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Uma questão de lógica e bom senso

sensibilidade: trânsitos retóricos

3.1. Uma questão de lógica e bom senso

As Farpas apresentam-se ao leitor, no número inaugural, investidas de um propósito

singelo: elas «[d]esejam simplesmente ser a lógica e ser o bom senso», lê-se no artigo que Eça escreve a propósito da recente abertura das Conferências Democráticas do Casino. Talvez valha a pena expandir um pouco esta afirmação, devolvendo-lhe as duas curtas frases que a precedem:

Sejamos lógicos. As Farpas não são o legitimismo, nem a república, nem o constitucionalismo, nem o sebastianismo. Desejam simplesmente ser a lógica e ser o bom senso. (F: 43)

É bem conhecida a particular vinculação d’As Farpas à ideia de bom senso, herdada da questão coimbrã (cf. Medina, 2000: 45, 47; Rita, 1998: 187). Nos oito primeiros números – aqueles que são dados à estampa no ano de 1871 –, o bom senso será insistentemente objeto de referência nas crónicas queirosianas (no total são mais de duas dezenas as ocorrências da expressão), e a invocação regular deste valor, que a publicação reclama como principal tutela, obedece fundamentalmente a dois propósitos.

O primeiro prende-se com uma estratégia através da qual se pretende desde o início promover um acolhimento favorável, por parte dos leitores, das posições defendidas: estamos, por conseguinte, instalados no domínio da captatio benevolentiae. Sublinho – desde o início, porque o primeiro número abre precisamente com uma apóstrofe ao leitor de bom senso:

Leitor de bom senso – que abres curiosamente a primeira página deste livrinho, sabe, leitor – celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia ou legitimista hostil – que foi para ti que ele foi escrito – se tens bom senso! (F: 16)

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Há um curioso paralelo entre este excerto e o anteriormente citado, já que em ambos se verifica a invocação insistente daquilo que num e noutro passo são os valores que se pretende evidenciar: a lógica, o bom senso. No primeiro caso, a insistência serve fundamentalmente para propor uma hierarquia implícita nas formas de abordagem do (complexo) momento histórico que o país vive: Eça argumenta logicamente (ou quase

logicamente, segundo a terminologia perelmaniana: preenche, através de um argumento de

divisão, todo o espaço opinativo com a mesma cor severamente crítica em relação ao funcionamento do país169, e daí extrai, em nome da coerência – em nome do princípio da não contradição –, como uma consequência necessária, o apoio generalizado à iniciativa de Antero) e aproveita o ensejo para recordar ao seu leitor que a sua argumentação é isso mesmo – lógica. Mais do que isso: que a essa argumentação subjaz um modo lógico de compreender os fenómenos, por oposição aos modos ideológicos, suscetíveis de distorcerem a perceção que se tem desses fenómenos. Não se trata, portanto, rigorosamente de uma redundância, mas do apelo à mobilização de uma faculdade, seguido da manifestação de um tributo a essa mesma faculdade, de que implicitamente se defende a superioridade em relação a disposições alternativas.

Já no que diz respeito à frase inaugural d’As Farpas, é de um registo aparentemente redundante que se trata. Se dessa frase retirássemos os elementos acessórios (a oração relativa e o segundo extenso vocativo), ficaríamos com a seguinte formulação: «Leitor de bom senso […], sabe […] que foi para ti que [este livrinho] foi escrito – se tens bom senso!» A redundância, à primeira vista, desafia a própria lógica: não pode, naturalmente, o leitor de bom senso deixar de ter bom senso. Mas se há algo que aqui se torna imediatamente notório é a importância que o «bom senso» assumirá na retórica d’As Farpas.

Esta dimensão central é ainda sublinhada nos dois excertos pelo facto de Eça não se limitar a afirmar positivamente a filiação d’As Farpas neste «bom senso»: no primeiro excerto recusa expressamente filiações de natureza política; na apóstrofe ao leitor, por seu lado, declara não existir qualquer critério na seleção do perfil do destinatário d’As Farpas que esteja

169 «Temos ainda, que atualmente o grande carácter das conferências, é, segundo nos parece, a oportunidade. Há muito tempo que a opinião pública as pedia. O quê! há aí alguém que o negue? / Não o nega decerto o parlamento, onde todos os dias ministros, maiorias e oposições – diziam que o país estava desorganizado e perdido. / Não o nega decerto a imprensa que todos os dias diz que o sistema constitucional está desautorizado! (Diário Popular, Jornal do Comércio, Gazeta, etc., passim.) / Não o nega a opinião, que todos os dias diz, com uma certa convicção desleixada, nos cafés, nas ruas, nos passeios, nos estancos: – Ora! Isto está podre! / Quando a opinião, tão geral, diz que um país está perdido dentro de um sistema, coloca-se por essa mesma confissão fora do sistema e deseja, por uma propaganda nova, uma restauração social» (F: 43).

129 relacionado com aspetos como o seu estado civil, a sua situação socioeconómica ou o seu posicionamento político-ideológico170. Não se trata, por conseguinte, de dizer apenas o que

As Farpas são, mas também de dizer o que elas não são: o desenho exato do que elas são

recorta-se portanto com particular exatidão neste pano de fundo constituído pelo que elas não são – destaca-se dele, ganhando-se assim uma dimensão de contraste, de perspetiva, que de outro modo não se teria.

As virtudes retóricas desta apóstrofe ao «leitor de bom senso» são manifestas. Não restará ao leitor senão optar entre concordar com Eça, que invocará repetidamente esta qualidade171, ou, em caso de discordância, ver-se destituído dela: como observa Annabela Rita, estamos perante uma estratégia que promove a cumplicidade ou a exclusão (a atração ou a rejeição, nas suas palavras), a partir de um «mecanismo de dupla funcionalidade» (1988: 104- 5), sem aparente lugar para um meio-termo.

Temos então definido o primeiro propósito das reiteradas referências ao bom senso: trata-se de seduzir o leitor, de condicionar favoravelmente a sua leitura, de o levar a reconhecer que no desenho que As Farpas lhe apresentam do país este se deixa efetivamente perceber nos seus traços essenciais, e de promover a sua adesão aos juízos que sobre esse país elas lhe propõem – tudo isto sob a aparência de uma operação de seleção que deixa do lado de fora da comunidade de leitores habilitados qualquer espírito resistente às teses apresentadas.

O segundo propósito, que reforça o primeiro (aliás, o primeiro estaria longe de fazer sentido sem o segundo), é o de denunciar a falta de racionalidade que se manifesta em vários aspetos da vida portuguesa – política, social, moral, cultural, económica, etc. Esta é, de resto, a intenção primordial d’As Farpas: mostrar (revelar; por vezes demonstrar, ou pelo menos afetar fazê-lo, quando a via por que se opta procede de uma matriz lógica) o funcionamento caótico das instituições portuguesas172, sendo o bom senso o lugar a partir do qual se lança

170 É claro que o estado civil não poderia razoavelmente constituir critério de seleção – mas a sua presença ao pé dos outros elementos da série serve um propósito: o de sublinhar que a indiferença de que se trata é a mesma. 171 É muito frequente a palavra «leitor» surgir associada à expressão «bom senso», ou a «sensato», por exemplo: «Não é verdade, leitor de bom senso, que humoristicamente o deveríamos fazer?» (F: 17); «Deves querer que te falemos do teatro, leitor simpático, leitor de bom senso e de justiça» (F: 27); «Apelamos para ti, leitor de bom senso» (F: 43); «Tu, leitor de bom senso e de boa-fé, que não és deputado, que vais sentar-te na galeria, ou lês as sessões no jornal, responde tu, nosso amigo e nosso confidente!» (F: 48); «Queres ver, leitor de bom senso um modelo de discurso?» (F: 49); «Conheces já decerto, leitor sensato e honrado, o protesto dos conferentes, a adesão de outros cidadãos, a opinião da imprensa…» (F: 76), etc.

172 Eça referir-se-á expressamente a Portugal como um «país caótico» num dos últimos artigos do número de dezembro de 1871 – num passo em que a edição de Maria Filomena Mónica, que serve de base a este trabalho,

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este processo crítico transversal sobre a sociedade portuguesa. Deste modo, o bom senso, à partida a mais comum das qualidades (aquela que é, segundo Descartes, «a cousa do mundo mais bem distribuída» – 2008: 27), ganha n’As Farpas progressivamente um carácter de excecionalidade, pelo que aquela proposição inicial segundo a qual a condição necessária para ler As Farpas é ser dotado do traço singular do bom senso vai pouco a pouco adquirindo uma renovada pertinência. O «leitor de bom senso» verá reforçada esta convicção ao longo da existência d’As Farpas, ainda que baste o primeiro número – bastará, aliás, a primeira farpa – para ficar com uma ideia muito clara da voracidade crítica de Eça e Ramalho. Assim, à medida que vão progressivamente diminuindo as invocações ao leitor de bom senso, vai aumentando o número de referências ao bom senso quer como atitude que se pretende mobilizar para abordar um problema que esteja a ser encarado de forma equívoca ou enviesada, quer como marca de escandalosa ausência nos desempenhos sociais de diversos agentes individuais e coletivos.173

Ora, se é em nome do bom senso que As Farpas falam, elas falam então, em princípio, em nome daquele corpo de valores, de crenças, de convicções sobre as quais se espera que repouse um consenso alargado. Ou seja, o objeto de denúncia e de argumentação d’As Farpas, sob este ponto de vista, parece ser aquilo sobre o qual não deveria ser necessário argumentar, porque se esperaria que fosse da ordem da evidência, impondo-se ao bom senso por com ele chocar. As Farpas propõem-se apontar as manifestações de desconcerto nacional, os múltiplos casos em que o país, as suas instituições, os agentes que nele têm voz, poder e responsabilidades transgridem os mandamentos do bom senso, e dirigem-se a

contém um lapso de transcrição. A passagem onde aí se lê «quando se quer falar de um país católico e que pela sua decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa da Europa – citam-se, a par, a Grécia e Portugal» (F: 312) tem, na primeira edição, a lição «quando se quer falar de um país caótico […]» (Queirós & Ortigão, 1871, dez.: 74-5). Em Uma Campanha Alegre, é também «caótico» o termo que ocorre neste contexto (UCA: 235).

173 Alguns exemplos avulsos: «Vós [os dramaturgos] com a vossa severidade não tendes feito um único serviço ao bom senso, à justiça, à moral» (F: 29); «Tenhamos bom senso: escutemos a revolução, e reservemo-nos a liberdade de a esmagar – depois de a ouvir. / […] O simples bom senso indica que se deixe falar o proletário» (F: 42); «Homens que não têm família, nem trabalho, de propósito para mais livremente poderem manter a tranquilidade, que não têm outros deveres que não sejam esses – que são pagos para isso – deitam-se às 8 horas da noite, depois de terem passeado desde as 8 horas da manhã. Oh bom senso!» (F: 109); «Onde estão as nossas praças fortes? A nossa artilharia? Os nossos arsenais? […] – Nada temos, a não ser o bom senso fechado, a fronteira aberta e umas peças de artilharia a que deu fogo Camões – o que é poético – mas frágil!» (F: 110); «eles [os deputados] se votaram contra a reforma da Carta – é porque entendem que a Carta deve ser reformada! / Somente entendem mais que a reforma é inoportuna. Um homem é agarrado por dois ladrões, amarrado a uma árvore: de madrugada chegam a passar dois cavaleiros e veem ao longe vagamente na neblina o vulto: compreende-se que discutam no primeiro momento, se é ou não um homem que ali está em agonia: mas desde que verificaram que é um homem – o que se dirá do seu bom senso se eles começarem a discutir – a oportunidade de o salvar?» (F: 132).

131 leitores que, precisamente, são dotados de bom senso. Seria por isso quase desnecessária a argumentação: a simples enunciação de um facto, de um episódio, deveria bastar para que houvesse um reconhecimento das suas implicações174.

Não é esta, porém, a atitude de Eça e Ramalho, para quem ter bom senso é condição necessária para ler As Farpas, mas não é manifestamente condição suficiente para ler o mundo. A forma como Eça e Ramalho se relacionam com o seu leitor de bom senso não se pauta pelo reconhecimento de uma equiparação de estatutos e de competências. As Farpas acreditam desempenhar uma missão de revelação e, em conformidade com ela, os seus autores assumem a vigência de uma hierarquia que os coloca num patamar de ascendência em relação àqueles que os leem175. Assim, aquilo que é proposto ao leitor desde o primeiro texto é que este esteja disponível para receber uma verdade, um esclarecimento sobre o mundo, que se apresentará, pela primeira vez, decifrado perante a sua compreensão, e já não na sua face aparente e enganadora:

E a ideia de te dar assim todos os meses, enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres, mordentes, justas, nasceu no dia em que pudemos descobrir através da penumbra confusa dos factos, alguns contornos do perfil do nosso tempo.

Aproxima-te um pouco de nós, e vê. (F: 16)

Deste modo, embora todos os episódios de que As Farpas se vão nutrir configurem um desvio relativamente àquilo que seria uma ação humana sensata, a verdade é que existe neste passo inaugural o postulado de que essa avaliação não é imediata, ou automática, ou universal. Há, por isso, uma competência de leitura do mundo – uma competência hermenêutica – que é exclusiva dos autores d’As Farpas, capazes de perscrutar as sombras do mundo e de filtrar na sua matéria cinzenta e confusa aquilo que apresentam como «alguns contornos do perfil» do seu tempo, e que depois, na edição de 1890, irá adquirir o estatuto

174 Aristóteles, nos Tópicos, alerta precisamente para o facto de haver questões sobre as quais é ocioso argumentar: «Quem proponha a questão de saber, por exemplo, se é preciso ou não louvar os deuses e amar os pais, não pede mais que uma boa correção, e quem pergunta se a neve é branca ou não, só tem que abrir os olhos» (I, 11 – 105a). No Tratado de Argumentação, Perelman e Olbrechts-Tyteca observam igualmente que «[u]m facto estabelecido, uma verdade evidente, uma regra absoluta, trazem consigo a afirmação do seu carácter indiscutível, excluindo a possibilidade de defender os prós e os contras» (2006: 66).

175 Annabela Rita, no mesmo artigo, constata igualmente esta relação desigual: «O pacto de leitura é, assim, firmado entre o cronista e o seu leitor: o primeiro, reivindicando o estatuto de superioridade que lhe é conferido pelos seu saber (da realidade para além das aparências) e saber-fazer (decifrar), induz o outro a ler, convencendo-o de que ele não percebe de facto o que vê […]» (1988: 48).

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reforçado de «algumas realidades» desse tempo (UCA: 9)176. O próprio apelo «aproxima-te um pouco de nós, e vê» é revelador desse movimento de espírito que é necessário fazer: mudar o ponto de vista sobre as questões, ganhar uma nova perspetiva sobre o país – aquela que se tem no lugar a partir do qual As Farpas o olham177. A necessidade deste despertar de uma nova compreensão das coisas justifica então o recurso a uma rede de procedimentos argumentativos que se colocam ao serviço de uma retórica da revelação. Por isso o bom senso não é o único valor d’As Farpas: «As Farpas […] [d]esejam […] ser a lógica e ser o bom senso». Aquilo que Eça assume como desígnio desta publicação é, portanto, a sua vinculação a um bom senso alicerçado na lógica, ou à lógica como instrumento do bom senso.