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Uma retórica da ênfase

sensibilidade: trânsitos retóricos

3.5. Dividir, enumerar: do logos ao pathos

3.5.1. Uma retórica da ênfase

O lugar central da enumeração na estratégia argumentativa queirosiana manifesta-se desde logo no facto de uma das primeiras presenças retóricas marcantes no texto inaugural

175 d’As Farpas consistir precisamente numa longa lista dos problemas com que se debate o país. Não nos encontramos neste caso perante uma enumeração em sentido estrito, isto é, uma série cujo arco se desenvolva num período único; estamos, sim, perante uma sequência de períodos curtos, sequência essa que, não obstante, se apresenta indiscutivelmente como um inventário caótico de aspetos críticos:

O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua ação fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. (F: 16-7)

Eça, no breve parágrafo que antecede este passo, pede ao seu leitor «Aproxima-te um pouco de nós, e vê» – e o que lhe mostra aqui é um amontoado de imagens, ideias e juízos, sem aparente sistema, toscamente enunciados, vertidos numa série de períodos de fôlego curto, irregular, subitamente interrompidos, pautando uma respiração arrítmica. Não é este um excerto de leitura agradável, e contrasta fortemente com o apuro estilístico do parágrafo inicial, no qual pontuam figuras, da simetria ao quiasmo, que conferem sobretudo elegância ao período. Isto é, depois de um brevíssimo momento de sedução, de captatio benevolentiae, de demonstração de uma inequívoca competência no plano da elocutio, Eça propõe ao seu leitor uma experiência não particularmente aprazível, sem qualquer preocupação de fluidez formal, como se o seu propósito fosse sobretudo o de produzir uma acumulação de aspetos críticos capaz de, pela concentração e pela quantidade de exemplos, saturar o espaço discursivo – e, por consequência, saturar igualmente o leitor, subitamente exposto a essa torrente.

Não havendo ordem nem sistema que organize a série, é pouco provável que no final deste passo o leitor d’As Farpas retenha o desenho preciso de todos os aspetos que lhe foram mostrados. Perdurarão talvez no seu espírito, como impressão latente, os dois princípios que cruzam o excerto: um princípio de decadência (perdeu, aumenta, abate-se progressivamente, definha,

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nenhuma, vivemos todos, toda a vida, perfeita, absoluta indiferença de cima abaixo). E, depois de

atravessar esta sequência caótica de proposições sobre o estado caótico do país, é muito provável que se verifique na mente do leitor uma transferência da impressão de desconforto e desorganização suscitada pelo plano formal deste passo para a instância que nele é objeto central de atenção, isto é, Portugal.

Num escritor em cuja prosa o sentido do ritmo e a exigência formal são porventura as marcas mais notoriamente sensíveis, um passo como este não deixa de ser algo atípico, mesmo que se lhe compreenda a funcionalidade. Este nódulo estilístico singular tem, contudo, uma explicação. Embora Eça explore frequentemente uma estratégia de contraste entre o declínio de Portugal e os progressos da Europa (desse progresso ficando excluídos aqui e ali apenas a Grécia e a Suécia), a ideia de decadência está longe de ser um tópico exclusivamente português248. Na verdade, estas palavras com que Eça praticamente inaugura a sua campanha de denúncia do estado do país n’As Farpas são muito diretamente inspiradas naquelas que Proudhon usa para ilustrar aquilo que ele define como o problema do ceticismo que se instalara na vida espiritual da França sua contemporânea em De la Justice dans la

Révolution et dans l’Église249 – e, para além das claras semelhanças no que diz respeito às questões abordadas, à escolha dos tópicos, à sua disposição e formulação, há mesmo passos do texto queirosiano que não se distanciam significativamente da tradução: «Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos» reproduz «nulle solidarité entre les citoyens»; «Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida» retoma com escassas alterações «Pas une institution que l’on respecte, pas un principe qui ne soit nié,

248 Por exemplo, Zola, no prefácio à primeira edição de La Curée, o segundo título da série Les Rougon-Macquart, propõe-se «montrer l’épuisement prématuré d’une race qui a vécu trop vite et qui aboutit à l’homme-femme des sociétés modernes» e oferecer aos seus leitores «une peinture vraie de la débâcle d’une société» (1871: 5-6). 249 «Sous l’action desséchante du doute, et sans que le crime soit peut-être devenu plus fréquent, la vertu plus rare, la moralité française, au for intérieur, est détruite. Il n’y a plus rien qui tienne: la déroute est complète. Nulle pensée de justice, nulle estime de la liberté, nulle solidarité entre les citoyens. Pas une institution que l’on respecte, pas un principe qui ne soit nié, bafoué. Plus d’autorité ni au spirituel ni au temporel: partout les âmes refoulées dans leur moi, sans point d’appui, sans lumière. Nous n’avons plus de quoi jurer ni par quoi jurer; notre serment n’a pas de sens. La suspicion qui frappe les principes s’attachant aux hommes, on ne croit plus à l’intégrité de la justice, à l’honnêteté du pouvoir. Avec le sens moral, l’instinct de conservation lui-même paraît éteint. La direction générale livrée à l’empirisme; une aristocratie de bourse se ruant, en haine des partageux, sur la fortune publique: une classe moyenne qui se meurt de poltronnerie et de bêtise; une plèbe qui s’affaisse dans l’indigence et les mauvais conseils; la femme enfiévrée de luxe et de luxure, la jeunesse impudique, l’enfance vieillotte, le sacerdoce, enfin, déshonoré par le scandale et les vengeances, n’ayant plus foi en lui- même, et troublant à peine de ses dogmes mort-nés le silence de l’opinion: tel est le profil de notre siècle» (1858: 3-4).

177 bafoué»; «Ninguém crê na honestidade dos homens públicos» reconhece-se em «on ne croit plus […] à l’honnêteté du pouvoir», etc.250

O passo em questão, n’As Farpas, preenche o terceiro parágrafo do número inaugural; em De la Justice, ocorre na terceira página do prólogo: em qualquer dos casos, e sobretudo no da publicação portuguesa, trata-se de um lugar inicial do texto que o comporta – e, por conseguinte, de um lugar fundamental para a definição dos contornos da relação que esse texto estabelecerá com o seu leitor. Na abertura do terceiro capítulo do Tratado de

Argumentação, Perelman e Olbrechts-Tyteca, retomando a noção de presença anteriormente

abordada, sublinham a importância de que se reveste, numa estratégia argumentativa, a forma como se apresentam as premissas, mesmo antes de a argumentação propriamente dita ter início: «Antes mesmo de argumentar a partir de certas premissas, é essencial que o conteúdo destas se destaque sobre o fundo indiferenciado dos elementos de acordo disponíveis: essa escolha de premissas confunde-se com a sua apresentação. Uma apresentação eficaz, que impressiona a consciência dos auditores, é essencial» (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 159). Eça opta de início por impressionar a consciência dos seus leitores submetendo-a a uma prolongada descarga de imagens críticas do país e, apesar de neste caso ser mais do que provável a influência de Proudhon, o recurso à enumeração como dispositivo gerador de presença é recorrente nos textos que escreve para As Farpas.

Uma longa sequência enumerativa como aquela que serve de pórtico ao retrato do país que Eça traça no prólogo do primeiro número é suscetível de desencadear uma série de impressões que agem de diversas formas sobre o espírito do leitor. Em primeiro lugar, ela promove a ideia de que os exemplos elencados se podem prolongar indefinidamente. O extremo dessa acumulação virtualmente ilimitada de exemplos lê-se no artigo em que são apontadas as deficiências da Câmara dos deputados. A certo ponto, Eça dispensa-se de ilustrar os modos como nela se manifestam as distorções da justiça: «Quem ignora os exemplos? A enumeração deles fatigaria Homero» (F: 48). Aqui, a hipérbole inscrita na

impossibilidade de enumerar é o caso-limite para que remetem as mais extensas enumerações

queirosianas. De resto, o princípio da acumulação como argumento subjaz à própria

250 Não me parece que haja grandes margens para dúvidas quanto ao facto de Eça escrever estas páginas iniciais do prólogo d’As Farpas com o primeiro tomo de De la Justice aberto ao lado. Já fora dos limites da enumeração transcrita, mas decorridos apenas dois parágrafos, escreve Eça: «Não é uma existência, é uma expiação» (F: 10); em Proudhon, lê-se: «Est-ce là une existence? Ne dirait-on pas plutôt une expiation?» (1958: 4). O mal-estar que Eça identifica em diversos sectores do país traduz afinal uma visão em parte importada do diagnóstico crítico daquela sociedade que a sua geração tem como modelo de sofisticação e progresso.

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natureza da publicação, visto que As Farpas podem ser lidas em boa parte como uma longa lista de casos que ilustram um diagnóstico ele próprio formulado em primeira instância sob a forma de lista. Assim, a extensão da série de zonas críticas que encabeça o texto de abertura parece ter plausivelmente como limite o critério único da fadiga – a do texto, a do autor, a do leitor –, mas podemos encontrar em farpas posteriores diversas séries suscetíveis de ser lidas como o prolongamento da inicial, momentos em que Eça recupera a listagem de focos críticos da realidade do país, apontando os múltiplos ângulos da decadência nacional com que pretende continuar a ferir a consciência de quem o lê. Quando, no artigo que dedica ao discurso da coroa, volta a reduzir o país a um elenco de deficiências251, quando no número de outubro de 1871 propõe que não seja permitido aos políticos espanhóis ver o estado da política portuguesa, cujas fraquezas enumera252, ou quando compara depreciativamente Portugal à Grécia numa série de aspetos revisitados253, o que Eça propõe ao leitor é uma espécie de regresso ao catálogo de problemas da farpa inaugural.

Há ainda uma outra consequência que me parece estar compreendida no complexo jogo de efeitos que resultam da utilização deste dispositivo. Uma enumeração como aquela que praticamente abre As Farpas dá por um lado a sensação de que o foco da crítica se espraia por um vasto elenco de aspetos da vida nacional, e, paradoxalmente, fomenta também a impressão de que essa multiplicidade se dilui na monotonia do defeito, na uniformidade do erro que caso após caso é assinalado – a enumeração promove a um tempo a variação e a repetição, e a sua eficácia enquanto instrumento estratégico capaz de criar presença assenta em boa parte nesta propriedade dúplice. Cada elemento que se adiciona a uma série enumerativa é o pretexto renovado para reiterar a ideia, o princípio, o valor, o juízo que se pretende realçar, mas superando as limitações da repetição estrita.

251 «[…] finanças em ruína; exército indisciplinado; marinha nula; colónias exploradas pelo estrangeiro; a indústria entorpecida; clero ignorante e imoral; ensino caótico; vida municipal extinta; funcionalismo progredindo; pensamento emudecido; carácter público corrompido; serviços públicos desorganizados; leis em confusão; agiotagem em triunfo; proletariado em miséria; etc., etc., etc.» (F: 97).

252 «Imaginemos que esses homens políticos, esses oradores, esses parlamentares […] veem, piedoso Deus! as nossas câmaras, a nulidade do pensamento, a baixa trivialidade da palavra, a estreiteza de interesses, as personalidades de regedores que se discutem, o abandono de todo o decoro, os gritos e os insultos e os desmentidos, a compostura plebeia e grossa, as débeis condescendências dos caracteres, o offenbáquico dos assuntos, a ciência que lá falta, a intriga que abunda, e o pundonor que abdica! […] Imaginemos que esses estadistas, conversam com esses que são entre nós os estadistas – e veem, vergonha eterna! que a sua conversação é espessa e a sua crítica romba, que ignoram a administração, a economia, a história, as questões do tempo, a geografia, toda a ideia, toda a data, todo o facto […]» (F: 234).

253 «[…] mesma pobreza, mesma indignidade política, mesmo abaixamento dos caracteres, mesma ladroagem pública, mesma agiotagem, mesma decadência de espírito, mesma administração grotesca de desleixo e de confusão» (F: 312).

179 É por isso que em diversos passos destes textos, como já referi, a enumeração corresponde a uma operação analítica de desdobramento de um paradigma: trata-se de ilustrar as inúmeras faces – e digo inúmeras porque a amplitude e a frequência destes momentos apontam tacitamente para a natureza aberta de muitas das séries – através das quais um dado aspeto crítico se manifesta. Muitas vezes, esse carácter paradigmático da enumeração é atestado através de um «tudo» ou um «todos», um «nada» ou um «ninguém», que sublinham o cunho ilustrativo da série e o seu alcance totalizante. Por exemplo, no artigo em que aponta as precárias condições oferecidas a quem viaja de comboio, Eça faz um copioso inventário das deficiências dos caminhos-de-ferro portugueses, pontuado por diversas ocorrências do indefinido «tudo», que reiteradamente estende a amplitude da enumeração254. Mas, de entre os vários passos enquadráveis neste grupo255, talvez o mais elaborado seja aquele em que Eça descreve o torpor que se abateu sobre certos círculos administrativos do interior – quer pela disposição das séries enumerativas em dois níveis encaixados (uma série primária, de leitura vertical, a partir de cujos elementos se ramificam séries secundárias), quer pelo facto de as séries secundárias terem a função de preencher o vazio que a série primária enuncia, quer ainda por no fim se projetar o alcance global daquilo que se enumerou parcialmente:

Nenhumas obras: as vielas descalçam-se, velhos muros abatem, os enxurros empoçam. Nenhuma higiene: a imundície apod[renta] em sossego, os géneros deteriorados têm consumo, os maus cheiros fazem uma atmosfera, as ruas estão tapetadas de destroços, os porcos fossam às portas, a praça é uma capoeira pública. Nenhuma polícia; as tavernas ecoam de desordens, o jogo é permitido, os bêbados cantam pelas ruas. A administração está ociosa, a camara espectadora, a regedoria barbeia os fregueses. Não se cria nada, nem se conserva alguma coisa. (F: 343)

Neste caso, bem como em alguns daqueles a que já me referi, os pontos críticos que constituem o corpo da enumeração manifestam-se sob a forma de uma série de faltas, de carências. Com efeito, as enumerações queirosianas d’As Farpas são muitas vezes marcadas

254 «As sleepers podres, os railways gastos e desaparafusados, os túneis mal seguros, as pontes rachadas, os aterros que tendem a desabar, os desaterros que tendem a esboroar-se, as máquinas cansadas, o serviço desleixado, as refeições envenenadas, tudo, tudo, até as demoras, as irregularidades, os atrasos, a confusão – tudo converge para o mesmo legítimo fim – comover o viajante, dar-lhe sensações, interessá-lo!» (F: 169). 255 «Depois [as mulheres portuguesas] têm medo, um medo horrível, de tudo: de ladrões, de trovoada, de fantasmas, da morte, dos corredores escuros, dos castigos de Deus, dos soldados e d[a]s máscaras.» (F: 418); «E o amor, o casamento, a virgindade, a maternidade, o pudor, o adultério, a mulher, saias e consciências, tudo foi sacudido […]» (F: 542); «[…] ninguém crê em ti, ó Carta Constitucional, cansada musa da burguesia! Ninguém crê em ti. Os ministros que te fazem cumprir, os jornalistas que te citam, os jurisconsultos que te comentam, os professores que te ensinam, as autoridades que te realizam, os padres que falam em ti à missa conventual, aqueles mesmos cuja única profissão era crer em ti, aqueles que te amaram, e os outros que te violaram, todos te renegam […]» (F: 19), etc.

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por esse sentido recorrente da falha, da lacuna, da deficiência256. Em diversos passos enumerativos, e nomeadamente no caso das sequências mais extensas, a preocupação de Eça é vincar a ideia de que o país se tornou uma espécie de cenário de opereta257, encontrando-se as suas principais instituições destituídas de qualquer função útil e viva, reduzidas à condição de elementos cenográficos meramente decorativos. A farpa inicial é, também neste caso, o lugar onde ocorrem pela primeira vez algumas destas séries: quando fala «dos ministérios que não governam, dos oradores que não escrevem, e dos intrigantes que não alcançam» (F: 20); quando, a propósito da Câmara, refere «a sua incapacidade orgânica para discutir, para pensar, para criar, para dirigir, para resolver a questão mais rudimentar de administração», e depois prossegue dizendo que dela «[n]ão sai uma reforma, uma lei, um princípio, um período eloquente, um dito ao menos» (F: 22); quando garante que «[o] ministério, o poder executivo, […] [n]ão governa, não tem ideia, não tem sistema; nada reforma, nada estabelece» (F: 22), ou que o romance «[n]ada estuda, nada explica; não pinta caracteres, não desenha temperamentos, não analisa paixões» (F: 26), Eça ensaia sucessivas incursões por alguns aspetos da vida nacional desdobrando formas diversas através das quais neles se manifesta invariavelmente um signo de ausência.

Já me referi a alguns dos passos em que este processo é posteriormente retomado (e amplificado no que concerne à extensão da lista): a enumeração das modalidades da incompetência da câmara dos deputados, o elenco dos aspetos negligenciados nas colónias pela metrópole, o inventário das lacunas do exército, a discriminação das funções que os diplomatas portugueses ignoram ser as suas – todos estes casos exploram uma retórica do

não; todos eles investem na reiteração das competências e dos atributos que não se

encontram nas instâncias abordadas e sem os quais estas ficam reduzidas a simulacros das instituições que representam. Outros passos poderiam juntar-se a estes: veja-se, por exemplo, a forma como Eça insere a escassez da roupa que as cadeias dão aos presos condenados ao

256 Naturalmente, as ideias de totalidade (da presença) e de ausência (total) estão relacionadas de modo estreito – e esta relação é notória na formulação queirosiana «[…] a câmara tem a falta absoluta daquelas qualidades, e a abundância dos defeitos opostos» (F: 48). Assim, o princípio de totalidade que atravessa a enumeração inaugural do primeiro texto d’As Farpas é apenas o negativo do diagnóstico das lacunas que a partir daí se empreende. Da mesma forma, no passo em que Eça escreve «Parece que, segundo ele [Pinheiro Chagas], nós temos todos os bons livros, toda a perfeição de leis, toda a abundância de riquezas, toda a virtude pública, toda a elevação de carácter, toda a beleza de formas» (F: 339), o empolamento das categorias elencadas serve apenas para amplificar a respetiva ressonância oca quando o texto revela aquilo que, segundo Pinheiro Chagas, as preenche.

257 A analogia é proposta pelo próprio texto: «Os lustres estão acesos; o país é o e[s]pectador distraído: nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e acha-os todos impuros e nulos; não se interessa pelas cenas e acha-as todas inúteis e imorais; não se interessa pela decoração e julga-a ridícula. Só às vezes, no meio do seu tédio, se lembra que para poder ver teve que pagar no bilheteiro!» (F: 22).

181 degredo num quadro genérico de faltas258, como nega sucessivos méritos à ação política e administrativa do Estado259, como enumera as infraestruturas militares inexistentes260, como descreve o Arsenal enquanto instituição destituída de tudo o que deveria caracterizar uma indústria de construção naval261, etc.

Enumerar, nestes textos, é então um procedimento retórico que consiste acima de tudo na produção de sucessivos elencos de casos que ilustram um determinado juízo. Não se trata propriamente de aduzir provas, mas sobretudo de expor imagens parcelares que preenchem e confirmam uma dada proposição genérica, operando no espírito do leitor por