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1.2. Realismo, naturalismo e retórica

1.2.2. Realismo e verdade

1.2.2.3. Verdade e progresso

A nova atitude científica do escritor traduz-se numa consciência acrescida da sua responsabilidade social e da importância da sua intervenção pública. Esta transformação tem sugestivamente alguns pontos em comum com aquela de que Eça nos dá testemunho ao registar a transformação que o Cenáculo sofreu com a chegada de Antero: escreve Eça que o «alarido lírico-filosófico» deu lugar ao estudo de Proudhon, «nos três tomos da Justiça e a

Revolução na Igreja, quietos à banca, com os pés em capachos, como bons estudantes». Do

regime anterior só poderiam sair, «além da chalaça, versos satânicos, noitadas curtidas a vinho de Torres, e farrapos de Filosofia fácil»; do estudo sairiam «as Conferências do Casino, aurora dum mundo novo» (AOD: 306).

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Precisamente acerca das Conferências, Eça identificaria n’As Farpas a sua «intenção científica» (tentando negar que lhes subjazesse uma «atitude política») e sublinharia a «serenidade filosófica» que as animava (F: 76-7). Trata-se de afirmar a natureza desapaixonada da atitude através da qual se encara o mundo, e esse é igualmente o princípio da literatura naturalista, que reclama (ou afeta) um semelhante desapego emocional pelos objetos sobre os quais se debruça, o despojamento de qualquer partis-pris que promova uma interferência afetiva na análise do objeto41. A célebre fórmula de Taine «Le vice et la vertu sont des produits comme le vitriol et le sucre», que Zola adota como epígrafe da primeira edição de Thérèse Raquin, representa bem esta atitude. Luciano Cordeiro, num passo já citado de um texto de 1869, não anda muito longe dessa formulação (cf. supra: 35), e Eça há de glosá-la igualmente, no texto em que traça o perfil de Ramalho Ortigão:

Constitucionais, Socialistas, Miguelistas e Jacobinos, de resto para mim, como romancista, são todos produtos sociais, bons para a Arte, quando são típicos, todos igualmente explicáveis, todos igualmente interessantes; o dever do artista é estudá- los, como o botânico estuda as plantas, sem se importar que seja a beladona ou a batata, que envenenem ou nutram. (CP: 115)

No entanto, esta serenidade (ou esta indiferença) nem sempre se articula em perfeita harmonia com a crescente convicção de que a nova literatura tem no mundo um lugar crucial; com a convicção de que lhe está reservado o lugar de farol da humanidade. O alcance último da verdade que se procura não é apenas a compreensão do fenómeno, o progressivo mapeamento racional do mundo; é a tradução civilizacional desses desenvolvimentos. Ora este objetivo derradeiro é aquele que alimenta o registo mais entusiástico. Para Júlio Lourenço Pinto, a verdade é a dádiva da ciência que permite ao homem conhecer o mundo e programar o seu futuro:

O século é essencialmente científico; a ciência, cujos horizontes tanto alargam os métodos exatos e positivos, põe ao alcance da humanidade o conhecimento da

41 Cf. «Voilà donc le rôle moral du romancier expérimentateur bien défini. Souvent j’ai dit que nous n’avions pas à tirer une conclusion de nos œuvres, et cela signifie que nos œuvres portent leur conclusion en elles. Un expérimentateur n’a pas à conclure, parce que, justement, l’expérience conclut pour lui. Cent fois, s’il le faut, il répètera l’expérience devant le public, il l’expliquera, mais il n’aura ni à s’indigner, ni à approuver personnellement: telle est la vérité, tel est le mécanisme des phénomènes; c’est à la société de produire toujours ou de ne plus produire ce phénomène, si le résultat en est utile ou dangereux. On ne conçoit pas, je l’ai dit ailleurs, un savant se fâchant contre l’azote, parce que l’azote est impropre à la vie; il supprime l’azote, quand il est nuisible, et pas davantage. Comme notre pouvoir n’est pas le même que celui de ce savant, comme nous sommes des expérimentateurs sans être des praticiens, nous devons nous contenter de chercher le déterminisme des phénomènes sociaux, en laissant aux législateurs, aux hommes d’application, le soin de diriger tôt ou tard ces phénomènes, de façon à développer les bons et à réduire les mauvais, au point de vue de l’utilité humaine» (1880: 28-29).

47 verdade que lhe dá a consciência lúcida do seu destino. Sob esta influência da ciência, que penetra luminosa e cada vez mais fundo nas caligens do incognoscível, a humanidade renova-se, e o homem moderno, tão distanciado do homem antigo pelas conceções novas do universo, orienta-se para outros ideais. (1996: 17)

Desta forma, a verdade enquanto lei científica, enquanto realidade exterior ao homem, torna-se princípio de orientação existencial no momento em que ela lhe confere a possibilidade de controlar o mundo, de o transformar segundo um programa que investe de sentido a sua existência. É a fórmula de Jacinto no auge da sua vigência: suma ciência × suma potência = suma felicidade (CS: 17). A verdade científica substitui Deus quando o homem volta a morder o fruto da árvore da Ciência e por esta via crê poder ter o controlo definitivo sobre o seu destino. «É o inverso da tradição bíblica; é o paraíso no fim», escreve Machado de Assis, que se refere igualmente à «vocação social e apostólica» do realismo (1955: 42). A explicação do mundo permite dar um sentido (na dupla aceção de orientação e significado) à existência, porque no horizonte está a ascensão a um estádio superior de compreensão do mundo, dos homens, das dinâmicas sociais e individuais, e, em última instância, a aquisição do domínio sobre o bem e o mal, sobre a virtude e o vício. Teófilo exprime deste modo essa aspiração ascensional da literatura: «Para que o realismo seja a forma definitiva da literatura positiva, é necessário que, além da verdade da forma ou expressão, sirva com essa verdade uma conceção, enfim, o intuito de uma sociedade que procura as vias do seu aperfeiçoamento» (1892: 301). Mas ninguém exprimiu tão bem esta convicção como Zola, em Le Roman Expérimental:

Quand les temps auront marché, quand on possédera les lois, il n’y aura plus qu’à agir sur les individus et sur les milieux, si l’on veut arriver au meilleur état social. C’est ainsi que nous faisons de la sociologie pratique et que notre besogne aide aux sciences politiques et économiques. Je ne sais pas, je le répète, de travail plus noble ni d’une application plus large. Être maître du bien et du mal, régler la vie, régler la société, résoudre à la longue tous les problèmes du socialisme, apporter surtout des bases solides à la justice en résolvant par l’expérience les questions de criminalité, n’est-ce pas là être les ouvriers les plus utiles et les plus moraux du travail humain? (1880: 24)

Noutro ponto da mesma obra, Zola projeta no futuro a fundação, devida ao naturalismo, de uma sociedade regida pela lógica e pelo método – logo, também por uma moral definitiva, geométrica, uma vez que, inevitavelmente, a ciência governará ainda o plano ético: «Du moment oú nous sommes la vérité, nous sommes la morale» (1880: 84). É esta atitude que leva Machado de Assis a ver na corrente naturalista «um otimismo, não só

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tranquilo, mas triunfante» (1955: 182)42. A toda esta projeção no futuro de uma realização plenamente conseguida do programa naturalista subjaz, de facto, uma crença no progresso, alimentada pelo positivismo, e também, pelo menos no caso de Eça, pelas doutrinas socialistas (a ideia de progresso é, como se sabe, fundamental em Proudhon – como também em Michelet, de resto). O pensamento determinista, por um lado, permitia explicar os fenómenos atuais e, por outro, alimentava a convicção de que se poderiam condicionar as circunstâncias determinantes daquilo que viriam a ser os factos futuros.

Não foi, no entanto, assim que realismo e naturalismo foram recebidos pela maior parte dos seus críticos – e também não foi assim que mesmo os seus representantes se reconheceram sempre. O próprio Teófilo haveria de apontar à literatura representativa destas correntes a carência de tipos positivos e a excessiva incidência sobre os aspetos mais baixos da realidade43. Eça regista a forma muitas vezes pouco esclarecida como a sensibilidade da época, educada pela matriz romântica, vinculou ao realismo e ao naturalismo as ideias de grosseria e sujidade, associando-lhes, mesmo para lá da estrita vigência literária, todas as manifestações da ordem do sórdido, do imundo, do bestial44. A crítica à nova literatura centrar-se-ia acima de tudo nas temáticas impróprias: o enfoque nos lados mais obscuros da humanidade sustenta um importante núcleo de críticas feitas à literatura realista e naturalista45. Mas os seus representantes e doutrinadores tendem a enquadrar essas

42 Acrescenta ainda Machado de Assis: «De quando em quando aparece a nota aflitiva ou melancólica, a nota pessimista, a nota de Hartmann; mas é rara, e tende a diminuir; o sentimento geral inclina-se à apoteose […]» (1955: 183).

43 «A arte e a literatura terão a sua parte negativa, atacando as instituições anacrónicas, e na sua missão positiva definindo o estado normal para que avançamos»; no entanto, Teófilo vê o Realismo estacionado na fase negativa, e com os alvos trocados: «em vez de atacar a família, ou o casamento, ou o pudor ou o dever, ou qualquer fatalidade orgânica, como se vê no realismo, há a demolir o clericalismo, o monarquismo, o militarismo, o argentarismo, e outras muitas tradições e desigualdades que embaraçam a legítima atividade humana» (1892: 302).

44 «Não tens tu reparado que, quando um jornalista, copiando no seu jornal com pena hábil a Parte de Polícia, que é o roast-beef da Imprensa, menciona um bruto que proferiu palavras imundas, nunca deixa de lhe chamar com uma ironia cujo brilho raro o enche de justo orgulho, – discípulo de Zola? Não tens notado que nos Periódicos, quando se quer definir uma maneira especial de ser torpe, se emprega esta expressão consagrada – à Zola? Não tens tu visto que, ao descrever um caso sórdido ou bestial, o homem de Gazeta acrescenta sempre, com um desdém grandioso: «Para contar bem como tudo se passou precisávamos saber manejar a pena de Zola»? Assim é, assim é! Estranha maravilha da Asneira! O nome do épico genial de Germinal e da Œuvre serve para simbolizar tudo que, em atos e palavras, é grosseiro e imundo!» (CP: 193).

45 Thérèse Raquin foi recebido em França com acusações de imoralidade, obscenidade e pornografia, como se lê no prefácio que Zola escreve para a segunda edição do romance (1868: i-ix), e para muitos, como Pinheiro Chagas, o romancista francês tornou-se a personificação do «grande corruptor, aquele cujos quadros lascivos inflamam diretamente os sentidos» (apud Pimpão, s/d: xvii). Em França, Brunetière escrevia que o naturalismo «ne recule ni devant l’indécence ni devant la trivialité, la brutalité même», dirigindo-se «aux instincts les plus grossiers des masses» (1875: 701). É, portanto, natural que em Portugal a sensibilidade instalada reagisse de forma semelhante: Arnaldo de Oliveira considera que ele «[p]rofunda tudo, e não há abismos que o façam

49 incidências temáticas num desígnio programático mais ambicioso: trata-se, ao deslocar a lente do romance para aquelas regiões normalmente consideradas indignas do olhar do artista, e por isso situadas no lado oculto da esfera literária, de inscrever o romance na própria realidade enquanto motor do seu aperfeiçoamento. Assim, quando Júlio Lourenço Pinto associa naturalismo e pessimismo, esse pessimismo é objeto de uma leitura que o vincula a uma atitude interventiva e progressista:

Este ideal tem-no o naturalismo e por isso mesmo ele é pessimista. […] [N]ão o satisfazendo o estado moral, intelectual e social da humanidade a sua crítica não pode ser otimista. O otimismo é o reduto da banalidade e da rotina: quando o espírito se conforma acomodaticiamente com tudo o que o circunda, manifesta-se a impossibilidade de um esforço qualquer para melhorar e progredir. (1996: 44)

Nesta perspetiva, a incidência sobre os aspetos baixos da realidade não traduziria a manifestação de uma sensibilidade ‘doente’ (como acontecerá posteriormente quando o decadentismo começar a afirmar-se), sendo antes a expressão de um desígnio programático de denúncia e superação dos vícios tematizados. É nestes termos que Eça se pronuncia sobre

Os Noivos, de Teixeira de Queirós: «Dê-nos na mesma corrente de arte, e com igual talento

outros [quadros] da abjeta Lisboa – é tudo o que lhe peço: e creia que terá feito um serviço social» (Cor, I: 238)46. Assim, o reflexo implacável de uma realidade suscetível de ferir a sensibilidade social é, afinal, o preço do progresso: é a «amarga ciência da vida», como lhe chama Zola47.

À sensibilidade dominante da época, pareceria sem dúvida que esta literatura nova tinha algo contra a espécie, como escreve Eduardo Augusto Vidal em 187248, e é natural que a exposição instrumental do feio ou do abjeto promovesse fenómenos de adesão ou de aversão epidérmica às suas realizações literárias, mas qualquer destas atitudes corresponderia

recuar, nem imundície que lhe faça voltar o rosto. Parece, ao contrário, procurar de preferência o que se afigura mais repugnante» (1881: 1); Camilo lamenta que os novos rumos da literatura explorem a baixa condição moral: «Se é preciso empegar no lameiral dos vícios inveterados e desonrar a época em que se escreve, pouco importa a repulsão dos olhos e os ouvidos honestos» (1907: 14); Alberto Carlos Freire de Oliveira acusa o Realismo de fotografar a realidade «pelo seu lado hediondo», fomentando o interesse por prostíbulos e tabernas, pelo adultério, pelas paixões miseráveis (cf. Palma-Ferreira, s/d: 128-130).

46 Em última instância, o derradeiro objetivo desta estratégia é, afinal, pôr em xeque a própria estabilidade das instituições consagradas: «Pobre Alencar! O naturalismo; esses livros poderosos e vivazes, tirados a milhares de edições; essas rudes análises, apoderando-se da Igreja, da Realeza, da Burocracia, da Finança, de todas as coisas santas, dissecando-as brutalmente e mostrando-lhes a lesão, como a cadáveres num anfiteatro» (M: 162). 47 «[…] nous enseignons l’amère science de la vie, nous donnons la hautaine leçon du réel. Voilà ce qui existe, tâchez de vous en arranger» (1880: 128).

48 «O realismo parece supor um não sei que de má vontade contra a espécie. E a entronização do feio, do pequeno, do detestável; é a franca exposição de quanto se topa por esse mundo mais ou menos ulceroso» (1872: 19).

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a uma compreensão limitada do projeto naturalista. A «santa missão de verdade» do naturalismo a que Eça se refere, como qualquer santa missão, pressupõe, em contraponto à elevação do desígnio, uma via sinuosa e sacrificial. Ela ficará, por isso, ligada a um certo sentido de despojamento (também estilístico), uma espécie de ascetismo (de acentuado pendor científico: é a «laboriosa observação da realidade», a «investigação paciente da matéria viva», a «acumulação beneditina de notas e documentos»), mas também à esperança numa redenção social através da arte.

Em traços inevitavelmente algo esquemáticos, é este o quadro contextual daqueles vetores d’As Farpas que serão objeto de análise nos próximos capítulos do presente trabalho. O foco incidirá essencialmente sobre os artigos que Eça de Queirós aí publica nos primeiros quinze números, entre maio de 1871 e outubro de 1872, mas sem perder de vista aqueles que, no mesmo período, saem da pena de Ramalho Ortigão.

O primeiro número d’As Farpas é rigorosamente contemporâneo das Conferências Democráticas do Casino. Na conferência que aí profere, Eça situa o realismo em oposição ao romantismo e à sua retórica, inscreve nele uma ambição de verdade absoluta e sintoniza-o com o espírito revolucionário e progressista, apontado à transformação política, social e moral dos povos. Quando, sete anos depois, ao traçar o perfil literário de Ramalho Ortigão, Eça evoca a génese d’As Farpas, a filiação que aí estabelece deste projeto no realismo é inequívoca, e é também indissociável do seu vínculo à verdade: o objetivo da publicação desde o seu início foi, escreve Eça, «obrigar a multidão a ver verdadeiro», o que coincide, nas suas próprias palavras, com o objetivo do realismo, visto que «[u]m dos fins da arte realista é obrigar a ver verdadeiro» (CP: 109). Nesse texto fundamental, Eça acaba por, subsidiariamente ao perfil de Ramalho, esboçar também o perfil d’As Farpas, identificando os seus fins (a demolição das velhas instituições, condição base para a respetiva reconstrução futura noutros moldes), os seus métodos e instrumentos (de um lado a ciência, a lógica, a argumentação; do outro o sarcasmo e o riso), mas sobretudo os seus alvos (a poesia lírica, o sentimentalismo mórbido, a «religião por chic», as «educações atrofiadoras»…), de entre os quais se destaca claramente a retórica: quer a «retórica conservadora», quer a «democrática», mas sobretudo a retórica «parlamentar», «ministerial», «régia», «burocrática»; a retórica que sustenta o «orador do parlamentarismo», o «orador ilustre» que fala em S. Bento, mas cujos «períodos escorridos […] [são] as fezes biliosas de velhos compêndios decorados»; sem esquecer aquela retórica

51 que se alimenta do «abuso do tropo», e a que atravessa a «poesia lírica», matrizes de «todo um povo agachado e trémulo de tropos e de lirismo» (CP: 109; 114-16). Se todas estas questões emergem da leitura d’As Farpas sob a forma de temáticas que polarizam inevitavelmente o interesse crítico e teórico, o modo como a carta-perfil de Ramalho as convoca reforça sem margem para dúvidas a sua centralidade na conceção e na execução deste projeto de intervenção jornalística, política, sociológica, cultural e literária a vários títulos ímpar no panorama da imprensa portuguesa do seu tempo.

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Máscaras retóricas:

enigmas e