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1.1 SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO E DA CIÊNCIA PÓS-MODERNA CRÍTICA

1.1.2 Pensamento no Contexto Concreto

Um autor importante para a consolidação da sociologia do conhecimento foi Karl Mannheim. Na obra Ideologia e Utopia faz uma discussão do campo da epistemologia para avaliar as ciências cognitivas, elaborar uma crítica e propor caminhos para a construção de referenciais teóricos e metodológicos para os estudos sociais do conhecimento. Desta forma propõe a sociologia do conhecimento e a tese que defende “[...] é que existem modos de pensamento que não podem ser compreendidos adequadamente enquanto estiverem obscuras suas origens sociais” (MANNHEIM, 1986, p. 30). Indica que esta abordagem surgiu no esforço de desenvolver as “múltiplas conexões que se tornaram aparentes na crise do pensamento moderno, e principalmente os laços sociais entre teorias e modos de pensamento” (Id. Ib., p. 286). Com esta proposição o autor busca por um lado “[...] descobrir critérios capazes de determinar as interrelações entre pensamento e ação. Por outro lado, [...] espera desenvolver uma teoria,

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Para Berger e Lukmann “o conhecimento do senso comum é o conhecimento que eu partilho com os outros nas rotinas normais, evidentes da vida cotidiana” (p. 40).

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apropriada à situação contemporânea, envolvendo a relevância dos fatores condicionantes não- teóricos sobre o pensamento” (Op. Cit., p. 286).

Com esta teoria elabora uma crítica à epistemologia que denomina de noologia, enquanto estudo restrito da lógica interna do pensamento. Para fundamentar a construção do seu pensamento Mannheim recupera em termos históricos os desdobramentos do pensamento, identificando-o na relação com os contextos sócio-históricos. Afirma que “[...] a sociologia do conhecimento busca compreender o pensamento no contexto concreto de um histórico-social, de onde só muito gradativamente emerge o pensamento individualmente diferenciado” (MANNHEIM, 1986, p. 31). Os exemplos demonstrados na obra Ideologia e Utopia são as atitudes intelectuais dos camponeses que possuem um determinado pensar característico da sua cultura existencial, da experiência que provém das atividades desenvolvidas no campo e das relações sociais vivenciadas. A atitude intelectual camponesa se diferencia das atitudes dos intelectuais vinculados à igreja ou ao Estado que elaboram uma ideologia que tem o objetivo de demonstrar a verdade do pensamento em correlação com a posição social defendida e explicada.

Mannheim (1986) deixa claro que não podemos “[...] separar os modos de pensamento concretamente existentes do contexto de ação coletiva por meio do qual, em um sentido intelectual, descobrimos inicialmente o mundo” (p. 31). Apreendo que a coletividade vai constituindo um imaginário que a representa em termos simbólicos e materiais, formando uma unidade de legitimidade de visões de mundo que traduzem a identidade dos grupos sociais. Os valores éticos, morais e intelectuais são construídos com base nas experiências vivenciadas cotidianamente. Compreendo que esta construção intelectual não é fechada e isolada em Mannheim, pois a diferença entre o relativismo e o relacionismo, como acima demonstrei, tem a função de evidenciar que as ideias se configuram na correlação das diferentes experiências. Como não existem sociedades fechadas e isoladas nos nossos tempos, o conhecimento resulta dos intercâmbios de imagens, de valores, de pensamentos.

A aprendizagem contextualizada, portanto não é linear e unidirecional. Porque “de acordo com o contexto particular da atividade coletiva de que participam, os homens tendem sempre a ver diferentemente o mundo que os circunda” (MANNHEIM, 1986, p. 32). Vale afirmar, para a sociologia do conhecimento, a pesquisa e a produção intelectual tem um sentido de imersão nos contextos dos diversos grupos sociais. É a partir da interação dialógica que a visão de mundo é compreendida. A compreensão é uma atitude epistemológica que traduz os

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sentidos que os sujeitos sociais expressam e não uma descrição objetiva fria, distante e estatística. Distintamente representa a entrada, a participação, a quebra do estranhamento, a não separação do pensamento da ação. As ações coletivas identificam os grupos sociais que formam uma representação intelectual a partir das suas atividades. Há neste sentido a ruptura com o pensamento universalista e abstrato, porque compreender o pensamento contextualizado é localizar o universal que ao ser localizado se universaliza, porque compartilhado com outras experiências e visões de mundo. Desta forma, “[...] o conhecer é fundamentalmente um conhecer coletivo [...] uma vez percebido o fato de que a maior parte do pensamento é erigida sobre uma base de ações coletivas, somos levados a reconhecer a força do inconsciente coletivo” (Id. Ib. p. 58).

Faz-se mister compreender que “[...] o exame do objeto não é um ato isolado; ocorre num contexto permeado de valores e impulsos volitivos do inconsciente coletivo” (Op. Cit. p. 33). Apreendo esta afirmação de Mannheim no sentido que as pessoas conhecem a partir das experiências e valores compartilhados. Formam-se em termos sociológicos diversos mosaicos de aprendizagens, de conhecimentos e de valores que configuram a riqueza da diversidade intelectual, cultural e experiencial das sociedades humanas. Para a sociologia do conhecimento há a determinação intelectual de perceber e sistematizar as diferentes maneiras de conhecimentos. Se estes estão no inconsciente coletivo, a evidenciação dos valores e dos conheceres é um processo de ampliação e de aprofundamento dos conhecimentos que configuram os grupos sociais. Esta é uma atitude intelectual geradora da consciência sobre a ontologia social dos sujeitos participantes de coletividades embrenhadas de valores e de saberes.

Esta premissa gnosiológica leva a considerar uma ciência que não separa o sujeito do objeto, o pensamento da ação, o conhecimento do contexto. Além de aceitar que o conhecimento científico não é neutro, sequer a-histórico, mas perpassado por valores, ideologias, subjetividades. Há a compreensão que a objetivação é uma construção social e que “um novo tipo de objetividade pode ser obtido nas Ciências Sociais, mas não por meio da exclusão de valorações, e sim através de percepção e do controle crítico destas” (MANNHEIM, 1986, p. 33).

Este quadro que considera a ciência como valorativa, traz a evidencia que a atitude dos intelectuais tem relação com as estruturas socioeconômicas, com as relações de poder e com a formulação de um pensamento que justifica as visões de mundo de determinados grupos sociais. Esta atitude formuladora de pensamento é denominada por Mannheim de intelligentsia que é a

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relação do intelectual com determinados “[...] grupos sociais cuja tarefa específica consiste em dotar aquela sociedade de uma interpretação do mundo” (Id. Ib. p. 38). O que poderia significar um desvio intelectual para as concepções de ciência do estilo positivista se constitui para a sociologia do conhecimento uma atitude normal, porque a ciência é transpassada por valores. Portanto os cientistas sociais estão ligados a determinados grupos sociais, ou na relação inversa, determinados grupos sociais possuem seus intelectuais para justificar e explicitar sua visão de mundo.

Neste sentido o conhecimento é “[...] um processo cooperativo de vida no grupo, no qual cada pessoa desdobra seu conhecimento no interior do quadro de um destino comum, de uma atividade comum e da superação de dificuldades comuns [...]” (Op. Cit. p. 56). Compreendido desta forma, o conhecimento não é algo extraordinário, mas fruto dos contextos interrelacionais e de convivialidades cooperativas dos grupos sociais. Os conhecimentos produzidos são compartilhados e se desdobram, ou se socializam, para a descoberta de novos conhecimentos e a retroalimentação das experiências na vida cotidiana. Os saberes são um bem para o desenvolvimento societal e epistemológico coletivo, porque a origem e o fruto do conhecimento são coletivos.

Este fazer cognitivo está ligado à ideia de ideologia apresentada por Mannheim como o conceito em que “está implícita na palavra ‘ideologia’ a noção de que, em certas situações, o inconsciente coletivo de certos grupos obscurece a condição real da sociedade, tanto para si como os demais, estabilizando-a” (p. 66). Apreende-se, neste caso, a ideia fundante que a sociedade é formada por classes sociais, na qual as relações de dominação política, do controle sobre o conhecimento, a propriedade privada dos meios de produção são característicos da sociedade moderna e capitalista. Enquanto classe dominante, a burguesia produz e reproduz o conhecimento como fórmula de produção e reprodução das condições de classe social. Posso aceitar em parte que esta reprodução pode ser inconsciente para determinada parcela das pessoas em sociedade, porque está no inconsciente coletivo, mas ela deve ser complementada com a proposição que os grupos sociais, e ainda as classes sociais, possuem seus intelectuais que produzem uma interpretação do mundo. Ao obscurecer as condições reais de existência, a ideologia é uma forma de conhecimento que está em conformidade com interesses de determinados grupos sociais.

Para contrapor ao conceito de ideologia Mannheim desenvolve o conceito de utopia. Afirma que o

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pensar utópico reflete a descoberta oposta à primeira, que é a de que certos grupos oprimidos estão intelectualmente tão firmemente interessados na destruição e na transformação de uma dada condição da sociedade que, mesmo involuntariamente, somente vêem na situação os elementos que tendem a negá-la (1986, p. 67).

Embasado no princípio da contradição social, a utopia é um pensar que alicerça o pensamento nas perspectivas sociais da construção das possibilidades, enquanto movimento de ação e de conhecimento que traduz o processo de transformação social. A utopia é um pensar crítico, que desenvolve o pensamento inserido em situações concretas. O concreto como unidade formada por múltiplas determinações e dimensões, portanto complexo.

Ao interpretar a realidade como uma situação concreta, a sociologia do conhecimento na perspectiva crítica aponta para cenários de transformação que devem ser múltiplos. É neste sentido que comungo com Mannheim a ideia que aqueles sujeitos sociais que se propõem a transformar a realidade vivida não têm o domínio sobre todos os aspectos da realidade, mas tem campos obscuros pelas quais tendem a reproduzir as mesmas situações que procuram modificar. No sentido da dialética histórica a aprendizagem e a consciência das dimensões concretas são apreendidas no processo da práxis social, isto é, o aprender é localizado nos contextos históricos e culturais, e é através da prática, como ação pensada e refletida que a apreensão da realidade concreta, portanto múltipla, ocorre. Será também a prática que traduz a possibilidade da utopia concreta, que apreende as múltiplas dimensões para a transformação social da realidade social.

A sociologia do conhecimento se constitui “[...] enquanto teoria [que] procura analisar a relação entre conhecimento e existência; enquanto pesquisa histórico-sociológica, busca traçar as formas tomadas por esta relação no desenvolvimento intelectual da humanidade” (MANNHEIM, 1986, p. 286). Ela é uma ciência que ao conectar o conhecimento e a existência, os elementos não-teóricos, explicita como o desenvolvimento intelectual ocorreu e se configurou, problematiza as maneiras que o conhecimento está vinculado as especificidades das diversas organizações sociais e os interesses que estão implicados nas formas organizacionais. Podemos aferir que a sociologia do conhecimento produz referenciais tanto no sentido da ideologia quanto da utopia, isto é, tanto para os grupos sociais interessados na manutenção das estruturas sociais quanto para os que demandam conhecimentos para a transformação das condições reais vividas. Esta afirmação não condiz com a ideia da neutralidade da ciência, condiz com a postura dos cientistas e da forma de construção social do conhecimento entrelaçada com os interesses que configuram os grupos sociais.

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Apesar desta afirmativa, Mannheim constrói uma diferença entre a sociologia do conhecimento e a ideologia. Para ele “o estudo das ideologias se atribuiu a tarefa de desvendar os enganos e disfarces mais ou menos conscientes dos grupos de interesse humanos, especialmente os dos partidos políticos” (1986, p. 287). Por outro a sociologia do conhecimento

[...] não está interessada nas distorções devidas ao esforço deliberado de iludir, mas nos modos variáveis segundo os quais os objetos se apresentam ao sujeito, de acordo com as diferenças das conformações sociais. Assim, as estruturas mentais são inevitavelmente formadas diferentemente em conformações sociais e históricas diferentes” (Id. Ib. p. 287).