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1.2. Realismo, naturalismo e retórica

1.2.2. Realismo e verdade

1.2.2.2. Verdade e ciência

No momento em que o conceito de observação deixa de ser empírico e passa a designar o instrumento axial de uma metodologia positiva cujo objetivo é a validação de teorias científicas, é a própria noção de verdade que sofre uma modificação substancial. O real torna-se laboratório e o escritor assume o papel de homem de ciência. A observação do real deixa de ser ‘desinteressada’; torna-se, efetivamente, experimentação, isto é, uma observação enquadrada por determinados parâmetros e com um objetivo definido. A verdade neste momento já não designa apenas a adequação da representação aos aspetos imediatamente percetíveis da realidade; ela diz respeito ao conhecimento da mecânica dos fenómenos naturais e das engrenagens sociais, que permitem compreender as dinâmicas do desenvolvimento do indivíduo integrado num contexto. Fialho explica como procede o romance naturalista com a sua personagem:

De episódio em episódio, reconstrui-lhe o passado; por comparações e deduções hábeis infere a lei desse animal que obedece na vida, como escravo, a um código que lhe impõem a natureza da casta a que pertence, as condições em que os [sic] desenvolveram e a energia vital de que dispõe. (apud Lourenço, 2005: 246)

Se o homem é a máquina de engrenagens ordenadas que Taine descreve no prefácio aos Essais de Critique et d’Histoire (1858: ii), o romance é o laboratório ideal para estudar os seus comportamentos. Em Le Roman Expérimental, Zola explora ao limite esta articulação entre a literatura e a ciência:

[…] le roman expérimental est une conséquence de la révolution scientifique du siècle; il continue et complète la physiologie, qui elle-même s’appuie sur la chimie et la physique; il substitue à l’étude de l’homme abstrait, de l’homme métaphysique, l’étude de l’homme naturel, soumis aux lois physico-chimiques et déterminé par les influences du milieu; il est en un mot la littérature de notre âge scientifique, comme la littérature classique et romantique a correspondu à un âge de scholastique et de théologie. (1880: 22)

Teixeira Bastos, na Revista dos Estudos Livres, escreve que «[o] romance ou o conto naturalista deve ser apenas uma série mais ou menos extensa de causas e de efeitos, a explicação de um certo número de factos pela sua filiação histórica e natural» (apud Lourenço, 2005: 212). A atitude científica postulada por Zola faz escola. Como se sabe, a principal inspiração de Zola, ao conceber o seu Le Roman Expérimental, é a Introduction à

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Apolinário Lourenço (2005: 70), tivesse deixado à margem do âmbito da ciência a arte e a literatura, que considerava criações espontâneas do espírito. Zola, no entanto, não tem grandes dúvidas de que a ciência se constituirá como uma rede de conhecimento global do mundo – e, portanto, do homem em todas as suas dimensões e manifestações38.

Em Os Maias, Carlos da Maia identificará competentemente, embora em tom crítico, os postulados científicos desta nova literatura39; eles são, de resto, enunciados por quase todas as vozes que se empenharam na divulgação – e muitas vezes na defesa – do naturalismo. A euforia cientista e positivista do século XIX, antes de se resolver na aguda crise existencial do crepúsculo do século40, entrou triunfante em todas as áreas do labor humano. Teixeira de Queirós, logo na abertura do «Prólogo» a Os Noivos, filia a sua obra no espírito positivista, coloca-lhe o rótulo de romance crítico e enaltece-lhe as qualidades científicas: «O seu ideal é o mais simples e honrado; os seus processos literários os mais científicos e verdadeiros» (1879: [v]); pela mesma altura, Alexandre da Conceição vincula igualmente a literatura realista aos métodos e à filosofia do positivismo: «Ao realismo, impessoal, crítico, despreocupado e frio, corresponde o positivismo científico, com todo o seu rigor de método, com toda a sua indiferença religiosa, com a sua profunda compreensão do dever e do direito» (1881: 106); Teófilo Braga, em As Modernas Ideias na Literatura

Portuguesa, procede exatamente do mesmo modo:

Para um espírito dirigido pela filosofia positiva, isto é, pela doutrina que primeiro coordenou em um todo sistemático os fenómenos sociais, submetendo-os à observação e previsão científicas, como qualquer outra ordem de fenómenos da natureza, o romance é uma forma da arte em que se estudam, como em um laboratório de experimentação sociológica, os diversos conflitos do homem com o seu meio, na luta das noções morais, dos interesses, das paixões e das perversões. (1892: 294)

38 «Un jour, la physiologie nous expliquera sans doute le mécanisme de la pensée et des passions; nous saurons comment fonctionne la machine individuelle de l’homme, comment il pense, comment il aime, comment il va de la raison à la passion et à la folie; mais ces phénomènes, ces faits du mécanisme des organes agissant sous l’influence du milieu intérieur, ne se produisent pas au dehors isolément et dans le vide. L’homme n’est pas seul, il vit dans une société, dans un milieu social, et dès lors pour nous, romanciers, ce milieu social modifie sans cesse les phénomènes. Même notre grande étude est là, dans le travail réciproque de la société sur l’individu et de l’individu sur la société. Pour le physiologiste, le milieu extérieur et le milieu intérieur sont purement chimiques et physiques, ce qui lui permet d’en trouver les lois aisément. Nous n’en sommes pas à pouvoir prouver que le milieu social n’est, lui aussi, que chimique et physique. Il l’est à coup sûr, ou plutôt il est le produit variable d’un groupe d’êtres vivants, qui, eux, sont absolument soumis aux lois physiques et chimiques qui régissent aussi bien les corps vivants que les corps bruts» (1880: 18-19).

39 «Carlos declarou que o mais intolerável no realismo eram os seus grandes ares científicos, a sua pretensiosa estética deduzida duma filosofia alheia, e a invocação de Claude Bernard, do experimentalismo, do positivismo, de Stuart Mil e de Darwin, a propósito duma lavadeira que dorme com um carpinteiro!» (M: 164). 40 Uma leitura sintética desta questão encontra-se em Pires, 2007.

45 A verdade que decorre desta assumida filiação científica do naturalismo traduz-se, em última instância, numa epistemologia. Trata-se de fazer o cerco total à realidade: a cartografia paciente das categorias tipológicas e contextuais, a classificação dos documentos humanos, a análise dos processos vitais, o estudo dos temperamentos, a decifração dos processos psíquicos. «Le naturalisme est purement une formule, la méthode analytique et expérimentale», escreve Zola (1880: 93). Se Mallarmé estava convencido de que todo o método é uma ficção (1998: 872), o naturalismo, pelo contrário, concebe o seu método como uma máquina de gerar verdades: qualquer parcela da realidade que seja abordada através da sua lente, exposta à incidência do método, acabará por descobrir os seus segredos ao escritor. Eça dirá em 1892, já na fase de crise do naturalismo, que o positivismo que o sustentava «se considerava o incontestado senhor das inteligências», em virtude da «verdade e utilidade das suas fórmulas» (TI, IV: 354) – isto é, constatando que a verdade reside na própria fórmula: «Toda a diferença entre o idealismo e o naturalismo está nisto. O primeiro falsifica, o segundo verifica» (CIFM: 180-81). Por oposição à ideia de um romantismo ‘gerador de falsidades’, poderíamos conceber um método gerador de verdades: assim é o naturalismo.