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2.2 PROCESSOS FILOSÓFICOS E SOCIETAIS DA SOCIOECONOMIA SOLIDÁRIA E AS POSSIBILIDADES DE

2.2.3 Movimentos Ideopolíticos Constituintes da Socioeconomia Solidária

sobre os sentidos contrapondo o entendimento em contextos ideológicos conservadores e em contextos de práticas sociais revolucionárias. No contexto da conservação, a solidariedade é reduzida a momentos de doações de sobras que não desestruturam as estruturas de posições sociais desiguais. A solidariedade conservadora é aquela que cria relações de dependência, de conformismos e de passividade política. Constitui-se em desencargos e descompromissos daqueles que atuam neste campo. É o projeto de manutenção e reafirmação das hierarquias sociais excludentes.

Apego-me a uma perspectiva de solidariedade que contradiz a concepção conservadora. Por isso considero: ela é desafiadora, é exigente, é compromissada, é histórica, é inserida

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politicamente, é conscientizadora. Esta acepção fora desenvolvida por Freire (1979; 1982) quando explicita que a solidariedade é um projeto social que propõe a superação das estruturas sociais dominantes e exploradoras.

Neste sentido, ela é exigente, por que não cede nada a alguém que não tenha compromisso e se insira para superar os limites da passividade e da alienação. A solidariedade é provocante porque é politizadora e conscientizadora. Ela é ativa, porque é geradora da participação. É democrática, porque é o exercício da cidadania. É autônoma, porque nega a tutela e é geradora da renda e do trabalho que consolidam a independência dos indivíduos e dos grupos sociais.

A solidariedade é um projeto social que transforma as relações, as representações, as atitudes e as estruturas que escravizam o ser humano, que gestam o “Ser Menos”. A solidariedade articula o “Ser Mais”, isto é, a superação da miséria, do analfabetismo, do desemprego, da exclusão social. Ela é desafiante e põe os indivíduos em ação, sabem o sentido da ação e constroem para ela um projeto, uma transcendência.

A popularidade da socioeconomia solidária se refere a um projeto societal que cria um contraponto e a contra-hegemonia. A hegemonia mundial está sob o patrocínio do liberalismo burguês, base ideológica da classe social dominante. Portanto a contra-hegemonia é um projeto popular no sentido de explicitar um projeto que nasceu do conjunto dos trabalhadores e se estende para as universidades, para os movimentos sociais e populares, para os sindicatos e para os governos. Desta forma, a “cultura popular exerce sua qualidade de discurso dos ‘de baixo’, pondo em relevo o cotidiano dos pobres, das minorias, dos excluídos, por meio da exaltação da vida de todos os dias” (SANTOS, 2000, p. 144).

A socioeconomia solidária não é um projeto homogeneizador e massificador. O popular, conforme Arroyo (2006) é a expressão que enuncia a diversidade de experiências e dos movimentos formadores dos movimentos sociais que constituem e constroem alternativas com o desempregado, com o sem-teto, com o sem-terra, com os sem cooperação. É uma construção ideopolítica que recupera e reconstrói o espaço da possibilidade, por isso, da utopia. Constitui-se uma ação que representa a instituição no entender de Singer (1998) de três revoluções que se complementam: a revolução cultural, a revolução política e a revolução social.

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A revolução cultural se refere ao longo processo de mentalidades e de atitudes. É uma construção que ocorre no cotidiano ligado às experiências dos sujeitos sociais e cognoscentes e as representações que desenvolvem através da simbologia, da linguagem e dos conhecimentos. A culturalidade não se faz por atos mecânicos e automáticos, mas são construções de inserções exigentes e conflitais que requerem a destruição de estruturas mentais fechadas e alienantes.

As revoluções políticas, na interpretação de Singer, foram momentos históricos de transformação das estruturas de poder, que levaram classes sociais a tomarem o controle de estados. Como macro-exemplos cita a revolução francesa, promovida pela burguesia em 1789 e a revolução de outubro de 1917 na Rússia protagonizada pelos operários e camponeses. Estes movimentos não promoveram necessariamente a revolução social, limitando-se a objetivos imediatos, ou ao processo de tomada e organização da máquina estatal, que retoma e refaz a dominação política sob a orientação de uma nova classe social.

A revolução social “designa o processo de passagem de um sistema socioeconômico (ou formação social) a outro.” E ainda “cada revolução social tem sua dinâmica própria, produzida por amplas mudanças históricas na infra-estrutura econômica e outras tantas na supra-estrutura ideológica e institucional” (SINGER, 1998, p. 10-11).

A socioeconomia solidária é um projeto que persegue as transformações culturais, políticas e sociais. Institui a partir das relações de trabalho cooperativas, da participação política democrática, da distribuição equitativa da renda, da co-responsabilização na gestão dos empreendimentos, ações e representações sociais constituintes de conhecimentos e de atitudes que desenham quadros culturais, políticos e sociais distintos dos hegemônicos. É um processo gerador da centralidade do trabalho produtivo pela organização e da cultura da cooperação (BOCAYUVA, 2009).

A socioeconomia solidária é um projeto subterrâneo, isto é, ela está sendo elaborada pelos/as trabalhadores/as em movimento e se encontra nos lugares e nos espaços que não são evidentes para grande massa populacional. No entanto o projeto solidário carrega a esperança compromissada de construção de projetos alternativos, porque ele é gestor de contra-evidências. As evidências do modelo econômico dominante são o desemprego, a fome, o analfabetismo, os menores e os idosos abandonados, a exploração humana, a degradação ecológica, a doença, a

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guerra, a concentração de riquezas, o individualismo, a competitividade e a concorrência como valores máximos.

As contra-evidências são gestadas no modo de produção da socioeconomia solidária, que tem como fundamentos, segundo Paez, o

“reconhecimento da produção social das riquezas e da sua distribuição eqüitativa, a não separação entre trabalho e meios de produção, a primazia do trabalho humano sobre o capital, a propriedade com caráter social e que deve ser empregada a favor do desenvolvimento individual e coletivo, e todo processo de gestão se assenta na coletividade do processo de produção da economia por parte da comunidade de trabalhadores” (PAEZ, 2001, p. 50-51).

Na assertiva de Lisboa a socioeconomia solidária

“é uma construção cidadã, que promove a cidadania, centrada na melhoria da qualidade da vida, no desenvolvimento humano, no benefício real que pode produzir para pessoas concretas (e não nos fluxos dos valores financeiros em circulação), adaptada às potencialidades e especificidades das condições sociais” (LISBOA, 2000, p. 54).

As contra-evidências, ou as práxis da socioeconomia solidária, são práticas, teorias, experiências e “instituições anticapitalistas [que] são sementes socialistas plantadas nos poros do capitalismo para resistir às tendências destrutivas e concentradoras da dinâmica capitalista” (SINGER, 2005, p. 114). Ao analisar o modo de produção capitalista, Singer afirma que este apresenta “brechas que podem ser aproveitadas para organizar atividades econômicas por princípios totalmente diferentes dos capitalistas e que, por isso, devem ser denominados socialistas” (Id. Ib., p. 112).

Segundo Paez e Escobar (1998) com a socioeconomia solidária contrapõem-se dois grandes projetos humanitários: o humanismo liberal e o humanismo social. O humanismo liberal nasceu com o renascimento e a filosofia iluminista, representando um projeto social que se contrapôs à filosofia e à teologia medieval que centrava sua atenção interpretativa fundamentalmente na natureza de Deus. Assim, o humanismo renascentista e iluminista constitui- se num movimento inovador das práticas e das concepções dos homens dos séculos XIV e XV.

Assimilado pela burguesia, enquanto classe social dominante, o humanismo liberal tornou-se um projeto conservador, no sentido de centrar-se no individualismo, na primazia do econômico sobre os outros campos, na realização e participação individual para o melhoramento

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do coletivo, na propriedade privada dos meios de produção como direito fundante do social, na apropriação privada dos resultados dos processos sociais de produção, a democracia enquanto um exercício formal de representação e o Estado como meio de preservação da propriedade individual e dos direitos individuais. Afirmam os autores que o humanismo liberal “es en realidad un proyecto de una clase, la burguesía, formulado desde las perspectivas e intereses de esta clase, en razón de si función protagónica en el desarrollo capitalista y en la nueva formación económica-social” (PAEZ e ESCOBAR, 1998, p. 69).

Contrapondo ao humanismo liberal, os autores sintetizaram o humanismo social explicitando os seguintes princípios. O desenvolvimento humano está embasado na realização comunitária, na interrelação com outros homens. A sociedade é concebida como uma organização autônoma e na perspectiva da participação social há um processo de articulação ascendente dos grupos sociais. O trabalho está fundamentado na cooperação, na realização comunitária e na contribuição coletiva. A propriedade respeita o princípio da função social e se organiza na socialização dos meios de produção. A economia tem a função de desenvolver o bem-estar de todos os membros da sociedade. O sistema democrático está gestado na sociedade civil organizada e participativa. O Estado tem como função a regulação para o bem estar comum, portanto é um Estado de direito social. Como valores predominantes destacam-se a solidariedade e a justiça social. Neste sentido, o humanismo social se organiza para o atendimento integral do ser humano (Id. Ib., p. 75).

Na leitura de Paez e Escobar o humanismo social

“es este nuevo proyecto emancipador el énfasis principal va a estar cada vez más centrado en la naturaleza social del hombre, en el trabajo como realización comunitaria y protagónica en la historia, en unas relaciones de producción más acordes con el caráter social del hombre y del bien común, por ser resultado y expresión de la realización humana solidaria, y en la emancipación de los pueblos y naciones de cualquier forma de denominación interna o externa y en la autodeterminación de su propia forma de desarrollo y progreso” (PAEZ e ESCOBAR, 1998, p. 71).

Associado a esta discussão Konder evidencia o desafio histórico do socialismo de “combinar as liberdades individuais com o fortalecimento da dimensão comunitária”. Esta é a grande encruzilhada, como conciliar a formação socialista capaz de fortalecer os “valores ligados a automação individual e a dos valores ligados a preservação (e à recriação) da dimensão comunitária” (p. 12). Na segunda parte da mesma obra, Frei Betto argumenta que a “contradição

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não é com a liberdade, é com a desigualdade social, [visto que a] liberdade da pessoa está diretamente vinculada a questão social” (KONDER, 2000, p. 24).