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enigmas e decifrações

2.2. A linguagem como lugar crítico

2.2.2. A decadência do espaço público discursivo

2.2.2.1. O discurso da política

As feições do constitucionalismo tal como Eça as captou traçam-nos o retrato de um regime atolado nas inércias que ele próprio gerou: o sistema promove lutas partidárias estéreis, as eleições são uma coreografia viciada, os interesses pessoais sobrepõem-se sistematicamente aos coletivos e os políticos parecem desprovidos de qualquer capacidade para produzir ideias ou ações suscetíveis de contribuir para a organização e a direção do país. Dificilmente se encontrarão vestígios de uma figura política desenhada com benevolência na obra queirosiana; no entanto, são muitos os exemplos de benevolência no acolhimento de que essas figuras são objeto nos contextos diegéticos em que se movem. Isto aponta para uma leitura inevitável: significa que os vícios associados à classe política criaram raízes e se instalaram como cultura no sistema social. Se os agentes políticos são incompetentes no que diz respeito à produção de ideias e de ações que respondam às necessidades do Estado e ainda assim são celebrados como exemplos de talento, então é porque o critério de aferição

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das capacidades políticas se deslocou para fora do estrito âmbito das ideias propostas e das ações desenvolvidas e se fixou noutro aspeto, necessariamente acessório.

As consequências dessa deslocação e do correspondente esvaziamento da política enquanto ação definidora de formas de organização coletiva encontram-se amplamente representadas na obra queirosiana. Nela abundam os ministros ineptos, os deputados medíocres, os homens de Estado nulos – com a particularidade de, no entanto, todos eles gozarem de um prestígio alargado e serem considerados homens de talento, quando não de génio. Mesmo que, como no caso do conselheiro Gama Torres, de O Conde de Abranhos, esse génio não tenha outra manifestação senão a mesma frase irrelevante, sempre repetida, a pontuar uma existência de inércia e silêncio absolutos (cf. CA: 55-8), ou que esse talento se resuma ao esplendor que emana da larga testa de José Joaquim Alves Pacheco, em A

Correspondência de Fradique Mendes, e a mais duas ou três afirmações tão anódinas como a de

Gama Torres (cf. CFM: 161-168). Em regra, porém, as muito enaltecidas qualidades de ministros, deputados e outros atores políticos fixam-se num aspeto muito particular da sua atividade: os respetivos dotes oratórios. As competências discursivas parecem assim ocupar todo o espaço de atuação política que lhes deveria estar reservado – daí resultando a sistemática confusão entre política e retórica.

Na carta a Joaquim de Araújo acima citada, Eça referia-se à batalha que As Farpas de Ramalho travavam contra a retórica do constitucionalismo – a retórica parlamentar, ministerial, régia, burocrática. Essa batalha de Ramalho não é, na sua essência, diferente daquela que ambos começam em 1871, e que depois Eça, no que lhe dizia respeito, deslocaria para a sua obra ficcional. Mas o ataque que As Farpas de Eça e Ramalho movem à retórica não é uma ação incondicional. Num artigo do número de setembro de 1871 a que já aludi acima, Ramalho, ao criticar a forma como decorrem os debates parlamentares, deplora sobretudo o registo desqualificado, os «palavrões grotescos», o «desasseio ordinário», «a reles frescata da moderna tribuna portuguesa». O que Ramalho exige não é que no parlamento haja Demóstenes («não cremos que eles sirvam para muito, nem que deles proceda grande bem»), mas que a palavra parlamentar readquira a gravidade com que se exprime necessariamente o pensamento elevado:

O plebeísmo da palavra torna rasteira a opinião. A baixeza indecorosa do estilo é um peso que desloca insensivelmente o pensamento da sua dignidade e da sua elevação. Uma câmara que fala mal é impossível que proceda bem. Se ela tivesse conceções elevadas e retas, a sua linguagem seria indispensavelmente comedida, clara e grave. (F: 173-74)

79 Uma parte muito significativa das farpas queirosianas dedicadas à retórica política concentra-se precisamente na censura de uma prática discursiva inferior, que usa como argumento o insulto e prefere o ruído à discussão. No edição de agosto de 1871, Eça escreve uma sequência de três artigos sobre a questão da decadência do exercício parlamentar dos deputados portugueses – depois de abrir o número com um texto em que denuncia os argumentos oblíquos invocados pelos mesmos deputados para votarem contra uma reforma constitucional cuja necessidade todos eles afirmavam reconhecer. O primeiro desses três artigos, o mais violento da série, acusa o parlamento de substituir «todas as questões de administração, de política, de instrução, de dinheiro, etc.» por uma «ventania de insultos trocados, de desmentidos brutais, de agressões imbecis» (F: 139); o segundo reporta a narração de uma sessão parlamentar que resultou em autêntico motim, sendo os deputados representados «expedindo uivos, ladrando, miando, piando, grunhindo» e arremessando sobre as carteiras do parlamento «murros, socos, punhadas, encontrões, pontapés, cachações, palmadas, estoiros, cartoladas, todas as variedades sonoras de uma argumentação eloquente» (F: 139-40); o terceiro assinala novamente a vulgarização do registo ofensivo, instalado em todos os quadrantes da atividade parlamentar: «Leia-se qualquer sessão da câmara: a palavra insulto vem, volta a cada momento: coroa pomposamente os períodos: explica, comenta, argumenta e legisla» (F: 142). Mas já no primeiro número d’As Farpas Eça apontava a degradação das sessões parlamentares em termos semelhantes («A câmara tem apoiados que são apupos, outros que são insultos! Estabelecem-se a cada momento diálogos, ironias, motejos, graçolas. Uma luz bastarda cai sobre tudo aquilo» – F: 50), e no terceiro ilustraria com a agitação registada numa sessão específica, a do dia 29 de junho (mais do que agitação: «A assuada, o motim, o chasco, o charivari»), o juízo formulado no número inicial (F: 98- 100).

O que Eça deplora em todos estes passos é aquela «baixeza indecorosa» a que se refere Ramalho, e que nestes artigos comparece no seu grau mais baixo e mais indecoroso. No texto de Ramalho Ortigão, a degradação da palavra é solidária da degradação do carácter, como se, numa perspetiva semiológica, fosse o seu significante. A recuperação da dignidade oratória da câmara dos deputados, na sua perspetiva, só poderia acontecer se em cada uma das suas cadeiras «se sentasse um homem digno e um cidadão honesto inteiramente devotado à justiça» (F: 174), porque desta atitude moral emanaria necessariamente um verbo

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iluminado, como o de Lincoln82. Não estamos, na verdade, muito longe de um conceito de orador proveniente do próprio sistema da retórica: o vir bonus dicendi peritus de Catão, que postula a precedência das qualidades éticas sobre os atributos propriamente técnicos. Os próprios reparos que Ramalho faz à palavra banal, relaxada, grotesca, ou aos solecismos dos deputados portugueses, ou ainda ao «bamboleio de inflexões e de maneiras plebeias» com que estes proferem os seus discursos, são críticas enquadráveis no âmbito da condenação (retórica) do vitium contra a puritas (cf. Lausberg, 1982: 120), ou da denúncia (igualmente retórica) de uma pronuntiatio anómala. Em última instância, o que Ramalho reclama é um paradigma de homem político portador de um ethos que o invista de credibilidade enquanto orador e enquanto legislador, projetando assim um ideal de correspondência ao nível dos planos do carácter, do discernimento e da expressão – o qual não é alheio à representação que, segundo Michel Meyer, a retórica adquire historicamente no contexto da romanidade83.

Com efeito, o que anima as manifestações de repúdio da retórica política que se encontram disseminadas n’As Farpas é sobretudo a recusa de uma certa retórica – de uma retórica desqualificada. Aliás, num dos artigos que escreve para o primeiro número, Eça inclui a eloquência na enumeração das qualidades que a câmara dos deputados deveria ter mas não tem: «A câmara […] não tem princípios, nem ideias, nem consciência, nem independência, nem interesse pelo país, nem ciência, nem eloquência, nem seriedade» (F: 48). Não nos encontramos, por conseguinte, perante uma qualidade negligenciável em si mesma; marca de sofisticação, de elevação, de distinção e inteligência, a eloquência é uma competência que se espera de um deputado da nação, uma necessidade ditada pela própria dignidade das suas funções. Há nesta posição, apesar da negação do paradigma representado pela oratória de Demóstenes, seguramente uma herança clássica – a retórica sustenta os alicerces a partir dos quais se viria a constituir a ciência política (cf. Júnior, 2015), e, mesmo depois de ver perdida a sua centralidade, a verdade é que a política a preservou sempre como instrumento fundamental da sua prática (e. g. Nelson, 1987: 210; Reboul, 1991: 90). Mas este registo de uma eloquência superior, clara e grave, digna e eficaz, é no panorama do constitucionalismo um lugar vazio, rodeado de todas as modalidades da sua degradação. Por isso, na perspetiva

82 «Na tribuna moderna o homem cuja voz deixou clarões tão intensos que parecem disgregados das imortais irradiações da Bíblia, foi Abraão Lincoln, o libertador dos escravos. E, contudo, ele não era um sábio nem um erudito, e muito menos um retórico; era simplesmente um espírito profundamente democrático e um coração elevadíssimo inteiramente dedicado à humanidade» (F: 174).

83 «Les rhétoriques, où le primus movens est l’orateur, sont celles qui ont vu le jour dans le monde romain. Cet univers de pensée considère les vertus de celui qui prend la parole comme le modèle de la source exemplaire de la persuasion, en politique comme en droit» (2009: 18).

81 d’As Farpas, quando não se apupam nem insultam, os deputados interpretam a eloquência na sua forma mais inchada e exuberante, como faz Osório de Vasconcelos no exemplo abordado no ponto 2.1. – isto é, ou ficam muito aquém das suas exigências de dignidade, ou vão muito além (melhor seria dizer muito ao lado) dos seus requisitos de estilo e de erudição. Assim, o juízo queirosiano acerca da eloquência parlamentar oscila de um modo geral entre a negação perentória da sua existência84 e o reconhecimento de que ela existe, sim, mas sob uma forma desqualificada, vocacionada sobretudo para levar a cabo manobras de manipulação e ludíbrio85 – e a metáfora reiterada do papagaio como representação dos atores políticos (F: 45; 56) acaba por ser a expressão definitiva do esvaziamento desse espaço de intervenção discursiva no qual se deveria projetar a expressão de um pensamento e de uma ação estruturados e consequentes.

Uma modalidade específica da afetação retórica que será mais tarde objeto de frequentes revisitações no âmbito da produção ficcional queirosiana é aquela que resulta da contaminação da oratória parlamentar pela literatura. O universo da política é especialmente permeável a perfis provenientes do campo da criação literária, nomeadamente da poesia. Logo na farpa com que abre o primeiro número, Eça figura esse universo político como asilo natural das vocações poéticas contemporâneas86, circunstância glosada em textos posteriores, por exemplo, através da representação do deputado Pinheiro Chagas entregue a meditações líricas em plena sessão da Câmara87, ou de uma hipotética portaria de conteúdo estritamente poético88, resultado de estarem «as secretarias, como é notório, povoadas de vates líricos e outras espécies sentimentais não menos torpes» (F: 344). O resultado inevitável dessa porosidade das fronteiras que separam os dois campos é a progressiva indistinção entre os domínios do talento literário e do talento político (e nem está aqui em causa o erro de avaliação que em regra subjaz à perceção coletiva de determinadas características como manifestações

84 «A câmara não tem eloquência» (F: 49); «Não sai dela uma reforma, uma lei, um princípio, um período eloquente, um dito ao menos!» (F: 22), etc.

85 «[Eloquência parlamentar] É a série de palavras sabidas que vai de Barros e Cunha o sensível, a Osório o arrevesado – passando por Santos e Silva o facundo» (F: 325); «Com elas [as reformas] o ministro governa, entretém, ilude, caracola sobre a eloquência de aluguer, tem pretexto para governar, despachar, colocar, resplandecer e mandar […]» (F: 356); «[…] as leis são um aparato de eloquência parlamentar e não uma eficácia de organização civil» (F: 350), etc.

86 «Olha, queres tu saber, poesia lírica? – Vai-te embora, esconde-te nos conselhos de ministros ou nas secretarias de Estado!» (F: 26).

87 «O SR.PINHEIRO CHAGAS – (Deitado, fumando, com ar melancólico): /«Oh virgem pálida e triste / Branca visão doutros céus!» (F: 99).

88 «Portaria de 10 de janeiro / Ai! Adeus acabaram-se os dias / Que ditoso vivi a teu lado, / Soa a hora, o momento fadado, / É forçoso deixar-te e partir… / Secretaria do reino. – O ministro, António Rodrigues Sampaio» (F: 344-45).

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de talento). Em diversos romances queirosianos, por exemplo, encontramos reiteradamente um termo como inspirado a qualificar o poeta e o político: aquilo que deputados como Alípio Abranhos89, Carvalhosa90 ou Rufino91 fazem não é, afinal, muito diferente do labor de poetas como Artur Corvelo92 ou Tomás de Alencar93.

A recorrência desta ideia, e nomeadamente deste termo94, se por um lado ilustra o império dos lugares-comuns lexicais e conceptuais em vigor, por outro exprime algo porventura mais relevante para o caso: a matriz não-reflexiva, não-analítica das duas atividades em questão, a literária e a política. Um político inspirado – e celebrado por multidões enquanto ser em estado de inspiração – está tão longe, no universo queirosiano, de se mostrar capaz de programar e executar uma ação governativa eficaz como, no Ion de Platão, um rapsodo, ou mesmo um poeta, está longe de ser capaz de demonstrar verdadeiro conhecimento sobre a natureza da poesia que um recita e o outro compõe. A inspiração, sustenta a tese platónica, é de natureza diferente do conhecimento: ela provém de uma zona de irracionalidade pura95; sendo assim, tudo o que produz é tão-somente «apelo emocional» (Jabouille, 1988: 16). Não é outra coisa aquilo que um político inspirado está em condições de produzir: puro apelo emocional, que, para além de espetáculos capazes de animar uma sessão da câmara ou um sarau no teatro, não representa qualquer contributo efetivo em termos de programa ou ação política.

Por outro lado, as afinidades entre os universos da política e da literatura estão longe de se esgotar neste jogo de espelhos: se a atividade política é, na obra de Eça, praticamente indiscernível das práticas retóricas dos seus agentes, essas práticas estão quase sempre

89 «E Alípio, que subira à tribuna “simples Alípio Abranhos” – era, quando desceu, “o nosso inspirado Alípio Abranhos!”» (CA: 128).

90 «Era conhecido pelas suas imagens – safadas pelo uso de gerações, como velhos patacos do tempo do Sr. D. João VI – e os jornais faziam sempre preceder o seu nome do adjetivo inspirado!» (Cap: 203).

91 «– Quem é por fim esse Rufino? perguntou Carlos […]. / Ega não sabia. Ouvira que era um deputado, um bacharel, um inspirado…» (M: 583).

92 «É hoje posto à venda o livro de poesias do nosso ilustre amigo Artur Corvelo, os Esmaltes e Jóias. […] Vamos ler e falaremos de espaço desta interessante estreia do inspirado poeta» (Cap: 305); «Os Amores de Poeta são dedicados a um augusto personagem. O público espera-os ansiosamente, este debute teatral do inspirado vate» (Cap: 312).

93 «Os ombros descaíam-lhe na saudade desse mundo perdido. E parecia mais lúgubre, com a sua grenha de inspirado saindo-lhe de sob as abas largas do chapéu velho» (M: 178).

94 No caso de Carvalhosa, o narrador diz-nos que «os jornais faziam sempre preceder o seu nome do adjetivo inspirado» (Cap: 203) – e, de facto, mais tarde podemos constatar que o Século se lhe refere como «o inspirado orador Carvalhosa» (Cap: 242).

95 «[…] o poeta é uma coisa leve, alada, sagrada, e não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da razão» (534b).

83 vinculadas a uma matriz literária de inspiração romântica. Um dos percursos seguramente mais comuns do ator político enquadrado pela objetiva social dos romances queirosianos começa pela criação, na juventude, de uma obra literária – normalmente poética – de gosto romântico, passa pelo reconhecimento, por parte de um círculo relativamente estreito e medíocre, do talento literário exibido nessa obra, e culmina no redirecionamento dos dotes expressivos aí exibidos, na medida em que estes vão ao encontro da sensibilidade dominante, para alimentar uma carreira política. Daí que, à semelhança do que se pode ler n’As Farpas, em A Capital! os ministérios apareçam igualmente «povoados de antigos poetas líricos» (Cap: 393), ou que Z. Zagalo, o narrador de O Conde de Abranhos, se refira a alguns «homens de estado, que foram, são ainda, poetas de alta imaginação» (CA: 30)96. Da mesma forma, Castanheiro, em A Ilustre Casa de Ramires, tenta convencer Gonçalo a concretizar os seus projetos literários acenando-lhe com uma futura carreira política97, cálculos semelhantes aos que Artur Corvelo, em A Capital, projeta inicialmente para si mesmo98.

Como já referi, Eça e Ramalho (sobretudo Ramalho), n’As Farpas, referem-se mais do que uma vez à eloquência como uma competência básica de alguém que se propõe abraçar uma carreira política: ela é, por assim dizer, a menor das obrigações parlamentares de um deputado. Aquilo que n’As Farpas se critica é algo diverso: é a pseudo-eloquência que se crê contemporânea de Demóstenes, que se esgota numa retórica da ênfase, que exibe os brilhos de uma erudição despropositada, que incorpora, na capa literária com que faz questão de se recobrir, a estilística e a imagética românticas. Interpretar a política como eloquência, reduzi- la a um exercício discursivo, representa em si mesmo uma compreensão enviesada do lugar que a política ocupa na organização de um Estado e do papel que ela desempenha no seu desenvolvimento. No entanto, quando a esta interpretação equívoca do que é a política se soma uma interpretação equívoca do que é a eloquência, o resultado final desta série de deturpações não pode deixar de ser a caricatura do objeto inicial.

96 Nesta mesma obra, aquela que mais detalhadamente explora os meandros da vida política, comparece ainda um «famoso Torres, que já fora duas vezes ministro da Marinha» e a quem se aponta «a sua posição literária como um dos nossos mais estimados dramaturgos» (CA: 177).

97 «E depois, menino, a literatura leva a tudo em Portugal. […] Pois, amigo, de folhetim em folhetim, se chega a S. Bento!» (ICR: 84).

98 «E numa exaltação pela sala, falou do seu talento, das altas posições, que dão as letras, da influência da imprensa, de uma cadeira em S. Bento, e da posteridade» (Cap: 171). Mesmo quando essa vocação literária não chega a concretizar-se, é frequente que dela haja vestígios – como no caso de Alípio Abranhos, que compôs secretamente versos na juventude (CA: 29-30), ou no do deputado Carvalhosa, que, quando estudante, em Coimbra, «fazia discursos líricos no Teatro Acadámico» (Cap: 203).

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Assim, o aplauso unânime (quase unânime – porque há sempre aquelas personagens que constituem uma referência crítica nas obras queirosianas, nem que seja sob a forma de uma voz que se refuta a si própria, como acontece em O Conde de Abranhos) à classe política que atravessa os romances de Eça de Queirós funda-se precisamente nas razões pelas quais aquilo que essa classe produz não pertence à categoria de política. Quando o Conselheiro Acácio diz que o presidente do Conselho é «o nosso primeiro parlamentar; vastíssimo talento, uma linguagem muito castigada!» (PB: 238) ou quando o conde de Gouvarinho considera Rufino superior aos deputados franceses, ingleses ou espanhóis devido à opulência da sua oratória («–Tenho ouvido grandes parlamentares, o Rouher, o Gladstone, o Canovas, outros muitos. Mas não são estes voos, esta opulência…» – M: 603), incorrem notoriamente em três vícios: em primeiro lugar, avaliam a competência parlamentar em função daquilo que é apenas habilidade oratória; em segundo lugar, tomam por genuína eloquência aquilo que é sobretudo ostentação e espalhafato (a «linguagem castigada», os «voos» e a «opulência» destes exemplos denunciam esta degeneração do gosto, mas fá-lo ainda melhor o elogio sistemático dos jornais à imagética medíocre do deputado Carvalhosa99); em terceiro lugar, promovem o desprezo por aquilo que é o trabalho político substantivo. Neste contexto em que um deputado é apreciado sobretudo pela sua oratória, eventualmente pela capacidade de embaraçar uma bancada adversária com um comentário lateral100, estes méritos espúrios ocupam o lugar das legítimas competências de um político – as quais, numa inversão de valores muito frequente nos retratos queirosianos da sociedade portuguesa, acabam por ser genericamente menosprezadas. O passo em que o conde de Gouvarinho compara a opulência do estilo de Rufino à expressão objetiva de outros reputados parlamentares europeus («É tudo muito seco, ideias e factos. Não entra na alma!»

99 Cf. n. 90.

100 Logo abaixo desta retórica inconsequente e obsoleta na série de competências que se exigem a um