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1.1 SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO E DA CIÊNCIA PÓS-MODERNA CRÍTICA

1.1.3 A Práxis no Processo de Construção do Conhecimento

Para expor e compreender a práxis no processo de construção do conhecimento recupero discussões relativas ao pensamento da teoria do conhecimento na perspectiva da dialética histórica de Antônio Gramsci. Gramsci elaborou uma concepção que coloca em interação a filosofia e as linguagens do senso comum. Visualizou que o bom senso, a forma de conhecer elaborado, é uma forma superior de pensamento que eleva o homem a uma perspectiva crítica de concepção de mundo. Para fazer suas exposições inicia no livro Concepção Dialética da História com a premissa que “todos os homens são filósofos” (GRAMSCI, 1984, p. 11). Para demonstrar esta afirmação indica que a linguagem, o senso comum, o bom senso, a religião popular e o folclore são noções e conceitos determinados e que indicam a concepção de mundo, sistemas de opiniões, modos de ver e de agir identificados com determinados grupos sociais.

A concepção gramsciana não é, no entanto, passível em relação às diversas formas de conhecimentos. Ao reconhecer a diversidade inicia e elabora uma crítica às formas de pensar. Identifica duas concepções filosóficas distintas. A primeira associa a um pensar mecanicamente imposto pelo ambiente exterior, em que há uma participação inconsciente em uma determinada concepção de mundo. A segunda perspectiva está entrelaçada com o pensar consciente, também denominado de orgânico, que significa a elaboração da própria concepção de mundo de maneira crítica, escolhendo a “própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não aceitar do exterior, passiva e servilmente...” (GRAMSCI, 1984, p. 12).

Para a apreensão da teoria do conhecimento de Gramsci acompanho a concepção que elabora em relação ao conceito e à diversidade de percepções da filosofia. Em relação ao

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questionamento o que é filosofia, terá pelo menos três respostas iniciais que são importantes para a compreensão do processo de produção do conhecimento. A primeira está em conformidade com o senso comum ou na linguagem comum que indica que é “[...] tomar as coisas com filosofia” (Id Ib. p. 15). Esta é uma concepção que indica o distanciamento da linguagem do dia-a-dia em relação ao pensamento elaborado, demonstrando ainda um desprezo em relação ao pensar organizado. Condiz com atitudes de alienação e de repetição de visões de mundo que não correspondem ao pensamento próprio, mas a reprodução mecânica de pensamentos.

Além desta visão, o autor traz duas outras formas de interpretação. A segunda, na ordem de proposição do autor, diz que a filosofia é um “[...] convite implícito à resignação e à paciência” (GRAMSCI, 1984, p. 16). Esta está associada a uma concepção de filosofia idealística, desligada das questões do mundo vivido pelos homens. Representa a formação de um pensamento que leva a consciência para fora das relações de poder, de produção, de convivência. É uma abstração alienante, provocadora de uma consciência metafísica, que descola o conhecimento do cotidiano da vida dos seres humanos.

A terceira interpretação está ligada a um “[...] convite à reflexão, à tomada de consciência de que aquilo que acontece é, no fundo, racional e que assim deve ser enfrentado, concentrando as próprias forças e não se deixando levar pelos impulsos instintivos e violentos” (GRAMSCI, 1984, p. 16). A partir desta concepção Gramsci começa a demonstrar que há um conhecimento que é produzido pelos homens nas interações que estabelecem em seu mundo cultural. A consciência que as formas de pensar estão interrelacionadas às diversas maneiras de produção social da existência é uma proposição fundamental do pensamento de Gramsci. Esta atitude intelectual é provocadora do pensamento reflexivo, que se volta sobre si mesmo e sobre a realidade empírica e histórica para descobrir as conexões entre a existência e o pensamento.

Esta teoria cognitiva traduz a necessidade de uma filosofia crítica. Para apreender o sentido da criticidade apresento seis premissas indicadas por Gramsci e que são relevantes para termos clareza em relação à perspectiva da produção social do conhecimento. A primeira diz da “consciência da historicidade: fase de desenvolvimento, contradição com outras concepções” (Id. Ib. p. 13). Esta premissa traduz a ideia que todo conhecimento é localizado historicamente. A temporalidade das concepções cria identidades cognitivas para/com os grupos sociais. Portanto os tempos não são lineares e únicos. Os conhecimentos são produzidos em momentos distintos e se

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colocam em contradição com outras temporalidades porque simbolizam as visões de mundo de grupos sociais distintos, com culturas, economias e vivências sociais diferentes e diferenciadoras.

A segunda premissa da teoria crítica do conhecimento afirma que “[...] toda linguagem contém os elementos de uma concepção de mundo e de uma cultura, [...] a partir da linguagem de cada um, é possível julgar da maior ou menor complexidade da sua concepção de mundo” (GRAMSCI, 1984, p. 13). Em Gramsci as elaborações e as significações das linguagens têm muito peso na interpretação das visões de mundo. É com elas que se percebem as posições e as opções filosóficas dos diversos sujeitos sociais. A simbologia é a representação dos significados de mundo que são compartilhados e que é a expressão do conhecimento que condiz com as formas de vida. A linguagem está em conexão com as estruturas e as relações sociais de produção dos bens materiais e da produção social do conhecimento. Há uma correlação entre as sociedades complexas e as percepções de mundo complexificadas, visto que os sujeitos percebem e expressam as interrelações e interdependências pelas quais a realidade é constituída e que é ao mesmo tempo constituinte das relações sociais e das consciências das pessoas.

A terceira afirmação mostra que “[...] não existe uma filosofia em geral: existem diversas filosofias ou concepções de mundo, e sempre se faz uma escolha entre elas” (GRAMSCI, 1984, p. 14). Estas filosofias estão ligadas às posições dos sujeitos nas estruturas e nas relações sociais. Com esta assertiva compreendo que Gramsci tem uma proposição de conhecimento que alicerça uma perspectiva de mundo relacionada com os contextos sociais vivenciados. Entre as diferentes experiências está a da vivência de classes sociais, que constituem a concepção de mundo a partir das contradições entre as condições materiais de vida. As diferentes materialidades são geradoras de filosofias diferentes. O pensamento é contextualizado, e ao se historicizar em sociedades com estruturas sociais contraditórias traduz conhecimentos que são a expressão de filosofias com concepções de vida diferenciadas. Ao criticar o pensamento e as condições materiais de existência os homens optam por filosofias diferentes, porque optam por estruturas e relações sociais distintas.

Como “[...] em cada época coexistem muitos sistemas e correntes de filosofia; explicar como eles nascem, como se divulgam, porque na divulgação seguem certas linhas de separação e certas direções” (GRAMSCI, 1984, p. 15), é um compromisso conscientizador da filosofia crítica, que demonstra a quarta premissa. A criticidade está em perceber as diferenças e conceber que elas são as expressões de mundo de grupos sociais construídos a partir dos interesses de

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classe social. Há uma materialidade nas ideias e por isso que determinados sistemas filosóficos são tornados populares e outros são ocultados. O direcionamento do conhecimento está em consonância com a aceitação ou a negação de determinadas premissas. Dizer da universalidade abstrata do pensamento é estar em concordância com a filosofia iluminista que fundamentou a sociedade moderna e que é a base constitutiva das relações sociais e das materialidades da concepção de mundo em conformidade com os interesses da classe burguesa. Afirmar a diversidade de pensamentos em consonância com as configurações dos grupos sociais é problematizar as possibilidades de geração de conhecimentos e a socialização para a afirmação de concepções de mundo inerentes aos grupos sociais ligados à classe trabalhadora.

Todo processo intelectual é institucionalizado está afirmada na quinta premissa. Para ser direcionado o pensamento terá nas instituições aportes para ser desenvolvido. As instituições estão ou sob o controle do Estado ou da sociedade civil. Assim as escolas, as universidades, as igrejas, os sindicatos, os partidos políticos, os movimentos sociais são modelos institucionais que elaboram e difundem concepções de mundo em conformidade com os interesses das suas posições sociais. É, portanto “[...] necessário sistematizar, crítica e coerentemente, as próprias instituições do mundo e da vida [...]” (GRAMSCI, 1984, p. 15).

A sexta premissa demonstra que

[...] esta elaboração deve ser feita, e somente pode ser feita, no quadro da história da filosofia, que mostra qual foi a elaboração que o pensamento sofreu no curso dos séculos e qual foi o esforço coletivo necessário para que existisse o nosso atual modo de pensar, que resume e compendia toda esta história passada, mesmo em seus erros e em suas loucuras, os quais, ademais, não obstante terem sido cometidos no passado e ter sido corrigidos, podem ainda se reproduzir no presente e exigir novamente a sua correção. (GRAMSCI, 1984, p. 15).

A teoria do conhecimento de Gramsci indica que na historicidade do pensamento, aprende-se a constituição de matizes teóricos diferentes e se compreende as distintas formas tomadas pelas concepções de mundo.

Ligado ao viés da valorização da rigorosidade do pensamento, Gramsci ilustra a necessidade da filosofia científica como um processo de “[...] superação das paixões bestiais e elementares por uma concepção da necessidade que fornece à própria ação uma direção consciente” (GRAMSCI, 1984, p. 16). A cientificidade da filosofia é a indicação da existência do “[...] núcleo sadio do senso comum, o que poderia ser chamado de bom senso, merece ser desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente, [visto que] a filosofia ‘vulgar’ e

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popular, [...] é apenas um conjunto desagregado de ideias e de opiniões” (Id. Ib. p. 16). Tenho, desta forma, em Gramsci uma orientação para a não aceitação passível do pensamento do senso comum. A crítica é a proposição da inserção ativa para a elaboração do bom senso, ou do conhecimento crítico gerador da consciência e da concepção de mundo que expressa a realidade específica dos grupos sociais.

Esta perspectiva leva a proposição que foi denominada por Gramsci de filosofia da práxis, que é a capacidade intelectual de construir a “[...] unidade entre teoria e prática” (1984, p. 21), contrapondo a concepção de mundo mecanicista. A práxis é o elemento fundante de uma teoria do conhecimento que se insere no contexto da construção social tanto da realidade quanto do pensamento. O sujeito aprende com base na participação prática e transformadora da sua realidade. Na práxis não há a separação entre o sujeito e o objeto, entre a natureza e a cultura, entre a história e o cotidiano, entre o científico e o senso comum. O contínuo entre as partes é a dinâmica dialética de afirmação e negação que forma o movimento da aprendizagem e da prática. É a comunhão entre o pensamento e a ação.

A filosofia da práxis é um

[...] movimento filosófico [...] em que, no trabalho de elaboração de um pensamento superior ao senso comum e cientificamente coerente, jamais se esquece de permanecer em contato com os ‘simples’ e, melhor dizendo, encontra neste contato a fonte dos problemas que devem ser estudados e resolvidos. (GRAMSCI, 1984, p. 18).

Há um reconhecimento da necessidade de elaboração do conhecimento que eleva o senso comum. Mas tenho que explicitar este pensamento, porque Gramsci não estabelece uma rigidez de hierarquização dos conhecimentos no sentido do desprezo ao homem do conhecimento simples, no sentido de considerar o conhecimento científico superior ao conhecimento cotidiano resultante da experiência do homem simples. A práxis é a inserção do próprio homem simples que no contato com a filosofia, torna-se na relação com outros um crítico, constitui a possibilidade de compreensão das contradições sociais e dos contextos culturais. O homem simples eleva seu pensamento, formalizando o bom senso. Este conhecimento é a capacidade de elaboração filosófica de todos os homens, já que para Gramsci todos são filósofos.

A partir deste pensar, Gramsci discute o papel dos intelectuais. Em relação a estes elabora duas constatações importantes. A primeira que existe “[...] da parte dos ‘simplórios’, um sincero entusiasmo e um forte desejo de elevação a uma forma superior de cultura e de concepção de mundo” (1984, p. 17). E a segunda que falta “[...] porém, qualquer organicidade, seja de

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pensamento filosófico, seja de solidez organizativa e de centralização cultural [...]” (p. 17). Mas, para Gramsci a unidade orgânica entre o pensamento filosófico com a formação da solidez cultural das massas populares só poderá acontecer se entre os intelectuais e os grupos sociais ocorrer a unidade orgânica que também deve existir entre teoria e prática, isto é, os intelectuais devem estar organicamente ligados aos grupos sociais para elaborar e desenvolver com estes os princípios, as teorias e as práticas que sejam coerentes com os problemas e as alternativas que são colocadas como características dos grupos sociais em suas atividades práticas, que por isso também teóricas. Esta unidade constitui-se para Gramsci um novo bloco cultural e social, isto é, a mobilização orgânica entre o compromisso dos intelectuais com os grupos sociais.

Esta relação entre os intelectuais e os simples tem um sentido relevante em Gramsci, porque para ele

não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção de mundo, possui uma linha consciente moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção de mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar (GRAMSCI, 1978, p. 8). Esta assertiva demonstra que todos os sujeitos sociais são promovedores de ações práticas e teóricas para a compreensão crítica do mundo, mas não para a simples compreensão, mas para a sua transformação.

Ao definir o pensamento como um processo transformador, há a busca da compreensão do sentido da construção e da disputa da hegemonia.

A compreensão crítica de si mesmo é obtida, portanto, através de uma luta de ‘hegemonias’ políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior do fazer parte de uma determinada força hegemônica (isto é, a consciência política) é a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática finalmente se unificam. (GRAMSCI, 1984, p. 21).

Assim o desenvolvimento político do conceito de hegemonia representa além do “[...] progresso político prático - um grande progresso filosófico, já que implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequadas a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos” (Id. Ib. p. 21).

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