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1.1 SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO E DA CIÊNCIA PÓS-MODERNA CRÍTICA

1.1.4 Sociologia do Conhecimento e da Ciência Crítica

Santos (2006) desenvolve uma reflexão que tem como fundamento a junção da sociologia do conhecimento e da ciência. No meu entender ao mesmo tempo em que reflete sobre o processo de produção social do conhecimento, elabora referenciais problematizadores das ciências sociais na perspectiva de reinventá-la, daí o seu envolvimento e participação com os movimentos sociais e o apogeu da sua organização que é o Fórum Social Mundial. Elucido com esta informação que compreendo que todo cientista social ao propor a ciência e o conhecimento crítico, insere-se nas lutas sociais dos grupos sociais populares e com estes elabora um conhecimento novo e inovador das práticas sociais. A ciência e o cientista social se comprometem com reinterpretação dos fenômenos sociais mergulhados no próprio fenômeno.

Para alcançar o objetivo de reinventar a ciência, as tecnologias e as práticas sociais emancipatórias, Santos questiona o sentido da modernidade para as sociedades humanas olhando com maior atenção para as organizações societais do Sul4, isto é, que não são do escopo dos países denominados desenvolvidos, ou que tem o capitalismo hegemônico como sistema de produção e de formação social. Este olhar para o Sul é para compreender e apreender as experiências desenvolvidas por coletivos que constituem ações alternativas de produção social do conhecimento e das condições materiais de reprodução social da existência.

Contrapõe-se à modernidade como forma de organização social que tem no império da razão, portanto da ciência moderna, o seu modo de justificação do sentido da verdade única. Para explicitar a contraposição propõe a construção de um pensamento que denomina de pós-moderno

crítico. A pós-modernidade na direção de descentralizar a razão, ou a ciência moderna, para

promover o reconhecimento dos outros saberes. Não é a negação pueril ou a aceitação acrítica da ciência. É a constituição de referenciais que historicizam o pensamento científico e o colocam em diálogo com as demais formas de interpretação do mundo.

A adjetivação crítica na pós-modernidade é uma distinção que realiza em relação à pós-

modernidade celebratória, que é assim denominada por Santos para significar o movimento do

pensamento que se resigna aos desígnios da modernidade e que se limita a metodologias descritivas das multifacetas das realidades fragmentadas. A modernidade celebratória não é

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O Sul não é neste caso geográfico, mas a expressão e a localização de experiências de grupos sociais que tem iniciativas que possam representar modos de produção de conhecimentos e de materialidades distintas das formas hegemônicas, ou inerentes às formações sociais capitalistas.

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projetiva e se enquadra às realidades existentes. Com o pensar celebratório não haverá outras possibilidades teóricas e de práticas sociais, senão a repetição das que estão formuladas. O pensamento de Santos não é da aceitação passiva da realidade existente, mas da construção mobilizadora de saberes e de modos de produção de conhecimentos que sejam desafiadores das estruturas e das relações sociais e epistemológicas hegemônicas para a construção de uma ciência que se constitui a partir das práticas sociais dos grupos humanos, portanto imbuídos das diversidades de visões de mundo.

Para apreender estas diversidades, Santos indica uma metodologia que conceitua de teoria da tradução. Esta em primeiro plano é uma desconstrução das fórmulas metodológicas das ciências modernas que separa o sujeito do objeto, que evidencia o cientista como um sujeito neutro e um simples descritor dos fenômenos sociais, que está em consonância com os princípios de uma epistemologia universal e que é aplicada a todas as formas de vida. O trabalho de tradução é um procedimento gnosiológico que tem como finalidade apreender

[...] a imensa diversidade de experiências sociais revelada por estes processos não pode ser explicada adequadamente por uma teoria geral. Em vez de uma teoria geral, proponho o trabalho de tradução, um procedimento capaz de criar a inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis. (SANTOS, 2006, p. 779).

O trabalho de tradução, que tem como objetivo criar inteligibilidade entre as experiências dos diversos grupos sociais torna-se uma epistemologia hermenêutica. É por isso que significa um mergulho no sentido e nos significados que são construídos pelos diversos grupos sociais. A vida camponesa tem um significado particular para o coletivo de camponeses/as. As ações discursivas e as práticas sociais são elaboradas e socializadas no transcorrer de tempos e espaços que são próprios das comunidades do campo. As culturas indígenas têm seus cultos, as maneiras de interpretar a vida e a morte, a forma de organização da vida familiar e societal que identificam na sua historicidade. A ciência moderna, com algumas raras exceções etnográficas que se aproximaram das diversas visões de mundo, foi uma maneira de colonizar os conheceres do mundo. A modernidade é um movimento de hegemonização e homogeneização das culturas. É a estratégia da formulação do pensamento único e globalizador. A tradução é a capacidade dialógica entre os diversos saberes e experiências, promovedora do encontro entre povos, linguagens e culturas.

Para alcançar o objetivo proposto o autor desenvolve a ideia que é necessário interrelacionar a “sociologia das ausências” e a “sociologia das emergências”. Reconhece que são

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duas estratégias para tornar evidentes as experiências latentes e de preparar o campo de construção de alternativas. É colocar a ciência no caminho das emergências, isto é, das práticas sociais que são experienciadas fora das universidades. Mas colocar a universidade no caminho das emergências significa redesenhar a universidade, para superar as concepções e as práticas institucionais conservadoras, adequadas ao modo de produção capitalista.

Ao definir a sociologia das ausências indica que se trata de uma

[...] investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, ativamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe. O seu objeto empírico é considerado impossível à luz das ciências sociais convencionais, pelo que a sua simples formulação representa já uma ruptura com elas. O objetivo da sociologia das ausências é transformar objetos impossíveis em possíveis, e com base neles transformar as ausências em presenças. (SANTOS, 2006, p. 786).

As ciências modernas alimentaram e legitimaram as visões de mundo do ocidente. Tudo que se adaptava e estava em consonância com esta forma particular de pensar poderia ser considerado como um pensar rigoroso pelo qual o conhecimento poderia ser experimentado, controlado, demonstrado e reproduzido. Aquele conhecimento que seguisse restritamente o método poderia ser considerado um conhecimento legítimo, portanto verdadeiro. As demais formas colocavam-se no campo da irracionalidade e eram negadas como formas de conhecer válidos para a reprodução social da vida.

Desta forma, a negação cultural e científica tornou-se uma estrutura de poder que institucionalmente julgava o que poderia ser considerado como ciência. Esta estrutura é a universidade. Portanto, a universidade e as constelações de entidades regulatórias, de fomento e de financiamento tornaram-se mecanismos de controle e de legitimação. As ausências construídas são formas de poder epistemológico, por isso também políticos, culturais e econômicos que afirmam determinadas maneiras de organização social e de interpretação do mundo. A sociologia das ausências é o caminho para tornar relevantes as ausências, legitimá-las e desenvolvê-las.

Complementar à sociologia das ausências está a sociologia das emergências que “consiste em substituir o vazio do futuro segundo o tempo linear (um vazio que tanto é tudo como é nada) por um futuro de possibilidades plurais e concretas, simultaneamente utópicas e realistas, que se vão construindo através das atividades de cuidado” (SANTOS, 2006, p. 794). É o reconhecimento das múltiplas práticas que estão sendo construídas por grupos e movimentos sociais que experimentam concepções e ações para a constituição de referenciais sociais e de conhecimento alternativos aos modelos dominantes. Estas experiências são processos de

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concretização de utopias que são formuladas como crítica ao racionalismo moderno e como ações demonstrativas da viabilidade das possibilidades. As emergências estão acontecendo no campo da socioeconomia solidária, da agroecologia, do ecofeminismo, da educação do campo, da educação e da cultura popular, da democracia social (participativa e direta), da resistência dos movimentos antiglobalização, das minorias étnico-raciais. Estas iniciativas organizadas em movimentos sociais contestatórios e propositivos, influenciando a ciência, a tecnologia, as políticas públicas, as atitudes das pessoas no cotidiano e constituindo cenários para a remodelação do conhecimento. Entendemos que a sociologia das ausências e a sociologia das emergências são as expressões de ambiências sociais favoráveis aos processos de construção social das realidades sociais e por isso do conhecimento.

No movimento entre as ausências e as emergências, Santos indica a necessidade de ações voltadas para expandir o presente e contrair o futuro. “Enquanto a dilatação do presente é obtida através da sociologia das ausências, a contração do futuro é obtida através da sociologia

das emergências” (SANTOS, 2006, p. 794). Interpreto que a modernidade é o tempo acelerado,

da repetição, da não-reflexão, do produtivismo, do consumismo. O aceleramento do tempo moderno torna o presente imediato e o futuro ausente, ou distante. Portanto, expandir o presente traz a ideia da possibilidade de tornar o presente mais lento e reflexivo, isto é, do voltar-se sobre o feito e o pensado para gerar a consciência sobre a existência. A contração do futuro é romper com o vazio, e de criar a possibilidade do inédito, não no futuro ausente, mas do concreto que se realizada a partir do presente. É o entrelaçamento dos tempos, da utopia (futuro) que se forma no

topos (presente).

Na construção crítica da relação entre as ausências e as emergências, Santos elabora uma análise da razão moderna que classifica como razão indolente. Esta se manifesta de quatro formas. A primeira é a razão impotente que é “[...] aquela que não se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela própria” (SANTOS, 2006, p. 779-780). A segunda é a razão arrogante “[...] que não sente a necessidade de exercer-se porque imagina incondicionalmente livre e, por conseguinte, livre de demonstrar a sua própria liberdade” (Id. Ib. p. 780). A terceira é a razão metonímica “[...] que se reivindica como uma forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou, se o faz, fá-lo apenas para as tornar em matéria-prima” (p. 780). E a quarta é a razão

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proléptica “[...] que não se aplica a pensar o futuro, porque julga que sabe tudo a respeito dele e o

concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente” (Op. Cit. p. 780).

Dedica-se para interpretar e desenhar os desdobramentos das duas últimas, a razão metonímica5 e a razão proléptica6. No processo de exposição constrói uma dinâmica expositiva em que se colocam em interrelação as críticas às configurações ao presente e as possibilidades de desenhos do futuro. Para expressar as diversidades e as interdependências aplica o conceito de ecologia objetivando explicitar as

[...] práticas sociais e credibilizar esse conjunto por contraposição à credibilidade exclusivista das práticas hegemônicas. A ideia de multiplicidade e de relações não destrutivas entre os agentes que a compõem é dada pelo conceito de ecologia [...]. Comum a todas as ecologias é a ideia de que a realidade não pode ser reduzida ao que existe. Trata-se de uma versão ampla de realismo, que inclui as realidades ausentes por via do silenciamento, da supressão e da marginalização, isto é, as realidades que são ativamente produzidas como existentes. (SANTOS, 2006, p. 793).

Na crítica da razão metonímica, afirma que esta “é obcecada pela ideia da totalidade sob a forma da ordem” (I. Ib. p. 782) e produz lógicas ou modos de produção da não-existência. Como contraposições são apresentadas as formas ou lógicas de produção da existência e estas são adjetivadas com o conceito de ecologia para expressar a ideia da diversidade e da multiplicidade. Para esta tese apresento e discuto somente o primeiro modo de produção que se refere à monocultura do saber que “consiste na transformação da ciência moderna e da alta cultura em critérios únicos de verdade e de qualidade estética. [...] A não-existência assume aqui forma de ignorância ou de incultura” (SANTOS, 2006, p. 787).

A produção da existência se dá pela ecologia dos saberes que é a

[...] identificação de outros saberes e de outros critérios de rigor que operam credivelmente em contextos e práticas sociais declarados não-existentes pela razão metonímica. Essa credibilidade contextual deve ser considerada suficiente para que o saber em causa tenha legitimidade para participar dos debates epistemológicos com outros saberes, nomeadamente com o saber científico. A ideia central da sociologia das ausências neste domínio é que não há ignorância em geral nem saber em geral. Toda ignorância é ignorância de certo saber e todo saber é a superação de uma ignorância

5 Santos trata na razão metonímica de cinco formas distintas de monoculturas que constituem a modernidade celebratória: a monocultura do saber, a monocultura do tempo linear, lógica da classificação social, lógica da escala dominante, lógica produtivista. Em contraposição, e fundamentando a sociologia das emergências para construir o processo societal e epistemológico emancipatório apresenta cinco ecologias: ecologias dos saberes, ecologia das temporalidades, ecologia dos reconhecimentos, ecologia das trans-escalas, ecologia da produtividade. Para efeito desta tese irei me dedicar e desdobrar o pensamento ligado à ecologia dos saberes.

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A razão proléptica trata de tornar ausente o tempo futuro, é a afirmação do tempo linear, a face visível da razão indolente.

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particular. Deste princípio de incompletude de todos os saberes decorre a possibilidade de diálogo e de disputa epistemológica entre diferentes saberes. O que cada saber contribui para esse diálogo é o modo como orienta uma dada prática na superação de certa ignorância. O confronto e o diálogo entre saberes é um confronto e diálogo entre diferentes processos através dos quais práticas diferentemente ignorantes se transformam em práticas diferentemente sábias. (SANTOS, 2006, p. 790).

Para Santos enquanto a sociologia das ausências se “move no campo das experiências sociais” a sociologia das emergências se move no “campo das expectativas sociais”. O desafio é a busca na sociologia das emergências de “uma relação mais equilibrada entre experiência e expectativa” (SANTOS, 2006, p. 797). Há, portanto, uma interdependência entre o campo da sociologia das ausências e da sociologia das emergências, pois enquanto esta “expande o domínio das experiências já disponíveis, a sociologia das emergências expande o domínio das experiências sociais possíveis” (Id. Ib. p. 796).

À guisa de síntese das ideias dos autores apresentados, interpreto que as ideias de Santos que apresentei representam alternativas de processos de produção social de conhecimentos que respondem aos desafios epistemológicos e políticos apresentados pelos movimentos sociais e organizações populares. O modo de produção de conhecimentos referido não é exclusivo das universidades, mas envolve um conjunto amplo de sujeitos sociais que estão em movimento e que se colocam em várias frentes de análise e de ação.

Reconheço que a sociologia do conhecimento é a maneira de apreender o processo de produção social do conhecimento que implica em considerar as relações entre sujeitos sociais e cognoscentes, as temporalidades e espacialidades culturais e socioeconômicas. Em primeiro plano, coloco-me na perspectiva reflexiva que compreende a ciência como uma construção social. Esta traduz elementos teóricos e metodológicos relevantes para as investigações empíricas, a sistematização das informações e as análises para a interpretação de processos societais e epistemológicos que tem como ambiência a geração de conhecimentos que correspondam com os interesses e as necessidades dos grupos sociais populares.

A teoria de Berger e Lukmann, neste sentido, evidencia e explicita categorias analíticas para a contextualização do conhecimento. Mannheim é uma referência importante para a clareza da influência da cultura e das especificidades históricas dos grupos sociais e das sociedades para dizer do sentido da produção social do conhecimento.

Interpreto que Gramsci dá um passo além destes autores quando inclui, além da contextualização da ciência de Berger e Lukmann, do relacionismo de Mannheim, a ideia da

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práxis como um processo de produção social do conhecimento. Para Gramsci, a questão central da teoria do conhecimento que desenvolve não é a simples compreensão do que é o conhecimento ou como este ocorre, mas a proposição da compreensão do direcionamento histórico, ou seja, como o conhecimento é formalizado e sistematizado na caminhada de inserção política, portanto de conhecimento tanto filosófico quanto científico para promover as transformações sociais.

Em Santos, há um esquema teórico que inclui a sociologia da ciência e a sociologia do conhecimento para compreender a relação entre as formas de produção social do conhecimento, que envolve diferentes atores sociais, além dos cientistas. Este contexto relacional objetiva analisar o comportamento dos cientistas e das instituições nas quais atuam, para refletir sobre as possibilidades de constituição de conhecimentos que possam responder aos princípios de reinvenção das utopias emancipatórias. Para tanto, é necessário, ao mesmo tempo uma renovação nas ciências sociais, portanto, de uma sociologia da ciência corresponsabilizada com este objetivo, quanto a compreensão de uma sociologia do conhecimento que traduza a interação dos diversos atores na construção de um novo modo de produção do conhecimento.

1.2 SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO DA CIÊNCIA E A EPISTEMOLOGIA DA