísticos557.

Tércio Sampaio Ferraz Jr. insere a discussão sobre o caráter de fonte da jurisprudência no debate sobre o costume. Para ele, a jurisprudência seria um caso especial de costume. Para ele, na tradição do common law é evidente o caráter de fonte da jurisprudência. Nesta tradição, o princípio do stare decisis rege a atuação judicial e sua relação com os julgados de outros julgadores, mormente os tribunais superiores. Na tradição romanística, ao contrário, desde os primórdios o julgador está vinculado apenas à lei, algo que fica especialmente evidente no contexto posterior à Revolução Francesa e às grandes codificações. No sistema continental, diferentemente da anglossaxônica, os juízes não estão vinculados às decisões dos tribunais superiores, às decisões dos demais juízes e mesmo às suas próprias. Por tudo isso, seria tradicionalmente negado, no sistema do civil law o caráter de fonte à jurisprudência558.

Não obstante, o autor aduz que há uma importância salutar nas uniformizações jurisprudenciais para o sistema romanístico. Apesar de não ser vinculante a jurisprudência de

fato, acaba por exercer um papel de guia da atuação judicial. Isto é especialmente relevante

555 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27.ed. 6.tiragem. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 166-168. 556 Ibid., p. 141-142.

557 Ibid., p. 169.

558 FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4.ed. São Paulo: Atlas: 2003m, p. 244-245.

quando se está diante de lacunas legislativas. O uso jurisprudencial, ao contrário do que ocorre no common law, seria dirigido aos juízes. Contudo, o autor finaliza afirmando que a jurisprudência só pode ser entendida como “fonte interpretativa” da lei, mas não como fonte do direito559.

Não resta dúvida, portanto, que a jurisprudência assume caráter de fonte com muito mais evidência do que a doutrina na perspectiva tradicional. Apesar das possíveis divergências, pode-se afirmar que a jurisprudência assumiria um papel mais ativo da experiência judicial do que a doutrina.

Alf Ross, partindo dos pressupostos teóricos aduzidos acima560, afirma que a jurisprudência constitui uma fonte do direito parcialmente objetivada, ou seja, parcialmente pronta para sua aplicação e parcialmente necessitada de complementação por esforço do julgador561.

A partir da teoria das fontes do direito (ramo da filosofia do direito), o autor aduz ser pacífico o fato de os precedentes desempenharem um papel relevante na construção das razões de decidir do julgador. A razão básica por trás deste comportamento é a concepção de justiça formal que afirma que casos similares devem ser tratados de forma similar. Por outro lado, levantam-se razões importantes para que um julgador eventualmente venha a romper com decisões tomadas no passado: se as condições sociais mudaram e a legislação eventualmente existente não se atualizou, o julgador deve se valer da “justiça material” em lugar da justiça formal562.

Segundo o autor, é esperado que nos países de common law a doutrina do stare

decisis atue regendo a relação do julgador com os precedentes. Esta doutrina, entretanto, não

desempenha, de fato, um mecanismo limitador da atuação judicial por dois motivos: existe uma grande margem de valoração sobre o que é a ratio decidendi do precedente e sempre existe a possibilidade do juiz realizar o distinguish, diferenciando o caso presente do passado. Portanto, apesar dos precedentes desempenharem papel levante nos países ligados à tradição anglo-saxônica, isso não se deve à doutrina do stare decisis, mas é uma decorrência da forma através da qual o próprio direito se desenvolveu nesses países: através da experiência judicial563.

559 FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4.ed. São Paulo: Atlas: 2003, p. 246.

560 Cf. supra 4.5.2

561 ROSS, Alf. Direito e justiça. 2.ed. Trad.: Edson Bini. Bauru: Edipro, 2007, p. 104. 562 Ibid., p. 111.

Pelo mesmo motivo, os juízes dos Estados ligados à tradição continental são menos influenciados pelos precedentes judiciais. A evolução do direito nestes locais, e a própria forma de controlar a atividade judicial ocorreu, através da legislação e do esforço acadêmico. A tradição que se desenvolveu foi a da força obrigatória da lei, e não do precedente. Por este motivo, é possível dizer que neste sistema o juiz não se vê como um real responsável pelo desenvolvimento do direito. Apesar de tudo isto, o autor assevera que, mesmo na tradição romanística, se constata que os juízes são influenciados pelos precedentes judiciais564. A questão para o autor, aparentemente, é apenas de grau.

As restrições que devem ser feitas à tese de Alf Ross a respeito da jurisprudência e sua relação com a atividade judicial são similares às que se fez sobre sua tese sobre a doutrina. Em primeiro lugar, rejeita-se o ponto de partida do autor: grande carga de discricionariedade no ato de julgar. Em segundo, e mais importante, o autor não está preocupado em dizer como o julgador deve se relacionar com os precedentes e qual o papel que estes possuem no desenvolvimento ótimo do sistema jurídico. É preciso, portanto, avançar.

Existe um expresso paralelo realizado por Robert Alexy entre o papel da doutrina (ciência do direito) e da jurisprudência no controle racional da decisão judicial. A utilização dos precedentes tem fundamento na regra básica de universalidade: casos semelhantes devem ser tratados de forma semelhante565. Atrelado a este motivo, pode-se dizer que os precedentes têm a mesma função dos argumentos dogmáticos, destacando-se as funções de estabilização, de progresso e de descarga. Assim, o autor elabora duas regras de argumentação que, devem ser seguidas: (J.13) Quando se puder citar um precedente a favor ou contra uma decisão deve- se fazê-lo; (J.14) Quem quiser afastar-se de um precedente, assume a carga da argumentação566.

O autor, portanto, justifica a utilização do precedente na decisão judicial a partir da sua teoria da argumentação, voltada ao controle da racionalidade do ato de julgar. Neste sentido, é pouco relevante em qual tradição o julgador está inserido, se na anglo-saxônica ou na continental. O precedente desempenha um papel que vai além destas discussões e, principalmente, do debate acerca do caráter de fonte ou não da jurisprudência.

564 ROSS, Alf. Direito e justiça. 2.ed. Trad.: Edson Bini. Bauru: Edipro, 2007, p. 115-117.

565ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da

fundamentação jurídica. 3.ed. Traduzido por Zilda Hutchunson Schil Silva. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 271: “O uso dos precedentes se mostra assim como procedimento de argumentação exigido por razões prático-gerais (princípio da universalidade/regra da carga de argumentação), sendo, nesse medida, racional”. 566 Ibid., p. 270.

Outline

Documentos relacionados