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2.1 EDUCAÇÃO SOLIDÁRIA: PROCESSOS CRÍTICO-PROPOSITIVOS PARA UMA SOCIEDADE ALTERNATIVA

2.1.5 Educação Solidária: uma educação relacional

Apreendo que a educação solidária é um complexo que se constitui na relacionalidade de diversas dimensões que configuram uma totalidade sociocultural, econômica e que traduz um projeto societal e epistemológico pós-capitalista. Apreendo o conceito de complexo a partir da proposição de Pistrak, apresentado e interpretado por Freitas (2009). O complexo de estudos está ligado à didática socialista dos primeiros anos da revolução russa quando os educadores buscavam dar respostas aos graves problemas de pobreza, fome e a necessidade de formar uma cultura socialista de organização e de gestão para o recém inaugurado sistema social soviético.

O complexo é uma didática que busca abranger a complexidade das temáticas discutidas com base na autoorganização dos estudantes, na compreensão da atualidade e na relação entre o trabalho e o estudo. Portanto, o complexo é uma metodologia relacional que tem como centralidade a geração da cultura da solidariedade, e esta compreendida em conformidade com as condições históricas do processo educacional. Ao dizer que a educação solidária é um complexo de estudo estou indicando que ela se constitui por uma complexidade de fenômenos que se

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interrelacionam e interdependem para gerar a cultura da autoorganização e da autogestão dos trabalhadores livremente associados.

Para ampliar e aprofundar mais algumas das questões ligadas aos fundamentos da educação solidária vou discutir situações relativas à filosofia, ética, política, economia, ecologia, ciência e tecnologia.

Quanto à filosofia considero que esta se configura na forma e nos conteúdos de como os coletivos, os movimentos sociais e as organizações populares olham, apreendem, comunicam e agem em relação ao mundo. A partir dos preceitos de Marx (1986) a concepção da filosofia não conota uma abstração racionalista e idealista, formador de um pensamento geral e desinteressado sobre a humanidade.

A filosofia passa a representar a compreensão do pensamento a partir da inserção prática dos homens e das mulheres nos movimentos reais de ação e de reflexão sobre a história, a atualidade, os contextos das contradições e das possibilidades dos processos transformadores das estruturas sociais geradoras das desigualdades sociais.

A filosofia da práxis que se formula nos movimentos contestatórios e propositivos da ação concreta do homem é o fundamento ontológico da compreensão do movimento do pensamento, que condiz com a educação solidária que tem como horizonte a crítica às realidades e a proposição de processos de superação dos contextos de exclusão social, para gerar as expectativas de vida organizadas pelas relações sociais de solidariedade.

Para tanto a educação solidária busca na ética, não o simples desenho das formas de concepção de valores que orientam as atitudes, como as relações humanas sustentadas na competição, ou nos valores individualistas, ou na configuração de um conceito de justiça que se ampara na formalidade abstrata das normas jurídicas. Conforme demonstra Pegoraro (2001) com a superação das perspectivas liberais da ética, que centra na livre iniciativa e na moral do indivíduo todos os sentidos das escolhas sociais, e abordando referenciais de base comunitárias ou societais, lançam-se escolhas éticas que tem como parâmetros a construção de relações sociais de igualdade entre as pessoas.

A liberdade neste sentido está focada para a construção de valores como a solidariedade, a cooperação, o reconhecimento do outro na sua cultura. É nesta perspectiva que se apresenta o pensamento de Freire (1983), que condiz com a ética que se assume compromissada com o outro,

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que ao ler a situação de opressão não se torna estático em relação à realidade opressora. A ética do compromisso solidário assume a co-responsabilidade de inserção social para a promoção de processos políticos e pedagógicos que tenham a humanização dos desumanizados como horizonte da ação e da reflexão. A ética solidária, da educação solidária, é um comprometer-se radical com os movimentos de transformação das estruturas sociais de exclusão para gerar estruturas e relações sociais de convivialidade solidária.

A convivialidade solidária, enquanto projeto societal, está relacionada com os processos de organização política da sociedade. A política que apreende as formas de poder na sociedade traduz maneiras distintas de compreendê-la e de executá-la. Dussel (2007) expõe a construção da política orientada por dois processos antagônicos. O primeiro ao que se refere denomina de “fetichismo do poder” e o segundo é conceituado como “poder obediencial”.

O fetichismo do poder ocorre quando há a corrupção do processo político, isto é, o desvirtuamento do poder político, quando o “Estado se afirma como soberano, última instância do poder”, ou quando os membros do Estado “crêem que exercem o poder a partir de sua autoridade auto-referente (ou seja, para si próprios)” (DUSSEL, 2007, p. 16). Na educação solidária as formas de corrupção da política, não somente na política, devem ser fortemente enfrentadas para que possam ser superadas as práticas sociais desviantes para colocar-se no caminho da construção do poder obediencial.

O poder obediencial, conforme Dussel é o “exercício delegado do poder de toda autoridade que cumpre com a pretensão política de justiça; de outra maneira, do político reto que pode aspirar ao poder por ter a posição subjetiva necessária para lutar em favor da felicidade empiricamente possível de uma comunidade política, de um povo” (p. 40). O poder está centrado na comunidade política, isto é, da coletividade organizada e que projeta ações estratégicas para o autodesenvolvimento. A autoridade se dá enquanto serviços que são compartilhados em relações de co-responsabilidades para a consecução das metas que são firmadas e que representam a vontade de realização da comunidade na sua condição política.

Na mesma obra Dussel faz ainda uma diferença da política como potentia e como

potestas. Parece-me importante incorporar estas ideias no processo de construção social de

referenciais como a educação solidária, a socioeconomia solidária, a educação popular, a educação do campo, a agroecologia, que são lutas e bandeiras dos movimentos sociais populares,

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estruturantes de ações tanto no campo da economia, da cultura, quanto proposição e da institucionalização de políticas públicas. Entre a potentia e a potestas se localizam as possibilidades de desenvolvimentos autênticos, ou o seu contrário, fontes de desvirtuamento dos processos políticos.

A potentia é o “poder que tem a comunidade como uma faculdade ou capacidade que é inerente a um povo enquanto última instância da soberania, da autoridade, da governabilidade, do político” (Id. Ib., p. 29). É a efetividade da participação dos sujeitos na construção dos referenciais e das ações que constituem os meios e as finalidades para o desenvolvimento da coletividade. É, portanto um poder instituinte, em que a busca do novo é uma constante foca mobilizadora e organizadora.

A potestas é o poder instituído, ou institucionalizado. É quando a comunidade decide “a organização como poder organizado (potestas) começa quando a comunidade política se afirma a si mesma como poder instituinte” (Id. Ib., p. 32). Enquanto a potentia e a potestas são formas de poder complementares, isto é, a potestas é a organização da potentia, e a potentia é constituinte da potestas, existirá o movimento da autenticidade do poder, porque o poder organizado é a potenciação do poder da comunidade.

Ao inverso, quando a potestas se desliga da base organizacional, ou seja, a comunidade, ocorre o desvirtuamento do poder de participação, e a comunidade torna-se o espaço da servidão para o poder constituído. Este processo é a confirmação da corrupção do poder. A educação solidária deve afirmar a construção de processos pedagógicos da cultura política autêntica nos espaços dos empreendimentos econômicos solidários, nos espaços escolares, nos espaços de proposição e de execução das políticas públicas. Vale dizer, é o processo de organização da política no seu sentido originário, de desenvolvimento da comunidade política.

A educação solidária forma as pessoas para compreender a economia como forma de produção e distribuição dos bens materiais e culturais. Há a ressignificação da economia, não mais simplesmente compreendida como a relação matemática e abstrata de variáveis da produção, do consumo, da logística relativas às leis universais do mercado de livre concorrência do capitalismo e da competição de aglomerados empresariais globalizados.

Mas e economia compreendida como a ciência e as práticas sociais que se dedicam aos processos organizacionais de empreendimentos para a produção de condições materiais e

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culturais que possibilitam o bem viver de coletividades. Nesta perspectiva a economia trata da superação de situações dominantes no modo de produção da cultura do capital como a exploração do trabalho, da apropriação dos meios de produção como propriedade privada, a degradação da natureza, a subalternização de povos e de culturas. Neste sentido que a economia enquanto a ciência do capital não responde às demandas da educação solidária que visa a superação das relações sociais de dominação e de exploração para experienciar processos sociais e cognitivos relativos às convivialidades da cultura solidária.

Qual a direção para o pensamento econômico? Forjam-se a partir das experiências concretas dos grupos sociais populares, como as experiências de cooperação da economia camponesa, um contínuo de leituras e reinterpretações dos conhecimentos e das práticas sociais coletivas para a efetividade de um modo de pensar e de fazer que tenha na economia um processo de constituição de ações e organizações solidárias.

Esta questão se torna viável quando o “desenvolvimento alternativo é formulado com base em uma crítica de fundo à estrita racionalidade econômica que inspirou o pensamento e as políticas de desenvolvimento dominantes” (SANTOS, 2005, p. 46). Fazer a crítica, reconhecer os instrumentos e os pressupostos geradores da economia do capital, mais do que o capitalismo como demonstra Mészáros (2006), porque o capital, enquanto economia e cultura, antecede e transcende o próprio capitalismo, como forma específica de formação social.

A crítica representa a capacidade interpretativa da cultura do capital, e em contraposição a existência de um movimento real de construção de referenciais para a efetividade da socioeconomia solidária. Neste sentido, “o desenvolvimento econômico é concebido como uma forma de promover melhores condições de vida para as populações em geral, e para os setores marginalizados em particular” (MÉSZÁROS, 2006, p. 46).

Vinculado ao processo de pensar organizações sociais diferenciadas provém a demanda por ciência e tecnologia que representam formas de produção e socialização do conhecimento adequadas às configurações de sociedades no geral e de grupos sociais no particular que tem nos fundamentos da solidariedade e da cooperação os princípios fundantes das relações humanas.

Encontrei nesta perspectiva respostas na teoria da crítica filosófica à tecnologia de Feenberg, em obra organizada por Neder (2010), questões relativas ao poder de informação e de organização da vida moderna segundo as prerrogativas dos articuladores e dos detentores das

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tecnologias fabricadas em laboratórios. Seguindo a lógica de Feenberg, a crítica representa ao mesmo tempo perceber as artimanhas do poder de domínio da moderna tecnologia, quanto o processo de contextualização nas relações de democratização do trabalho.

Compreendo que a dimensão da tecnologia voltada para a organização e democratização do trabalho está presente, ou é o fundamento organizador do movimento das tecnologias sociais (DAGNINO, 2004; 2007). Estas têm a correlação entre as práticas aprendentes das iniciativas dos grupos sociais populares, através dos empreendimentos econômicos solidários, bem como os saberes tradicionais testados e socializados nas coletividades culturais e sociais. Enquanto movimento, as tecnologias sociais não se constituem numa percepção presa no conhecimento tradicional, mas é a capacidade dinâmica de mover-se a partir dos conhecimentos dos povos, nas suas diversidades, desenvolvimento os saberes, ampliando e aprofundando as tecnologias e os conhecimentos como relações socioculturais autênticos, isto é, pertencentes às comunidades e aos grupos sociais, como instrumentos e processos de desenvolvimento para a promoção do bem viver coletivo.

A “ecologia profunda” conforme Capra (1996) é outro ponto de diálogo para a educação solidária, porque com este referencial percebem-se as formas das conexões, não somente dos elementos da natureza que forma uma totalidade, mas das relações e dos conhecimentos culturais, científicos e tecnológicos em relação ao conjunto relacional da natureza e da humanidade.

Este pensamento é enfatizado por Boff (2000) que defende uma ecologia que traduza a complexidade dos fenômenos da existência da humanidade. É uma propositura crítica em relação às metodologias de degradação da natureza engendradas pela exploração do homem a partir do modo de produção capitalista. A estrutura social, no pensamento ecológico profundo, é associada ao processo de formação do pensamento do homem moderno. Há neste sentido uma correlação entre a ciência, a tecnologia e os modos de vivência cultural e os processos de exploração da natureza enquanto um estoque de recursos que podem ser incorporados no processo de produção de mercadorias. Distinto deste processo, a educação solidária deve enfatizar a formação de percepções e de conhecimentos que tenham correlação com a conservação ao mesmo tempo da biodiversidade, quanto das diversidades culturais.

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