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A postura de resistência (resisting the transnational)

3 AS INTERAÇÕES JUDICIAIS TRANSNACIONAIS EM MATÉRIA CONSTITUCIONAL: PROPOSTAS, DEFESAS E CRÍTICAS

3.6 O ENGAJAMENTO CONSTITUCIONAL EM UMA ERA TRANSNACIONAL DE VICKI JACKSON

3.6.2 A postura de resistência (resisting the transnational)

A postura de resistência ao transnacional basicamente afirma que qualquer material produzido para além das fronteiras estatais, seja por ordens internacionais, supranacionais, regionais, seja por ordens estatais, deve ser considerado irrelevante para a interpretação e a construção do sentido da constituição297. Dito de outra forma, o modelo de resistência assume que a constituição deve servir como mecanismo de oposição ao que é produzido no cenário transnacional. Em formas mais agressivas, afirma-se que tudo o que é produzido fora do Estado deve ser visto com indiferença298. Um dos argumentos fundamentais desta postura reside no fato de que a consideração ou citação de material produzido no cenário transnacional corromperia a soberania do Estado bem como o processo democrático299. Este tipo de postura possui, segundo Vicki Jackson, diversos motivos, assunções e maneiras de manifestação300.

Os motivos para adoção da postura de resistência estão relacionados com o propósito das constituições, com as teorias da interpretação constitucional vigentes, com o nível de racionalidade e de capacidade dos julgadores, bem como com razões políticas e sociais.

Em primeiro lugar, a própria ideia de constituição convida a uma postura de resistência ao transnacional. Como afirma a autora, constituições costumam ser mecanismos de autoconstituição e autoexpressão de um determinado Estado e povo. Nelas costuma se positivar particularidades da identidade e da autocompreensão nacional. Disso se retira que a função das constituições é, justamente, diferenciar determinado Estado de outros. Se a constituição possui uma ligação imediata com a cultura de um povo ou grupo, ouvir o que outros povos ou grupos têm a dizer sobre direito constitucional é incompatível301. Nas palavras da autora: “If a constitution is fundamentally an inward-looking legal instrument, whose purpose is to express the commitments, constraints, and uniqueness of a particular people, the view of foreign courts or international tribunals are of less interest or may even be harmful”302.

297 JACKSON, Vicki. Constitutional engagement in a transnational era. Oxford: Oxford University Press, 2013,

p. 17-18.

298JACKSON, Vicki. Constitutional comparisons: convergence, resistance, engagement. Harvard Law Review, v.

119, 2005, p. 113-114.

299JACKSON, Vicki. Transnational challenges to constitutional law: convergence, resistance, engagement.

Federal Law Review, v. 35, 2007, p. 168-171.

300 JACKSON, Vicki. Constitutional engagement in a transnational era. Oxford: Oxford University Press, 2013,

p. 18. 301 Ibid., p. 18-20.

302 JACKSON, Vicki. Constitutional engagement in a transnational era. Oxford: Oxford University Press, 2013,

A assunção de posições originalistas303 na interpretação da constituição, bem como modelos de interpretação que valorizam a deferência ao procedimento legislativo e à soberania nacional também são uma causa da postura de resistência. Se se entende que o papel do Judiciário no controle de constitucionalidade é preservar o sentido original da constituição e, assim fazendo, salvaguardar a soberania popular e os compromissos positivados no texto, a interação com fontes transnacionais é de todo inconcebível. Da mesma forma, mas no extremo oposto, adotar um modelo de deferência ao jogo político atual do Estado na interpretação da constituição, impulsiona o julgador a não levar em conta sentidos produzidos fora das fronteiras estatais. A partir desses modelos de interpretação constitucional eventual interação dependeria de expressa autorização do próprio texto da constituição304.

Outra série de questões que aponta para a adoção da postura de resistência envolve os limites que devem existir e aqueles que existem de fato quando da construção de uma decisão em matéria constitucional. As limitações que devem existir são levantadas por aqueles que entendem que a jurisdição constitucional deve ser um exercício de limitação, tanto da atividade, ou seja, deve-se distinguir da atividade política, quanto do próprio atuar do julgador, significando que ela não pode representar a escolha de preferências pessoais do juiz. Aumentar a quantidade de material para referência e consideração pode significar um aumento na discricionariedade do decisor. Atrelado a isto está o perigo de, observada a infinidade de fontes possíveis, o julgador utilizar o material transnacional de maneira puramente conveniente, com a intenção apenas de ratificar uma posição já tomada.

No que diz respeito aos limites efetivamente existentes, a autora destaca a existência do grande ônus que significa dominar uma série de corpos legislativos e, principalmente, de decisões tomadas em outras instâncias no cenário transnacional. As possibilidades de erro e de má compreensão são relevantes. Ao mesmo tempo, há o problema da falta de domínio e treinamento bem como a questão do custo de oportunidade. Quando se está diante de decisões produzidas por cortes estatais, há a dificuldade de se entender adequadamente o contexto. Quando se está diante de instrumentos internacionais há a dificuldade da ampla e abrangente gama de assuntos cobertos, muitas vezes contraditórios e tendentes à colisão305.

qual tem o propósito de expressar compromissos, limites e singularidades de um povo em particular, a visão de cortes estrangeiras ou tribunais internacionais tem pouca relevância ou pode ser, inclusive, prejudicial”. 303 O originalismo é uma corrente de interpretação constitucional que afirma que o papel do controle de

constitucionalidade das leis é preservar o sentido original da constituição como pretendido pelos seus formuladores. Não é uma corrente que faça parte do debate central no Brasil.

304 JACKSON, Vicki. Constitutional engagement in a transnational era. Oxford: Oxford University Press, 2013,

p. 20-24. 305 Ibid., p. 26-27.

Posturas de resistência à interação judicial transnacional também ocorrem devido a motivos políticos. Em primeiro lugar, resistir à interação com determinadas fontes (EUA, por exemplo) pode ser sinônimo de um contrapeso a políticas hegemônicas ou mesmo uma reação às atitudes recentes e passadas de alguma nação. Da mesma forma, a resistência pode decorrer de uma crença na excepcionalidade do sistema constitucional do qual se parte. Em segundo lugar, a adoção de uma postura de resistência pode estar embasada no temor de que a proteção dada a determinados direitos e garantias em outros locais seja menor do que a dada no sistema jurídico do qual se parte. É um temor relacionado com características substanciais de outros sistemas. Por fim, afirma-se que apoiar as interações judiciais acarretaria na perda de diversidade constitucional ao redor do mundo, bem como levaria algumas nações a adotarem medidas legais que de outra forma não adotariam306.

Uma última série de motivos para a adoção da postura de resistência decorre da crítica a um suposto elitismo da postura de interação. De acordo com esta perspectiva, as interações seriam, em verdade, a cooperação de determinadas elites que, atuando como substitutas da diplomacia e do processo legislativo, estariam moldando os sistemas constitucionais de acordo com seus próprios interesses307.

Como fica claro, a postura de resistência não pode se entendida a partir de uma única ou dominante forma de se compreender a atuação judicial. Em verdade, ela pode estar associada a diferentes concepções sobre o direito.

A autora indica que a postura de resistência pode estar associada a uma percepção positivista do direito, no sentido de que se considera direito apenas aquilo que foi produzido por uma autoridade constitucionalmente determinada. De outra forma, a resistência pode também estar associada a uma concepção mais orgânica do direito. Nesta percepção historicista, o direito é aquilo que é construído ao longo do tempo por uma determinada cultura. Sendo assim, a referência ou consideração de fontes outras se torna inconcebível308.

Após essas considerações, Vicki Jackson realiza um estudo sobre decisões judiciais ao redor do mundo que teriam assumido a postura de resistência. A grande dificuldade, afirma, relaciona-se com o fato de que este tipo de postura por vezes se manifesta através do silêncio e da indiferença, não restando, portanto, expressado que não houve interação. A autora identifica que tribunais constitucionais ao redor do mundo já adotaram a postura de resistência: Alemanha, Turquia, Itália e, especialmente, Austrália, Singapura, Malásia e EUA.

306 JACKSON, Vicki. Constitutional engagement in a transnational era. Oxford: Oxford University Press, 2013,

p. 27-30. 307 Ibid., p. 30. 308 Ibid., p. 30-32.

Nos dois países asiáticos foi construída a tese das quatro paredes: a constituição deve ser interpretada de dentro das quatro paredes do sistema jurídico nacional e não a partir de analogias com outros sistemas309.

É possível perceber, ainda, a adoção da postura de resistência quando se está tratando de temas específicos. Um exemplo marcante envolve o tema da exploração dos recursos naturais do Estado e das relações deste com empresas transnacionais. Por vezes, como ocorreu na Colômbia, nas Filipinas e no México, os tribunais resistem a manifestações jurídicas transnacionais, a fim de preservar o mercado interno e os ativos materiais do Estado frente à globalização econômica, às privatizações e à desregulamentação financeira. Outro exemplo possível envolve a forma de organização do Estado e as eventuais peculiaridades de um sistema federalista310.

A professora finaliza sua explanação afirmando que existem diversos tipos e fontes de resistência às interações judiciais transnacionais em matéria constitucional. As variações se dão, tanto por motivos de teoria do direito, quanto por assunto que está em questão na interpretação da constituição. Para alguns, a consideração do material transnacional pode ocorrer, mas a referência não. Para outros, o julgador deve tentar ignorar crenças e conhecimento sobre o material transnacional e se concentrar apenas nas fontes domésticas. Para uns, o uso decorativo do material transnacional não é problemático; para outros, a referência ao material transnacional para apoiar a validade de leis é mais aceitável do que se valer das interações para julgar pela inconstitucionalidade de determinado ato normativo. Apesar dos diferentes motivos para se adotar a postura de resistência (democracia, soberania, capacidades institucionais etc.), Vicki Jackson afirma que o mais forte e consistente relaciona- se com o caráter de autocompreensão e de identidade que as constituições estatais costumam representar. Este caráter parece ser um motivo quase determinante para resistir às interações transnacionais311.

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