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O papel da doutrina na construção e preservação da identidade

4 CONDIÇÕES, POSSIBILIDADES E LIMITES DAS INTERAÇÕES JUDICIAIS TRANSNACIONAIS EM MATÉRIA CONSTITUCIONAL

4.5 A DOUTRINA, A JURISPRUDÊNCIA E A ARTICULAÇÃO ADEQUADA COM A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL

4.5.2 O papel da doutrina na construção e preservação da identidade

O papel da doutrina na atuação judicial é tradicionalmente colocado nos quadros da discussão envolvendo as fontes do direito. Por fonte do direito é comum se entender os processos e mecanismos graças aos quais se positivam com força vinculante as regras jurídicas. Dito de outra forma, uma fonte do direito é aquela a partir da qual normas jurídicas ganham vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa. Assim, haveria uma relação imediata entre fonte do direito e poder, pois a gênese de todo direito só pode ser um ato de poder535.

A partir da leitura mais tradicional, partindo desta concepção de fonte, a doutrina não constituiria uma fonte do direito. Uma das negativas possíveis afirma que os ensinamentos dos juristas nunca terão força vinculante o suficiente para revelar qual norma jurídica positiva

534 KIRK, Russel. A política da prudência. Trad.: Gustavo Santos e Márcia Xavier de Brito. São Paulo: É Realizações, 2014, p. 280.

deve ser aplicada pelo julgador. Argumentos doutrinários contrapostos sempre poderiam ser levantados.

Outra negativa possível se relaciona com o fato de que a doutrina não se desenvolve a partir de uma estrutura de poder. As verdadeiras fontes do direito produzem modelos jurídicos prescritivos, estruturas normativas com caráter obrigatório que disciplinam as relações sociais e apontam e fundamentam as decisões judiciais. A doutrina, por outro lado, produz modelos dogmáticos, esquemas teóricos que visam estruturar o resultado bruto do processo de formação das regras jurídicas a partir das fontes originais. Não obstante o papel que a doutrina desempenha na experiência jurídica ela não pode ser entendida como fonte do direito536.

No mesmo sentido parece se posicionar Tercio Sampaio Ferraz Jr., ao afirmar que, em sentido estrito “a communis opiniodoctorum, isto é, posições doutrinárias dominantes (doutrina dominante) não chega, no sistema romanístico, a ser fonte do direito. Sua autoridade, porém, como base de orientação para a interpretação do direito é irrecusável”. Contudo, há, segundo o autor “casos de verdadeira construção doutrinária do direito que, embora não possam ser generalizados, apontam para exemplos em que a doutrina chega a funcionar como verdadeira fonte. Mesmo assim, são antes fontes mediatas, pois nenhum tribunal sente-se formalmente obrigado a acatá-las”537.

Ou seja, tradicionalmente, a teoria do direito refere-se ao papel da doutrina no âmbito da discussão sobre as fontes do direito. Afirma-se que ela não pode ser entendida como criadora de direito, pois não há nela obrigatoriedade nem para o julgador nem, muito menos, para o indivíduo. Esta falta de obrigatoriedade decorreria da ausência de uma estrutura de poder estatal na sua produção. Não obstante, reconhece-se a importância que o conhecimento jurídico desempenha na experiência e na interpretação do direito.

Alf Ross sugere uma forma diferente de enxergar a questão ideia de fonte do direito. Partindo do seu realismo jurídico (forma de positivismo jurídico contemporâneo538), o autor afirma que uma “fonte do direito” não pode ser compreendida como um procedimento a partir do qual se dá a produção de normas jurídicas. Esta é papel exclusivo da legislação. Por “fonte do direito” deve se entender o “conjunto de fatores ou elementos que exercem influência na

536 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27.ed. 6.tiragem. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 176.

537 FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4.ed. São Paulo: Atlas: 2003, p. 247.

538 Cf. BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo: uma introdução a Kelsen, Ross e Hart. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 67-95.

formulação do juiz da regra na qual ele funda sua decisão”539. A identificação desta “ideologia

normativa comum” aos julgadores de um determinado sistema jurídico cabe à doutrina das fontes do direito, e só pode ser levada a cabo de forma empírica. À teoria das fontes do direito (ramo da filosofia do direito) cabe a identificação dos tipos mais gerais de fontes540. Alf Ross assevera que a melhor maneira de desempenhar esta tarefa de generalização é a partir do grau de objetivação da fonte, ou seja, se a fonte constitui um elemento acabado e pronto para ser utilizado pelo julgador na sua decisão, ou se precisa passar por um processo adicional de objetivação pelo juiz.

O papel do estudioso do direito, portanto, seria identificar e reunir, de forma sistematizada, as diversas fontes do direito que se manifestam em determinado sistema jurídico. Este procedimento é necessariamente empírico: o doutrinador deve constatar quais são, de fato, os elementos e fatores que mais influenciam e vinculam os julgadores no momento da decisão, quais são os mais relevantes (legislação, jurisprudência, costume etc.). A partir deste estudo, é possível se alcançar algum senso de probabilidade de como determinado julgador irá decidir. O trabalho mais desafiante e importante para o doutrinador, contudo, é identificar e sistematizar os conhecimentos e valorações que estão difusos na sociedade e que só com muita dificuldade o julgador tem acesso. A identificação da “tradição cultural” é relevante, pois Alf Ross parte da assunção que o ato de decisão sempre estará envolto em um contexto cultural determinado. O juiz sempre está envolto em uma determinada tradição cultural e deve respeitá-la.

A contribuição de Ross é importante e relevante, mas deve ser encarada com restrições. O autor acaba por defender uma postura demasiadamente subjetiva da atividade judicial, ainda que afirme que esta não deve ser confundida com arbítrio. Sua insistência em entender o papel da doutrina e da teoria do direito como essencialmente descritivas (resultado de seu positivismo) não oferece, como um todo, grandes contribuições para o controle da decisão judicial. E, como se viu acima, isto é fundamental para os caminhos do direito na atualidade e, especialmente, para as interações judiciais transnacionais. Ainda, é possível, como se verá a frente, avançar um pouco mais na compreensão acerca do papel que a doutrina desempenha na atividade judicante.

Robert Alexy, conforme brevemente aduzido acima541, desenvolve uma teoria da argumentação jurídica voltada à limitação e racionalização da atividade judicial542. Esta teoria

539 ROSS, Alf. Direito e justiça. 2.ed. Trad.: Edson Bini. Bauru: Edipro, 2007, p. 103. 540 Ibid., p. 102-103.

está dividida em dois tempos: uma teoria da argumentação prática geral, na qual o autor elenca uma série de regras que devem ser seguidas em qualquer procedimento argumentativo e543; uma teoria da argumentação jurídica como caso especial da argumentação prática geral, na qual o autor elenca uma série de regras que a argumentação jurídica deve respeitar544. Dentre estas regras está a exigência de confronto com a ciência jurídica.

Alexy afirma que existem três dimensões da ciência jurídica: uma descritiva – voltada à descrição da jurisprudência e da vontade do legislador; uma sistemática – preocupada em sistematizar os conceitos jurídicos e as diferentes normas; e uma normativa – responsável por propor novas interpretações e fundamentações. Dessas três dimensões, ele extrai diversos tipos de argumentos possíveis que não vem ao caso agora. Os argumentos dogmáticos tem um papel fundamental no controle da consistência do sistema jurídico. Eles auxiliam na fixação de determinadas soluções práticas, ampliam o debate, desoneram a carga argumentativa, viabilizam o ensino e aprendizado e organizam a abertura. Para Alexy, os argumentos dogmáticos sempre devem ser utilizados se estiverem disponíveis. Daí o autor retira uma regra argumentativa: (J.12) Se são possíveis argumentos dogmáticos, devem ser usados545.

O confronto com dogmática jurídica (doutrina), portanto, representa um caráter de

plus de racionalidade ao discurso jurídico. Através da obrigação que o julgador teria de se

valer de argumentos dogmáticos sua discricionariedade seria reduzida, ao mesmo tempo em que se contribuiria positivamente para a consistência do sistema jurídico. A questão, em Alexy, vai além da discussão sobre se a doutrina é ou não fonte do direito. A doutrina possui um papel intrassistêmico inafastável.

Contudo, é possível dar um passo adiante. Para além da discussão sobre o caráter de fonte ou não da doutrina e em adição ao dever argumentativo que ela deve desempenhar, a questão do papel da doutrina que se coloca na presente investigação diz respeito ao potencial

reflexivo que esta desempenha para o funcionamento do sistema jurídico e para a decisão

judicial.

Antes de tudo, entretanto, é preciso deixar assentado o que se entende por doutrina jurídica. Esta deve ser entendida como o saber desenvolvido principalmente no âmbito acadêmico atento à conexão que existe entre o fenômeno jurídico e a vida em comunidade

542ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da

fundamentação jurídica. 3.ed. Traduzido por Zilda Hutchunson Schil Silva. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 19-35.

543 Ibid., p. 177-205. 544 Ibid., p. 209-285. 545 Ibid., p. 247-267.

(extensão). Ela desempenha um importante papel democrático e legitimador, na medida em que funciona como um elo entre o Estado e a sociedade, contribuindo, assim, para o aperfeiçoamento democrático da decisão judicial546.

A doutrina que se trata aqui, portanto, não pode ser confundida com o saber mecânico, instrumentalizado e estratégico, produzido para a indústria do concurso público547. Assume-se que a doutrina é o local por excelência do teste de sentidos possíveis para a atividade judicial. Nela é possível “ensaiar” decisões, estabilizar perspectivas legitimadoras das decisões judiciais e corrigir erros548. E isto se faz tanto através de inovações quanto através da análise crítica de precedentes ou mesmo jurisprudência consolidada.

A doutrina não deve ser encarada como a opinião de um ou outro doutrinador renomado. Ao contrário, ela representa uma rede de saber que congrega diferentes correntes, ainda que não dominantes, sujeita a constante produção e crítica549. Ela deve ser compreendida como um mecanismo através do qual se ilumina aquilo que pode ser verdadeiro, se desvela sentidos ainda encobertos. Não é, assim, um repositório de verdades abstratas, desvinculadas de realidades concretas. Por este motivo, a pergunta que o julgador faz a ela não é conceitual, mas como referida ao caso problema concreto que se deve resolver550. Ou seja, “[d]ialogar com a comunidade acadêmica não é citar conceitos, mas enfrentar os elementos do caso concreto na perspectiva doutrinária”551.

A pergunta sobre o caráter de fonte ou não da doutrina deve ser coloca sobre nova ótica. Afirma-se que ela não possui força cogente e, por isso, não seria fonte do direito. De fato, o julgador não se encontra vinculado a uma determinada posição doutrinária. Entretanto, disso não se pode concluir que a rede doutrinária pode ser ignorada. Tendo em mente que o direito não é algo dado, deve-se incorporar o fato de que a doutrina é indispensável para a adequada apreensão do fenômeno jurídico e para a construção de uma decisão judicial adequada. A rede doutrinária possui um caráter normativo, ao menos por motivos epistêmicos. Necessita-se de uma reformulação na teoria das fontes552.

546 CARNEIRO, Wálber Araujo. Hermenêutica jurídica heterorreflexiva: uma teoria dialógica do direito. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p 258 e 264.

547 Evidentemente, este tipo de conhecimento só existe devido ao tipo de exigência feita nos próprios concursos de ingresso no funcionalismo público. A reformulação destes processos seletivos, sem dúvida, contribuiria para o revigoramento e reformulação do conhecimento jurídico.

548 CARNEIRO, op. cit., p. 258-259. 549 Ibid., p. 259 e 264.

550 Ibid., p. 277 e 291-292: “a rede doutrinária propõe leituras para o problema na tentativa de suprir as deficiências tecnológicas do sistema e, ao mesmo tempo, legitimar rupturas no quadro institucionalizado” (destaque do original).

551 Ibid., p. 263. 552 Ibid., p. 264 e 277.

De forma definitiva, é possível dizer que “doutrina não é sinônimo de doutrinador, mas de uma rede na qual diversos doutrinadores estão conectados”. Da “extensão e do diálogo constante com a comunidade, para a produção de conhecimento e para o ensino, a rede doutrinária atualiza, fecha e legitima as diferentes leituras” sobre o sistema jurídico e a decisão a ser tomada553.

A doutrina, portanto, constitui-se em um ambiente de construção e reflexão sobre os sentidos que devem ser atribuídos ao sistema jurídico, mormente pela atividade judicial. Neste sentido, deve ter a pretensão de “ditar os rumos da jurisprudência”554, ou seja, deve doutrinar e não ser apenas um repositório acrítico de precedentes já construídos. Por este motivo, em relação ao julgador ela representa uma importante instância reflexiva, desveladora de sentidos obscuros/obscurecidos.

De todo exposto, é possível concluir que a doutrina assume dois papéis altamente relevantes para o funcionamento das interações judiciais transnacionais em matéria constitucional e, principalmente, para a construção e preservação da identidade do sistema jurídico (constitucional).

Em primeiro lugar, a doutrina representa a ligação entre a comunidade, seus anseios, interesses, valores e princípios. É a doutrina capaz de identificar quais os sentidos com consequências jurídicas que estão dispersos na sociedade, quais as expectativas criadas pelos cidadãos a respeito de sua relação com o Estado e uns com os outros. É a doutrina que está apta a atribuir sentido jurídico a todas estas manifestações e, inversamente, introduzir no sistema jurídico, através da postura reflexiva que possui, sentidos possíveis às normas (legislativas e jurisprudenciais) que já circulam.

A doutrina, portanto, ao mesmo tempo em que, desde-já-e-sempre, se insere em uma tradição, é responsável por identificá-la e fazê-la avançar. O estudo doutrinário sério é capaz de preservar a identidade do sistema jurídico e sua necessária vinculação com aqueles que sofrerem com sua incidência. Ao mesmo tempo, ao identificar os anseios, interesses, valores e princípios presentes no corpo social e as modificações que este exige, é capaz de fazer desvelar novos sentidos verdadeiros sobre o sistema jurídico. Por ser o que liga a comunidade com o poder judicial, ela representa um plus democrático e de identidade ao sistema jurídico.

553 CARNEIRO, Wálber Araujo. O direito e as possibilidades epistemológicas do paradigma hermenêutico. In:

STRECK, Lenio Luiz; STEIN, Ernildo (Org.) Hermenêutica e epistemologia: 50 Anos de Verdade e Método. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 149-150.

554 CARNEIRO, Wálber Araujo. Hermenêutica jurídica heterorreflexiva: uma teoria dialógica do direito. Porto

Em segundo lugar, é a doutrina a responsável por fazer a primeira depuração do material estrangeiro. Justamente por seu caráter reflexivo e por representar a instância sistêmica responsável pela identificação, preservação e construção da identidade do sistema, bem como pela sua capacidade de desvelar sentidos novos e de pautar a jurisprudência e seu desenvolvimento íntegro, a doutrina tem o papel de entrar em contato e analisar criticamente as decisões judiciais tomadas em outras instâncias no cenário transnacional, apontando quais os benefícios que a ratio decidendi traz para a construção do sistema pátrio, o seu nível de aproveitamento pelos juízes e tribunais nacionais, como ela se relaciona com o sistema jurídico nacional, assim como indicar em que medida este material deve ser aproveitado ou rechaçado.

Tudo o que se disse anteriormente sobre o papel da doutrina é necessariamente aplicável à depuração do material estrangeiro com o agravante de ser a instância, por excelência, de preservação e desenvolvimento da identidade do sistema jurídico nacional. A doutrina, portanto, através de seu esforço reflexivo, tem o condão de impedir que a identidade local seja totalmente corrompida em nome de alguma alteridade, de evitar a recaída em um modelo de submissão ou convergência e, ao mesmo tempo, de estimular uma rearticulação benéfica entre identidade e alteridade, de possibilitar a construção de um modelo de interlocução, diálogo, aprendizado e engajamento.

Por tudo isso, é altamente aconselhável, para que as interações judiciais transnacionais em matéria constitucional se desenvolvam de forma adequada, que a doutrina atue firme e construtivamente. O papel reflexivo e indicador que a doutrina exerce na atuação judicial é ainda mais relevante quando se está em jogo a preservação da identidade do sistema jurídico nacional. Desta forma, o julgador, quando assume uma postura de engajamento/interlocução/diálogo com o transnacional, deve dar maior importância àquelas decisões que já foram depuradas e analisadas pela rede doutrinária. De forma contrária, deve assumir uma postura de maior desconfiança e maior postura crítica quando este confronto doutrinário ainda não se deu. Assim, as interações desempenharam seu papel de forma ótima e poderão, de fato, contribuir para o aperfeiçoamento do sistema jurídico-constitucional.

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