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A presença perelmaniana: confluências históricas

sensibilidade: trânsitos retóricos

3.6. A presença perelmaniana: confluências históricas

A relevância que a noção de presença assume na teoria da argumentação perelmaniana é uma das mais interessantes manifestações da rutura que as teses do Tratado estabelecem com o paradigma da racionalidade cartesiana. A presença consiste na propriedade que um dado elemento tem de preencher o campo da consciência do indivíduo perante o qual se apresenta, e Perelman e Olbrechts-Tyteca associam-na primariamente a um fenómeno do domínio da perceção: a presença de um dado elemento na esfera percetiva faz com que este se invista de uma importância superior àquela de que se revestem os elementos ausentes dessa esfera, mesmo que se se saiba da sua existência.

Os autores do Tratado começam por ilustrar o efeito de presença com uma narrativa de Mêncio, que conta que um rei, depois de ter visto um boi destinado a ser sacrificado, sente piedade dele e ordena a sua troca por um carneiro, confessando depois que a única razão para proceder assim foi ter visto o boi mas não ter visto o carneiro. Isto é, a presença do boi destitui o carneiro da posse de estatuto idêntico, fazendo de dois seres afins (e sobre cujo destino se poderia racionalmente invocar a regra da justiça) duas entidades distintas. Quando

183 um objeto, uma imagem, um juízo, se torna presente à consciência, o seu grau de realidade reforça-se na mesma medida em que se reduz o grau de realidade dos objetos, das imagens, dos juízos alternativos. Assim, uma das virtudes incontornáveis de uma argumentação eficaz assenta na capacidade que o discurso demonstra de criar ou reforçar a presença dos aspetos estratégicos da sua linha argumentativa.

Este lugar fundamental que a presença ocupa no âmbito de uma teoria da racionalidade argumentativa – e que o Tratado reiteradamente sublinha262 – é não obstante um lugar algo desconfortável no plano epistemológico, porque é em boa parte nela que se cruzam razão e sensibilidade. Sendo absolutamente irrelevante no domínio da demonstração lógica, que opera num sistema isolado e exato, a presença é inerente a todo o exercício argumentativo, na medida em que aquilo sobre que se argumenta se encontra necessariamente inscrito numa complexa rede de dados cujas relações são confusas e que é sempre preciso selecionar, hierarquizar e organizar. Louise Karon, num dos primeiros artigos que a crítica consagrou a esta noção perelmaniana, observa justamente que a realidade não é uma construção menos hipotética do que o conceito de auditório universal, e que é através da presença que essa construção da realidade é operada: «Presence is a means by which reality is constructed» (1976: 97).

No mesmo artigo, Karon assinala igualmente o estatuto ambíguo da noção de presença, que introduz o princípio da relevância da imaginação e das emoções numa teoria eminentemente racional263. No ponto 3.5., assinalei já a abertura que o Tratado manifesta relativamente à possibilidade de um determinado recurso participar simultaneamente dos planos lógico e afetivo do discurso argumentativo. As fronteiras entre estes dois domínios apresentam, de facto, mais zonas cinzentas do que se poderia supor, e o conceito de presença perelmaniano, que procurarei sumariamente enquadrar na tradição secular da qual ele recebe um importante legado, parece-me poder ajudar a compreender os processos através dos quais a componente argumentativa dos textos d’As Farpas é muitas vezes tingida por uma dimensão afetiva.

262 «[A presença] é um fator essencial da argumentação» (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 130); «A noção de presença, de que nos servimos aqui, e que pensamos ser de importância capital para a técnica da argumentação […]» (2006: 133); «Já tivemos ocasião de assinalar […] o papel eminente que se deve atribuir, na argumentação, à presença […]» (2006: 159).

263 «Presence seems to be nothing more than a psychological concept, and one wonders why it should have a prominent place in a quite “rational” rhetoric. […] Although it differs from notions of presence appearing in eighteenth-century rhetorics, its strongest agents remain the imagination and the emotions» (1976: 97).

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Perelman e Olbrechts-Tyteca abordam a noção de presença numa perspetiva assumidamente técnica e não «filosoficamente elaborada» (2006: 133), investindo acima de tudo na identificação das técnicas e dos dispositivos suscetíveis de a produzir. O recurso à repetição como estratégia para acentuar um dado ponto264, a escolha do termo concreto e específico em detrimento do abstrato e genérico265, a opção pelo uso do presente do indicativo266 ou o emprego de certos deíticos267 são alguns dos procedimentos técnicos abordados no Tratado, em articulação com as observações através das quais a tradição retórica contribuiu para a compreensão do efeito resultante de cada um deles. No que diz respeito às figuras propriamente ditas, aquelas que os autores associam à presença são sobretudo de dois tipos: as que promovem a presentificação do objeto representado (sermocinatio268, hipotipose, enálage de tempo) e aquelas cujo funcionamento assenta na

reiteração (conduplicatio, congérie, sinonímia, metábole, etc.). Esta série poderia, no entanto, de

uma forma geral, ser alargada a toda a categoria das figuras de adição (figurae per adiectionem – cf. Lausberg, 1982: 165-197), englobando esta quer as figuras de repetição (epanalepse, anadiplose, concatenação, epífora, símploce, etc.), quer as figuras de acumulação (essencialmente enumeração e distribuição).

A recuperação que o Tratado faz de todo este património da retórica antiga indicia as raízes primitivas do conceito de presença: a ideia de que o discurso age mais eficazmente sobre o auditório quando nele se representam os objetos reforçando a sua presença remonta, naturalmente, à teorização retórica clássica. Aristóteles refere-se à virtude que o discurso tem de fazer «com que o objeto salte para ‘diante dos olhos’» (Retórica, 1410b), o que se produzirá recorrendo essencialmente a metáforas investidas de ação, isto é energeia. Mas o conceito que a teorização retórica guardará como uma das mais relevantes propriedades da expressão, e desdobrará em várias designações, é o de enargeia269, a representação vívida e precisa de um objeto que produz a sensação de que este se encontra presente. É o termo que Dionísio de

264 «A repetição constitui a técnica mais simples para criar essa presença» (2006: 162). 265 «O termo concreto aumenta a presença» (2006: 164).

266 «O presente tem essa outra propriedade de dar mais facilmente o que chamamos “sentimento de presença”» (2006: 178).

267 «O emprego inusitado do demonstrativo permite criar um efeito de presença muito vivo» (2006: 181). 268 Seguramente por lapso, a edição portuguesa grafa «sermotinatio» (2006: 196).