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Manoel Jorge e Silva Neto dá notícia de que a globalização não é um fenômeno recente. O movimento de expansão de uma determinada cultura para fora de suas limitações territoriais ou o contato entre povos diferentes pelos mais variados motivos já existe desde a Antiguidade Clássica. Segundo o autor, a primeira onda globalizadora pode ser encontrada na experiência da ampliação do Império Romano. Uma segunda onda globalizadora pode ser identificada no período das grandes navegações no qual os países europeus, mormente Espanha e Portugal, descobrem o “novo mundo” americano. A terceira onda ocorre quando da

52 TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Teoria pluriversalista do direito internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 4.

emergência da Revolução Industrial. Por fim, a quarta onda globalizadora, na qual se vive hoje, tem seu início com a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria53.

Compartilhando este entendimento, Anderson Vichinkeski Teixeira afirma que o término da Guerra Fria é fator determinante para que se tornasse possível falar em sociedade global. O fim da polarização do globo terrestre e sua divisão em zonas de influência abriram, segundo o autor, os caminhos e as fronteiras para que se desenvolvesse a ideia de sociedade global54. Pode-se dizer, portanto, que este processo será marcadamente influenciado pelo sistema capitalista, pelo liberalismo político e pelo conceito de democracia constitucional.

Parece seguro dizer que o que se observa hoje é a expansão e aceleração de um movimento que já faz parte da sociedade desde sua mais remota história. A facilidade das comunicações à longa distância, o aprimoramento do comércio internacional, as consequências locais imediatas de fatos ocorridos em zonas territoriais distantes, são todos fenômenos que se ampliaram em demasia no último século. Como se verá adiante, a marca indelével desta nova fase da globalização consiste no fato de que a própria sociedade se entende como sociedade mundial. Este raciocínio será desenvolvido mais a frente com esteio em Niklas Luhmann.

A faceta econômica é, sem dúvida, a mais destacada e importante do processo de globalização55. Muitos, inclusive, afirmam que globalização é sinônimo de expansão do capitalismo. Esta expansão foi marcada, em um primeiro momento, pelo que ficou conhecido como Consenso de Washington, que defendia uma série de propostas orientadas à privatização, à desregulação, ao livre comércio, à minimização da carga tributária etc. Estes processos acabam deixando a economia estatal mais sujeita aos humores do mercado internacional. Por isso, um significativo movimento antiglobalização se desenvolveu, principalmente nos países não desenvolvidos, incapazes de se adequar à essas exigências. Este

53 SILVA NETO, Manoel Jorge e. Globalização e direito econômico. [s.l.:s.n.,s.d.], p. 3-4

54TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Teoria pluriversalista do direito internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 10-11.

55 Zygmunt Bauman, em tom crítico, afirma que esta face da globalização é a marca da “desordem mundial”. Entende o autor que a globalização econômica carece de controle estatal o que antes da segunda metade do século XX era possível e desejável mesmo para as economias de mercado (cf. BAUMAN, Zygmunt.

Globalização: as consequências humanas. Traduzido por Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 63-

77). Em contraponto a esta afirmação, SOWELL, Thomas. Os intelectuais e a sociedade. Trad.: Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 86-87: “A ordem criada por um processo deliberadamente controlado pode ser muito mais fácil de conceber ou entender, em comparação à ordem que emerge de um conjunto incontrolável de inumeráveis interações. Mas isso não significa que a primeira seja, necessariamente, mais comum, mais significativa ou mais desejável em suas consequências”.

movimento, principalmente na América Latina, desembocou na subida ao poder de governos populistas que acreditavam na possibilidade de o Estado ser o principal agente econômico56.

Esta dicotomia, entretanto, tende à ideologização e à perda de foco. Desta forma, concorda-se com Anderson Vichinkeski Teixeira, quando afirma que a globalização econômica tem um significado estritamente formal: “trata-se de um processo histórico voltado para a criação de condições práticas que permitam a qualquer agente, seja uma multinacional ou um simples indivíduo, investir e interagir na busca da melhor alternativa para a efetivação do seu negócio pretendido”57. Os mecanismos para isto já estão disponíveis, mormente com o

desenvolvimento da economia. O que é relevante para ser discutido é como os agentes deste processo se comportam. A globalização econômica não é um mal em si. Não é um processo despersonalizado e que se move autonomamente.

A preocupação com a globalização econômica, sua suposta relação de necessidade com o “projeto neoliberal” de desmantelamento do Estado Social, o suposto risco que esta oferece aos direitos humanos, às identidades nacionais e aos países em desenvolvimento foi, a princípio, a principal postura dos cientistas sociais em geral e dos juristas em especial58. Esta

não é a perspectiva deste trabalho. Não se busca aqui examinar a transnacionalização apenas sob o aspecto econômico ou mesmo o que apenas este aspecto do fenômeno acarreta para o direito. O que se pretende é analisar como o amplo processo que é a transnacionalização afeta o direito – constitucional -independente da economia. Como destacado no tópico 2.4, a expansão do constitucionalismo moderno e o surgimento das interações judiciais transnacionais não possui relação com a faceta econômica da transnacionalização.

Justamente para evitar esta tendência à ideologização e à caracterização da globalização como globalização econômica é que este estudo deixa de usar esta expressão. Como ficará claro, o processo que se vive hoje tem outras faces e acarreta consequências que não tem relação imediata, ou mesmo nenhuma, com a economia global, ainda que esta seja a mais visível. Desta forma, se recorrerá à ideia de transnacionalidade e transnacionalização. Ambas derivam da palavra “transnacional”. Todas as expressões são entendidas, aqui, em sentido amplo, ou seja, referem-se a processos que ocorrem para além do Estado nacional, mas também com e nele. No caso do direito, por exemplo, “problemas jurídicos

56TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Teoria pluriversalista do direito internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 11-24.

57 Ibid., p. 24-25 (destaque acrescido).

58 Cf. FARIA, José Eduardo. Direitos humanos e globalização econômica: notas para uma discussão. Estudos

avançados. v.11, n.30, 1997, p. 43-53; MORAIS, José Luís Bolzan de. Direitos humanos, Estado e

globalização. In: RUBIO, David Sanchez; FLORES, Joaquin Herrera; CARVALHO, Salo de. (Org.). Direitos

Humanos e Globalização:fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica. 2.ed. Porto Alegre: Edipucrs,

transnacionais” são aqueles que surgem a partir de relações entre ordens jurídicas estatais, internacionais, suprarregionais etc. 59 . Portanto, quando se fala em processo de transnacionalização quer-se referir a qualquer tipo de processo que acarrete problemas que transcendem as limitações territoriais do Estado nacional.

Ao lado da globalização econômica, merece especial destaque a globalização da política. Esta faceta ainda é muito incerta e tem se desenvolvido mais no âmbito teórico. A progressiva internacionalização de uma série de questões faz surgir propostas de supranacionalização da política e da governança. Tenta-se pensar o cenário internacional de forma equivalente ao Estado nacional. Propõe-se a construção de um governo global para que as relações deixem de ser marcadas pela horizontalidade e anarquia para ser pautada pela verticalidade e pela ordem. Evidentemente, as propostas não deixam de sugerir instrumentos democratizantes. As controvérsias sobre o papel da Organização das Nações Unidas, seu surgimento, sua força política, sua função etc., são discussões que se relacionam diretamente com a transnacionalização da política. Contudo, a efetivação prática de tais propostas foge à realidade. A sociedade mundial é marcada, ao nível de Estados, por uma fortíssima assimetria. Ou seja, diferentes Estados têm forças diferentes. Isto faz com que a construção de um governo global acabe por legitimar o uso da força por esses Estados60. A política, entendida como mecanismo de produção de decisões vinculantes, mesmo em tempos de globalização, ainda é marcadamente estatal61.

Parece relevante, ainda, falar da globalização como um processo cultural e educativo. A interação entre culturas é, sem dúvida, o aspecto mais antigo do processo de formação de uma sociedade mundial. Desde a antiguidade, povos e culturas diferentes se relacionam reciprocamente pelos mais diversos motivos: políticos, econômicos, bélicos etc. O grande diferencial observado no século XX, especialmente na sua segunda metade, é a facilitação da comunicação entre pessoas ao redor do mundo e do acesso à informação. Contatos e compartilhamento de dados/notícias que antes não seriam possíveis ou extremamente dificultosos ou atrasados são viabilizados através da imprensa e da internet. Este processo é totalmente desvinculado do Estado62, considera irrelevantes as fronteiras e rompe com distâncias. Atrelado a isto, a interação cultural é facilitada pelo aumento de investimento em intercâmbios educacionais. Assim, estudantes de diversos países e de culturas distintas

59 NEVES, Marcelo. Introdução. In: ______. (Coord.). Transnacionalidade do direito:novas perspectivas dos conflitos entre ordens jurídicas. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 10.

60TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Teoria pluriversalista do direito internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 26-39.

61 NEVES, Marcelo.Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 30-31.

“migram” para outros para aprimorar seus conhecimentos e, em consequência, promovem intercâmbio cultural com o país que os recebem63.

É possível argumentar que esta faceta da globalização possuiria um reverso: a homogeneização cultural. Os contatos culturais promovidos pela ampliação dos meios de comunicação e pela facilitação da locomoção, poderia ser dito, não promovem mais pluralidade e diversidade, mas homogeneidade e perda de identidade. Contudo, é possível dizer que, embora este risco seja real, é perceptível que todo movimento de homogeneização estimula, de forma orgânica e espontânea, um movimento de reafirmação da identidade e, com isso, da heterogeneidade. A ampliação das possibilidades ressignifica a identidade. Como afirma Bernardo Gonçalves Fernandes, “a globalização se refere, antes de tudo, a uma complexa rede de modificações na relação tempo-espaço, através da intensificação das relações sociais em escala mundial”, mas não só isso, “pois a mesma está irremediavelmente ligada à ‘vida local’”. Portanto, “a globalização é transnacionalização, e ao mesmo tempo, nova localização. A globalização não só puxa para cima, mas também empurra para baixo, criando sempre novas pressões por autonomia local”64.

Identidade e localidade podem, e aqui devem, ser entendidas de forma ampla. Não se trata apenas de questões culturais não institucionais. A “face formal” dos Estados, suas instituições e seu direito também possuem identidades diretamente relacionadas com sua localidade, e isto é algo que não deve ser demolido ou desconstruído. Desta forma, o aconselhável aparenta ser que se estimule, mesmo no contexto da transnacionalização, a luta por identidade e localidade. Estes temas serão mais bem explorados na sequência.

Para encerrar este item, cabe dizer que é possível conceber o processo de transnacionalização como uma intensificação da sociedade mundial65. Niklas Luhmann analisa a questão a partir do seu conceito de sociedade como comunicação. A comunicação é a operação que marca e distingue a sociedade dos sistemas sociais. Tudo o que é sociedade é comunicação. Fora da sociedade não há comunicação. Se não há comunicação não há sociedade.

Desta forma, as sociedades antigas não eram sociedades mundiais, pois a comunicação era restrita a um determinado espaço e a uma determinada noção de mundo. Contudo, a partir de um processo que se inicia no século XVI, o mundo passa a ser totalmente

63TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Teoria pluriversalista do direito internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 57-68.

64 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Direito constitucional & democracia: entre a globalização e o risco. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 51.

65 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Trad.: Javier Torres Nafarrate. Cidade do México: Universidad Iberoamericana/Herder, 2006, p. 108 e ss.

“descoberto”. As possibilidades comunicativas expandem-se cada vez mais, e esta sociedade mundial consolida-se no século XIX com a instituição de um único tempo mundial. Isto quer dizer: “en cualquier lugar del globo terráqueo – independientemente de la hora local del lugar – puede establecerse simultaneidad con todos los otros lugares y comunicarse en todo el mundo sin pérdida del tiempo”66. Este fenômeno altera o próprio conceito de mundo67.

O grau de desenvolvimento atual é tão marcante que a própria sociedade se enxerga como sociedade mundial. Ou seja, como afirma Marcelo Neves, a sociedade contemporânea identifica-se a si mesma como sociedade mundial, ela se auto-observa e autodescreve como global/mundial68.

Isso não significa, contudo, que esta concepção de transnacionalização impossibilite percepções e culturas locais, ou mesmo, deslegitime a política e o direito desenvolvidos dentro de espaços estatais-territoriais. Como afirma Luhmann, “la expresión sociedad del mundo debe indicar que cada sociedad [...] construye un mundo”69. Além disso, não cabe falar

(ainda?) em política global, pois os mecanismos de legitimação democrática de decisões vinculantes ainda são prioritariamente estatais70.

Luhmann, entretanto, ainda afirma que o sistema jurídico só é compreendido a partir de delimitações territoriais-estatais71. Sistemas sociais como a economia, a técnica, a ciência, o amor, a educação e os meios de comunicação, para o autor, não respeitam estas delimitações territoriais. Esta não é a perspectiva adotada por este estudo.

Como se verá adiante, é perceptível e evidente que normas jurídicas produzidas fora dos procedimentos democráticos realizados no interior do Estado nacional vem servindo de base para decisões judiciais. Uma “ordem jurídica internacional” vem se desenvolvendo por vezes sem o Estado e por vezes contra ele. Mais importante para os fins deste estudo, contudo, é perceber que juízes e tribunais de diferentes instâncias e competências ao redor do globo vêm se comunicando uns com os outros para resolver questões constitucionais similares72, postura esta defendida e estimulada por uma série de juristas.

66LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Trad.: Javier Torres Nafarrate. Cidade do México: Universidad Iberoamericana/Herder, 2006, p. 111.

67 Ibid., p. 115.

68 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 27. 69 LUHMANN, op. cit., p. 117.

70 NEVES, op. cit., p. 31. 71 LUHMANN, op. cit., p. 125.

72 Marcelo Neves chama este fenômeno de entrelaçamento de ordens estatais, internacionais, supranacionais e locais a partir do que ele chama de transconstitucionalismo (cf. NEVES, op. cit., p. 34). Voltar-se-á a este tema mais a frente.

A título de conclusão, cabe dizer que este fenômeno multifacetado que se chama, aqui, de transnacionalização é, além de irreversível, inevitável, irremediável e afeta a todos73. E, como tudo que é inevitável e irreversível, a transnacionalização gera angústia, pois, em boa medida, está longe do controle individual. Entretanto, disso não se deve concluir que controle algum é possível e que só consequências danosas ocorrerão.

A pergunta correta não é como sair do processo de transnacionalização. Isso parece impossível e irreal. A pergunta certa é como entrar corretamente no mesmo. Ou melhor: como jogar o seu jogo da melhor forma possível. Levar a globalização a sério74 é não ignorá-la e tirar dela o maior proveito possível. Para o direito, isso irá requerer um esforço teórico grande, tanto para a teoria do direito,quanto para a teoria da constituição, campos de estudo a que esta pesquisa se direciona. Como afirma Alfonso de Julios-Campuzano, as “alterações que a globalização está introduzindo no ordenamento geopolítico não podem escapar a uma análise jusfilosófica”. Dentre outros motivos “porque sua influência alcança de cheio o mundo jurídico e se projeta em formas específicas de juridicidade que estão redefinindo as questões mais exigíveis de justiça, dos direitos humanos e da democracia”75.

Conforme referido, este estudo não pretende realizar um aprofundamento em todos os meandros que a transnacionalização acarreta para o direito. O recorte metodológico focará, de forma geral, na progressiva expansão e transterritorialização do constitucionalismo moderno no contexto de formação de uma sociedade mundial e, de forma específica, em uma das marcas deste fenômeno: as interações judiciais transnacionais em matéria constitucional. Ora, se uma das manifestações claras da transnacionalização é a expansão e facilitação da comunicação ao redor do mundo, parece bastante evidente que o contato dialógico entre julgadores ao tratar de temáticas similares e “essencialmente” constitucionais é uma expressão deste fenômeno. Não obstante o foco deste estudo, parece proveitoso examinar as dificuldades que as percepções modernas sobre o Estado e sobre o direito vem sendo problematizadas no contexto da transnacionalização. É o que se faz no item seguinte.

73BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Traduzido por Marcus Penchel. Rio de

Janeiro: Zahar, 1999, p. 7.

74 Expressão de: GIDDENS, Anthony. A terceira via e seus críticos. Trad.: Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 125-163.

75 JULIOS-CAMPUZANO, Alfonso de. Os desafios da globalização: modernidade, cidadania e direitos

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