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1.2 SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO DA CIÊNCIA E A EPISTEMOLOGIA DA PESQUISA-AÇÃO

1.2.1 Propondo o Conhecimento Prudente e Pertinente

O pensamento de Borda se aproxima ao que Santos (2000) denominou, ao discutir os paradigmas emergentes, de “conhecimento prudente para uma vida decente” (p. 16). Para justificar o projeto de ciência na perspectiva da prudência, há o reconhecimento de que todo conhecimento é contextualizado. Santos afirma que estamos vivendo um processo de “transição paradigmática” e de “transição societal”.

A primeira diz referência às mudanças que estão ocorrendo no campo do conhecimento, indicando a passagem da “sociologia convencional”, centrado no “paradigma da regulação

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social” para a construção de uma teoria social pós-moderna crítica, orientada para a “emancipação social” (SANTOS, 2000, p. 15). A “transição societal” implica as reflexões sobre as transformações no campo social, indicando a passagem de relações sociais de individualismo, da sociedade patriarcal, da produção capitalista, da desigualdade social, das destruições do meio ambiente e das diversidades culturais para uma sociedade que tenha como configuração a superação das exclusões sociais, culturais e a depredação ambiental, conquistadas e experimentadas pelos movimentos sociais alicerçadas nas construções sociopolíticas e de novos conhecimentos a partir dos paradigmas alicerçados pelos movimentos feministas, pelos ecologistas, pela antiglobalização, pelo Fórum Social Mundial, pela socioeconomia solidária, pela educação do campo, pelo reconhecimento das alteridades e outras que confluem na direção da construção social daquilo que o autor denomina de paradigmas emergentes, ou ainda como desenvolve Tilly (2006), para superar o “acesso desigual ao conhecimento científico” (p. 20).

Na perspectiva da construção deste pensar, Santos recorre à teoria social crítica para “reinventar a emancipação social” (2000, p. 18), no sentido de retomada da imaginação utópica e do campo das possibilidades nas ciências sociais. Parte da teoria social crítica clássica, como os autores da Escola de Frankfurt a propunham, e reconhece neles fundamentos para a análise das contradições e dos conflitos da sociedade moderna. Destarte esta ligação, Santos considera que a teoria social crítica moderna é “subparadigmática”, isto é, “procura desenvolver as possibilidades emancipatórias que ainda julga serem possíveis dentro do paradigma dominante” (2000, p. 16).

Nestes termos, ao elaborar uma proposição de ciência pós-moderna crítica, realiza a leitura radical da realidade social e projeta uma nova posição paradigmática. O conceito de teoria crítica é entendido como

toda teoria que não reduz a ‘realidade’ ao que existe. A realidade qualquer que seja o modo como é percebida é considerada [...] como um campo de possibilidades e a tarefa da teoria consiste precisamente em definir e avaliar a natureza e o âmbito das alternativas ao que está empiricamente dado. (2000, p. 23).

Portanto, a pós-modernidade em Santos é uma desconstrução da centralidade da racionalização, ou do império da razão da ciência moderna sobre as demais formas e maneiras de conhecer e de explicar o mundo, as coisas e as relações humanas. Aproxima, assim, as teorias científicas da vida indicando que o “objetivo último da teoria crítica é ela própria, transformar-se num novo senso comum, um senso comum emancipatório” (2000, p. 17), próprio das linguagens

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e das atitudes cotidianas dos sujeitos sociais nas configurações de realidades e de relações sociais emancipatórias.

Estes referentes epistemológicos são constituintes do diálogo inteligível entre os atores coletivos das diferentes lutas, o conhecimento e reconhecimento das diversidades para a solidariedade, “que torne as diferentes lutas mutuamente inteligíveis e permita aos actores colectivos ‘conversarem’ sobre as pressões a que resistem e as aspirações que os animam” (SANTOS, 2000, 27). Fala de atores coletivos porque avalia que não há possibilidades, como propunha a teoria crítica clássica, de um único ator social, ou a classe operária de fazer a revolução social. Parte do pressuposto que as formas de dominação são múltiplas, portanto devem ser “múltiplas as resistências e os agentes que as protagonizam” (SANTOS, 2000, p. 27).

Para tratar dos processos emancipatórios aprofunda a questão do conhecimento. Define Santos que “para a teoria crítica pós-moderna [...] todo conhecimento crítico tem de começar pela crítica do conhecimento” (Id. Ib. 2000, p. 29). Discute com esta posição epistemológica a distinção entre uma “pós-modernidade reconfortante” para a qual não há uma problemática moderna a ser discutida, pois a modernidade não celebrou nenhuma promessa e por isso “há que aceitar e celebrar o que existe” (Op. Cit. p. 29). Em sentido inverso, na

pós-modernidade inquietante ou de oposição, a disjunção entre a modernidade dos problemas e a pós-modernidade das possíveis soluções deve ser assumida plenamente e deve ser transformada num ponto de partida para enfrentar os desafios da construção de uma teoria crítica pós-moderna. (SANTOS, 2000, p. 29).

Este desafio epistemológico traz implicações na configuração da ciência na produção social do conhecimento. Ao compreender que a perspectiva pós-moderna crítica é uma ciência comprometida com a emancipação social ela implica os cientistas sociais em relações de cooperação e de co-construção do conhecimento com outros atores sociais numa perspectiva de democratização da ciência, portanto de delimitação dos objetivos e dos objetos, dos conteúdos e das formas, que são negociadas com diversos atores sociais. Nesta postura a ciência é mais uma das formas de conhecer, e não a forma de conhecer, conforme definia a ciência clássica.

Santos aprofunda as implicações da ciência pós-moderna crítica contrapondo o “conhecimento-emancipação” ao “conhecimento-regulação”. Estabelece uma diferença, em termos de ignorância e de saber, que me parece fundamental. Para o conhecimento-regulação o “ponto de ignorância se designa por caos e cujo ponto de saber se designa por ordem” e para o conhecimento-emancipação o “ponto de ignorância se designa como colonialismo e cujo ponto

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de saber se designa por solidariedade” (2000, p. 29). Ora entre a ordem e a solidariedade há uma distinção dialética da construção da ciência. Significa que ao estabelecer relação com a ordem os cientistas optam pela continuidade, constituem alianças com os projetos societais hegemônicos, enquanto a solidariedade constitui-se numa opção tanto societal quanto epistemológica que constrói conhecimentos e relações sociais emancipatórias, portanto contra-hegemônicos, compromissados com as classes e/ou com os grupos sociais populares.

Ao analisar as implicações do conhecimento-emancipação, Santos apresenta três dimensões que caracterizam a construção social do conhecimento científico: a passagem do monoculturalismo ao multiculturalismo, da peritagem heróica ao conhecimento edificante e da ação conformista à ação rebelde. Vamos analisá-las:

A primeira implicação diz da passagem do “monoculturalismo ao multiculturalismo”. O monoculturalismo está vinculado ao processo histórico de domínio colonial através do qual os povos dominados foram silenciados. As culturas destituídas de sentido e de pertencimento foram estranhadas nos seus grupos de origem, o outro cultural, colonizador, se impôs. Enquanto o colonial monocultural é destruidor da diversidade de conhecimentos, de valores e de práticas sociais, o multicultural é a afirmação e o reconhecimento da alteridade na sua existencialidade, nos seus valores e conhecimentos. É neste sentido que Santos, perguntando-se sobre a possibilidade do reconhecimento do outro, que fora silenciado, afirma a necessidade de uma “sociologia das ausências” para captar as vozes, os sentidos do silêncio, porque este “é uma construção que se afirma como sintoma de um bloqueio, de uma potencialidade que não pode ser desenvolvida” (p. 30). É neste sentido que o multiculturalismo, ao romper com o silêncio torna-se solidário. A “solidariedade é uma forma de conhecimento que se obtém por via do reconhecimento do outro, o outro só pode ser conhecido enquanto produtor de conhecimento. Daí todo conhecimento emancipação tenha uma vocação multicultural” (p. 30). Além das ausências é indicada a questão das diferenças. “Só existe conhecimento e, portanto, solidariedade nas diferenças e a diferença sem inteligibilidade conduz à incomensurabilidade e, em última instância, à indiferença” (SANTOS, 2000, p. 30-31). Por esta problemática é que Santos indica a necessidade da “teoria da tradução” para a construção da “hermenêutica diatópica”, para que “uma necessidade, uma aspiração, uma prática numa dada cultura pode ser tornada compreensível e inteligível para outra cultura” (SANTOS, 2000, p. 31).

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O segundo desafio diz “da peritagem heróica ao conhecimento edificante”. Há a avaliação do processo de constituição da ciência moderna que se assenta “no pressuposto de que o conhecimento é válido independente das condições que o tornaram possível” (SANTOS, 2000, p. 31). Esta não contextualização leva a uma situação de independência da aplicação do conhecimento científico, a não ser as condições técnicas para a aplicação. A independência da ciência causa uma “falsa equivalência de escalas”, que “consiste em produzir e ocultar um desequilíbrio de escala entre a ação técnica e as consequências técnicas” (SANTOS, 2000, p. 31). No paradigma da ciência moderna a falsa equivalência de escalas é fundamental porque há um afastamento entre a capacidade de ação da ciência em relação à possibilidade de prever as consequências da ação. Esta separação é geradora da necessidade da peritagem e do “heroísmo técnico do cientista” (SANTOS, 2000, p. 31).

No contexto da discussão para o conhecimento edificante, Santos chama a atenção para a necessidade das ciências sociais críticas terem de refundar a “distinção entre a objetividade e a

neutralidade” (SANTOS, 2000,p. 31). A objetividade tem como orientação a aplicação “rigorosa

e honesta dos métodos de investigação que nos permitem fazer análises que não se reduzem à reprodução antecipada das preferências ideológicas daqueles que as levam a cabo” (SANTOS, 2000, p. 31). Ao assegurar a objetividade como rigorosidade da construção da ciência, pela qual é possível a identificação e a distinção de valores e dos pressupostos que orientam a ciência, Santos discute que esta não é uma posição fechada que leva o cientista a não realizar uma opção argumentativa que seja a favor ou contra determinadas posições. Reconhece o autor que “nem a objetividade nem a neutralidade são possíveis em termos absolutos” (SANTOS, 2000, p. 32). Por este pressuposto epistemológico afirma que as ciências são sempre contextualizadas, levando a uma postura ética em relação ao processo de produção do conhecimento e por isso “o conhecimento-emancipação conquista-se assumindo as conseqüências do seu impacto” (SANTOS, 2000, p. 32). Portanto, em termos absolutos, a neutralidade não é possível e a objetividade é necessária para o conhecimento edificante, este que contextualizado, assume como inerentes aos processos científicos a relacionalidade das ações e das conseqüências da ciência.

Este quadro leva à terceira implicação analítica e teórica que é a passagem “da ação

conformista à ação rebelde”. Nesta faz uma distinção entre o “pós-moderno de oposição” e o

“pós-moderno celebratório”. O celebratório é a “redução da transformação social à repetição acelerada do presente e se recusa a distinguir entre versões emancipatórias e progressistas de

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hibridação e versões regulatórias e conservadoras” (SANTOS, 2000, p. 37). É a atitude da conformidade ao que é, a realidade como um dado e não como processo. Como não há a possibilidade da espera com esperança, ou do futuro impregnado de alternativas ao presente histórico, que sejam geradoras de uma sociedade melhor, solidária, há um caminho de escolhas, tanto políticas quanto científicas, que são as atitudes de resignação. Esta é o entregar-se ao presente, onde a imaginação sociológica se perde na repetição melancólica de dados e de modelos consolidados, em que há a “coincidência entre a experiência e as expectativas” (SANTOS, 2000, p. 33), isto é, o futuro é igual ao vivido, e não uma reconstrução imaginada e criativa do presente que se reinventa na possibilidade da solidariedade, distinta do sistema da ordem hegemônica. A pós-modernidade de oposição, por outras vias, está ligada ao processo da “construção social da rebeldia e, portanto, de subjetividades inconformistas e capazes de indignação é, ela própria, um processo social contextualizado” (SANTOS, 2000,p. 33).