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Retórica, argumentação, lógica

sensibilidade: trânsitos retóricos

3.2. Retórica, argumentação, lógica

Nos seus Principia Rhetorica, Michel Meyer alerta-nos para a importância de não incorrer numa confusão comum, a indistinção entre retórica e argumentação – salvaguardando Meyer que a distinção que se impõe fazer é entre a retórica enquanto processo e a argumentação, visto que a retórica enquanto disciplina engloba a argumentação. Na sua proposta de distinção, Michel Meyer retoma uma definição de retórica que antes avançara na mesma obra178, enquadrando-a de modo a abrir duas vias para a negociação das diferenças por parte das instâncias envolvidas:

Quant à la rhétorique, elle est la négociation de la différence entre individus sur un sujet donnée. Il y a une question qui les oppose et des réponses qui les lient par ailleurs. Si ce lien l’emporte sur les autres considérations, on est dans la rhétorique stricto sensu, la rhétorique comme procédé. Si l’opposition, au contraire, est ce qui apparaît comme plus essentielle, alors la question qui divise est ce qui compte le plus, et on est dans l’argumentation […]. (Meyer, 2008: 51-2)

Meyer sublinha, na sequência desta distinção, o carácter conflitual da argumentação,

176 Também o passo «Nós porém – que costumamos, sob a aparência exterior dos factos, procurar-lhes a psicologia secreta […]» (F: 106) é, em 1890, objeto de uma reescrita semelhante: «Nós, porém, que costumamos, sob a aparência exterior dos factos, procurar-lhes a realidade secreta […]» (UCA: 94).

177 Esta consciência da importância da perspetiva é manifesta, por exemplo, num passo como o seguinte, extraído do primeiro artigo do número de março de 1872: «Do ponto em que As Farpas se colocaram o lado que a sociedade lhes patenteia é quase sempre o lado que ri» (F: 399).

133 que se opõe à natureza tendencialmente consensual da retórica. O género epidíctico representaria, deste modo, o exemplo definitivo do domínio da retórica; nele o único problema que se coloca é precisamente evitar qualquer problema179: trata-se de agradar, nunca de problematizar, porque a problematização implica necessariamente um desconforto, mesmo que ele venha a ser superado. Do outro lado do espectro de possibilidades, o género judicial encarnaria o domínio por excelência da argumentação, sendo neste caso a questão sobre a qual se discute submetida à dialética do debate contraditório180. Assim, defende Meyer, a retórica seduzirá certamente, poderá mesmo persuadir, mas opera sempre através de uma ilusão criada, visto que a estratégia que lhe é inerente passa por contornar os aspetos espinhosos do seu objeto – e daqui adviria «l’image de la rhétorique comme art du faux- semblant, comme manipulation des esprits» (Meyer, 2008: 52). Privilegiando as respostas em relação às questões, a retórica empenha-se sobretudo em ocultar o problema, ou em apresentar o quadro em que ele se coloca como se a solução que o corrige fosse incontestável e a viabilidade da sua implementação fosse igualmente pacífica.

Eça parece ter presente esta distinção teórica proposta por Michel Meyer: nos artigos que escreve para As Farpas, nunca rejeitará a importância da argumentação; rejeitará sistematicamente que nelas tenha lugar a retórica. Esta atitude entronca no espírito positivista do século: Eça mostra-se convicto de que os juízos que estabelece sobre a forma como o país se lhe apresenta se fundam na razão, até porque apenas procedimentos expositivos ou argumentativos fundados na razão seriam formas legítimas de os apresentar e defender. O modelo de argumentação virtuosa que aqui está em causa é informado pelo arquétipo da demonstração rigorosa, da certeza científica – tal depreende-se, por exemplo, dos termos através dos quais Eça se refere à forma como a Revolução é apresentada nas Conferências do Casino: «Ora as conferências pela sua natureza científica, experimental, – exigem justamente o contrário dos aparatos retóricos. São a demonstração, não são a apóstrofe; são a ciência, não são a eloquência» (F: 41). Quando, no número seguinte, reagindo precisamente ao encerramento das conferências, Eça exclama «Argumentemos!» (F: 80) na introdução de um argumento (quase lógico, na tipologia de Perelman) de inclusão,

179 Cf. «A própria conceção desse género oratório, que lembra mais, para falar como Tarde, uma procissão do que uma luta, fará com que seja preferentemente praticado por aqueles que, numa sociedade, defendem os valores tradicionais, os valores aceites, e não os valores revolucionários, os valores novos que suscitam polémicas e controvérsias» (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 60).

180 Nesta linha, defende Rui Alexandre Grácio (2010: 79) que só é legítimo falar de argumentação se os intervenientes no processo detiverem idêntico estatuto de argumentador, produzindo discurso e contradiscurso, mas não quando a relação que entre eles se estabelece é estaticamente a de emissor-recetor.

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esta apóstrofe não é mais do que a variação daquela outra que usara alguns parágrafos antes para lançar um argumento (também quase lógico) fundado na regra da justiça: «Sejamos lógicos» (F: 79). Ou seja, precisamente a expressão que, no número anterior, fora invocada para vincular As Farpas a uma racionalidade fundada na lógica e no bom senso (cf. supra: 127). A argumentação, tal como Eça a concebe idealmente (e convém destacar o idealmente), é, portanto, produto de um raciocínio exato e rigoroso e não um exercício de manipulação emocional: retomando uma distinção clássica, dir-se-ia que as suas razões serão da ordem da

convicção e não da ordem da persuasão181.

Os fundamentos desta distinção entre convencer e persuadir remontam a Aristóteles e à sua doutrina que opõe a racionalidade argumentativa, centrada no logos, ao condicionamento afetivo do auditório, que opera através do pathos. Perelman e Olbrechts-Tyteca retomam-na nos seguintes termos: «Propomo-nos chamar persuasiva uma argumentação que só pretende ser válida para um auditório particular e chamar convincente aquela de que se espera que obtenha a adesão de todo o ser dotado de razão» (2006: 36). Ser convencido traduz-se, então, na submissão da inteligência à força racional de uma argumentação, independentemente de qualquer enquadramento ideológico ou afetivo específico. A superioridade que Eça atribui a esta modalidade da argumentação tem de ser perspetivada no contexto da missão de esclarecimento que As Farpas reclamam para si: se o seu objetivo é reconduzir os seus leitores no caminho da verdade, subtraindo-os ao domínio das aparências confusas, do erro, e levando-os a «ver verdadeiro» (CP: 109), a via para atingir esse objetivo não poderia ser, no seu entender, a mesma retórica desqualificada que, interpretada pelos diversos agentes da vida nacional detentores de uma voz pública, vinha induzindo em erro os cidadãos.

Ainda que a persuasão seja comummente vista como mais facilmente capaz de despertar um ímpeto orientado para a ação182, um princípio inspirado numa espécie de

181 «Exprimem estas duas palavras [‘convicção’ e ‘persuasão’] o ato pelo qual a nossa alma aquiesce àquilo que se lhe propõe como verdade, com a ideia acessória de uma coisa que a determinou a este ato. A convicção é uma aquiescência fundada em provas de uma evidência irresistível e vitoriosa. A persuasão é uma aquiescência fundada em provas menos evidentes, posto que verosímeis; porém mais próprias a interessar o coração que a ilustrar o espírito. Aquela é filha da razão, e do domínio da inteligência; esta obra mais sobre o coração, e depende da sensibilidade. A convicção, sendo o efeito da evidência, não pode enganar; assim que, não pode ser falso aquilo de que estamos legitimamente convencidos. A persuasão é o efeito de provas morais, que podem enganar; e assim podemos estar muitas vezes persuadidos dum erro mui real, que tenhamos por verdade mui segura./ «Um raciocínio exato e rigoroso produz a convicção nos ânimos retos; a eloquência e a arte oratória podem produzir a persuasão nas almas sensíveis. "As almas sensíveis, diz Duclos, têm uma grande vantagem para a sociedade, a de estarem persuadidas de verdades de que não está convencido o ânimo: a convicção é muitas vezes somente passiva; a persuasão é ativa, dá impulso e faz obrar» (Roquete & Fonseca, 1854: 191).

135 otimismo iluminista sustentará a ideia de que a razão esclarecida sabe tirar as lições práticas da aquisição do conhecimento: «Acredita-se que um indivíduo devidamente convencido há de se comportar conforme a adoção das razões, porque é inconcebível conhecer a realidade e permitir ser conduzido pelas artimanhas dos jogos persuasivos» (Oliveira, 2007: 141)183. Assim, a crença numa racionalidade argumentativa de matriz lógica sobrepõe-se em Eça, como princípio (que a prática discursiva não raramente transgredirá, porém), às armadilhas retóricas montadas com o propósito de que nelas fique presa a sensibilidade do leitor. A única força coerciva legítima é, por conseguinte, a que é ditada pelas regras da própria razão.

Perelman e Olbrechts-Tyteca observam que «[o] uso da argumentação implica que se renunciou a recorrer unicamente à força, que se dá valor à adesão do interlocutor, obtida com a ajuda de uma persuasão ponderada, que não se trata o outro como um objeto mas se apela à sua liberdade de julgar», e que, por isso mesmo, «[o] recurso à argumentação […] exclui o uso da violência» (2006: 64-5). No mesmo artigo em que apresenta as Conferências como modelo de comunicação da Revolução, Eça sublinha a importância de salvaguardar a liberdade de expressão num contexto crítico como é aquele em que elas surgem, contrariando o ímpeto de as silenciar («Tenhamos bom senso: escutemos a revolução, e reservemo-nos a liberdade de a esmagar – depois de a ouvir» – F: 42), e mostra sobretudo compreender o lugar da argumentação num espaço social tenso, onde a alternativa à discussão racional é, precisamente, a instauração de um regime pautado pela violência:

Deixemos falar o proletário. […] Desdigamo-lo depois quando ele mentir, refutemo- lo quando errar. É muito mais cómodo encontrarmo-nos com quem represente o proletário, sossegadamente, na sala do Casino, do que encontrarmos o próprio proletário mudo, taciturno, pálido de ambição ou de fome, armado de um chuço à embocadura de uma rua. Fazer conferências – se bem atentamos neste ato – reconhece-se que é uma coisa diferente de fazer barricadas. É por lhe não permitirem fazer conferências que o proletário parisiense faz fogo. O proletário inglês não espingardeia os seus governos, pela razão de que fala nos meetings. (F: 42)

A proposta de que se esmague a Revolução depois de a ouvir é prontamente reformulada para termos que repõem a questão no plano da argumentação racional: desdizer um interlocutor quando este mente e refutá-lo quando erra é um procedimento que enquadra o cenário descrito no âmbito dos processos dialéticos de exame crítico dos argumentos em

183 Cf. «A criação, por meios intelectuais, de uma convicção também intelectual de que é justa a opinião partidária defendida, junto do árbitro da situação, pelo orador, parte do princípio de que a convicção intelectual é um impulso (que leva à ação) importante e talvez já suficiente para que se dê a alteração da situação […]» (Lausberg, 1982: 104).

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disputa, com vista à verdade e não à derrota do adversário.

As Farpas propõem-se, portanto, argumentar logicamente, aduzir «provas duma

evidência irresistível e vitoriosa»; o seu objetivo consiste em intervir pela via da razão e da inteligência. A alegada rejeição dos «aparatos retóricos» significa fundamentalmente que Eça desvincula a sua argumentação dos recursos característicos do pathos – a mobilização dos afetos, a comoção, a estimulação do juízo visceral. O seu leitor deverá ter bom senso mas, em contrapartida, poderá aparentemente prescindir da sensibilidade; o bom senso é, afinal, a razão – é o logos.

Como observam Philippe Breton e Gilles Gauthier, «uma característica fundamental do argumento – que, a propósito, o distingue radicalmente do raciocínio lógico – é o facto de se desenvolver numa situação de inter-relação» (2001: 12). A validade de um raciocínio lógico é uma propriedade formal; ela não depende de uma interpretação que a confirme184. A eficácia de um argumento, por seu lado, depende do efeito que ele produzir no destinatário – o que pressupõe, antes de mais, um determinado destinatário, com determinadas características, em função das quais se define uma determinada estratégia argumentativa. Ora, se é verdade que Eça dirige frequentes apóstrofes aos leitores d’As Farpas, estas constituem sobretudo manifestações de uma estratégia de cumplicidade, sem que a tal corresponda uma efetiva configuração de um destinatário particular. Na verdade, como vimos, Eça recusa expressamente qualquer demarcação do seu auditório, negando que o pudesse caracterizar alguma eventual identidade de interesses, de convicções político-ideológicas – isto é, qualquer feição particularizante suscetível de servir de base para a definição de uma abordagem argumentativa convenientemente adaptada às características de um auditório específico.

Ao eleger o bom senso como a única característica que unifica a comunidade de leitores a quem se dirige, Eça assume um propósito ambicioso: que o limite do acordo que procura obter não conheça as restrições decorrentes da vinculação do auditório a valores e a convicções particulares. Pretendendo ser a expressão do bom senso, As Farpas reivindicam afinal o estatuto de voz emergente da própria razão – atitude que mereceu, de resto, uma censura expressa por parte de uma das várias personalidades que saíram ao caminho de Eça e Ramalho a pedir-lhes contas, pouco convencidas de que fosse de facto uma questão de bom

184 «Numa demonstração matemática, os axiomas não estão em discissão; sejam eles considerados como evidentes, como verdadeiros ou como simples hipóteses, não há qualquer preocupação em saber se eles são, ou não, aceites pelo auditório» (Perelman, 1993: 29).

137 senso concordar com eles. Samuel, presumível pseudónimo de Vieira de Castro (Medina, 2000: 23-26; Matos, 2009: 183), aponta à nova publicação, entre muitas outras coisas (contradições na argumentação, cumplicidades insuspeitas, injúrias e blasfémias185), sobretudo o pecado de se arrogar encarnar «o Bom Senso, soma de Verdade e de Justiça» (apud Medina, 2000: 26)186. Eça protesta que não – e tenta matizar o autoconceito que As

Farpas projetavam, regressando de certa forma ao território da captatio benevolentiae, desta vez

explorando o consagrado tópico da modéstia187. Mas a verdade é que, em janeiro de 1872, Eça não hesitará em promover de novo a indistinção entre Farpas e bom senso: «Que ele, o Ano Novo, […] faça penetrar em ti como um calor purificador e com um aroma afável – a estima das Farpas – ou pelo seu nome genérico – a estima do Bom senso…» (F: 322).

Este reiterado ofício ao altar do bom senso188 traduz-se, então, em dois atos nos quais se investe o essencial do programa argumentativo d’As Farpas: a recusa da seleção de um auditório particular e a reivindicação dessa faculdade, o bom senso, como princípio tutelar dos artigos publicados. O cenário que assim se concebe é o mais ambicioso de todos – é a

razão dirigindo-se à razão; uma conceção ideal de auditório que se combina com uma conceção

ideal de argumentário.

No que diz respeito a essa comunidade de leitores – que podem ser conservadores ou revolucionários, proprietários ou produtores, contanto que tenham bom senso –, ela encarna de forma muito aproximada o conceito de auditório universal de Chaïm Perelman: depurados das marcas particulares que lhe conferem um dado perfil, os leitores são encarados essencialmente, como já referi, enquanto entidades dotadas de razão. Concebendo um auditório isento de impurezas mundanas, As Farpas pretendem furtar-se à «fraqueza relativa dos argumentos que apenas são aceites por auditórios particulares» e, pelo contrário,

185 Cf. «Ao demónio destas bandarilhas», artigo publicado n’O Primeiro de Janeiro a 9 de julho (apud Reis, 1986: 216-224).

186 Também António Enes se referiria em tom crítico ao facto de Eça e Ramalho reclamarem ser «os dois sapadores únicos do senso comum» (apud Reis, 1987, II: 24).

187 «Mas, injusto Samuel, atende – as Farpas não disseram que eram o bom senso absoluto, com a plenitude da razão, a impecabilidade da consciência, a posse perene da verdade, nenhum temperamento e muita roupa branca! […] [As Farpas] são sobretudo e antes de tudo 96 páginas impressas na tipografia Universal, sem grandes erros de gramática e sem grandes verdades de filosofia, estalando de riso por todas as entrelinhas, mesmo quando franzem a testa – e contentando-se com serem alegremente recebidas, pel[a] manhã, à hora do correio e do almoço, por alguns espíritos simpáticos e por algumas brancas mãos. Diógenes decerto não apagaria a sua lanterna!» (F: 122-23).

188 Que é até anterior ao lançamento do primeiro número. Tendo As Farpas sido instantaneamente associadas ao movimento republicano, Eça e Ramalho publicaram a 5 de maio uma carta no Diário Popular na qual asseguravam que a futura publicação teria «por único partido político o bom senso» (apud Medina, 2000: 45).

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beneficiar do «valor concedido às opiniões que gozam de uma aprovação unânime, em especial da parte de pessoas ou grupos que estão de acordo sobre muito poucas coisas» (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2006: 39). Ora, como explicam Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, «[u]ma argumentação que se dirige a um auditório universal deve convencer o leitor do carácter compulsivo das razões fornecidas, da evidência delas, da sua validade intemporal e absoluta», uma vez que o acordo que se espera obter, mediado que é pela razão, só chegará a verificar-se se o auditório reconhecer na argumentação os factos e as verdades que o sustentem: «É porque se afirma algo que está conforme com um facto objetivo, coisa que constitui uma asserção verdadeira e até necessária, que se conta com a adesão dos que se submetem aos dados da experiência ou às luzes da razão» (2006: 40).

Na «Advertência» à primeira edição de Uma Campanha Alegre, Eça recordaria o otimismo que o inspirara, vinte anos antes, à data do início da publicação d’As Farpas:

Quem era eu, que força ou razão superior recebera dos deuses, para assim me estabelecer na minha terra em justiceiro destruidor de monstros?… A mocidade tem destas esplêndidas confianças; só por amar a Verdade imagina que a possui; e, magnificamente certa da sua infalibilidade, anseia por investir contra tudo o que diverge do seu ideal, e que ela portanto considera Erro, irremissível Erro, fadado à exterminação. (UCA: 5)

Esta convicção de que as matérias sobre as quais se escreve são enquadráveis nas categorias da Verdade e do Erro é fundamental para informar a decisão de que a forma mais indicada de agir sobre um auditório consiste em operar, através de uma argumentação racional, sobre um leitor racional (ou sobre as instâncias racionais desse leitor). Assim, qualquer resistência da parte deste à argumentação terá como consequência, como referi no início deste capítulo, a sua destituição do estatuto de leitor de bom senso, isto é, do estatuto de leitor racional: como referem Perelman e Olbrechts-Tyteca, «[s]e a argumentação dirigida ao auditório universal e que deveria convencer não convence toda a gente, há sempre o recurso de desqualificar o recalcitrante considerando-o como estúpido ou anormal» (2006: 42). É sob esta perspetiva que podemos reler a afirmação essencial do primeiro parágrafo do prólogo d’As Farpas («Leitor de bom senso […], sabe […] que foi para ti que [este livrinho] foi escrito – se tens bom senso!»), não, afinal, como uma redundância, mas como a aposição de um traço de vulnerabilidade ao estatuto que primeiro é atribuído ao destinatário destas palavras. A segunda ocorrência da expressão ‘bom senso’ questiona subjacentemente a validade da sua inscrição inicial no perfil do leitor, constituindo-se o bom senso, afinal, não como um atributo presumido, mas como uma condição que o leitor terá de, a cada nova

139 leitura, dar provas de preencher – sob pena de ser destituído da qualidade de leitor competente.

Dado que se dirige a um leitor de bom senso na medida em que este é dotado de bom senso – isto é, dado que se dirige a uma razão –, Eça tenderá a revestir os seus textos de um certo aparato lógico. «No limite, a retórica eficaz para um auditório universal seria a que apenas maneja a prova lógica», escrevem Perelman e Olbrechts-Tyteca (2006: 41). Ora Eça procurará fazer passar a ideia de que a sua abordagem argumentativa se enquadra neste princípio. Não porque de facto abdique de outras vias argumentativas que não a lógica, mas porque se empenhará frequentemente em destacar a matriz lógica da sua argumentação, esforçando-se, artigo após artigo, por projetar a ideia de que se serve de processos demonstrativos isentos de retórica – ou, pelo menos, de um certo modelo de retórica.

Se as referências ao bom senso nas farpas queirosianas ultrapassam as duas dezenas, a ocorrência do termo ‘lógica’ e respetivos cognatos assinala-se em cerca de meia centena de passos. Eça pretende expressamente superar uma abordagem argumentativa informada por um perspetivismo de qualquer âmbito, que lhe restringiria o alcance. Pelo contrário, interessa-lhe projetar uma imagem de competência na construção e na exposição dos seus argumentos que os associe a uma ideia de rigor lógico, visto que não é concebível rejeitar um argumento lógico bem construído. Há, naturalmente, um movimento retórico a sustentar