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Ad hominem e racionalidade

sensibilidade: trânsitos retóricos

3.3. Sob o signo da contradição

3.3.1. Contradição e incompatibilidade

3.3.1.1. Ad hominem e racionalidade

«Toda a argumentação é uma argumentação ad hominem», afirmam Perelman e Olbrechts-Tyteca no Tratado de Argumentação (2006: 123). Ao postular este princípio, os autores do Tratado não têm em mente, como eles próprios terão o cuidado de esclarecer, aquela inflexão da argumentação para o campo da injúria e do insulto, que comummente se compreende sob esta classificação de ad hominem208, mas que acolheria melhor o rótulo de argumentação ad personam209. Schopenhauer, na sua Dialéctica Erística, diferencia com rigor os dois conceitos, observando que a opção pelo ad personam consiste num movimento de desespero a que recorrem aqueles que dão por perdida a disputa, e faz deste o último dos seus 38 «estratagemas» para se ter sempre razão210. Já o conceito de ad hominem adquire, para o filósofo alemão, duas acepções distintas, sendo possível falar de uma argumentação ad

hominem, em sentido lato, e de um argumento ad hominem, em sentido restrito.

Assim, latu sensu, a argumentação ad hominem opõe-se à argumentação ad rem: esta última incide unicamente sobre a matéria em disputa e respetiva relação com a verdade objetiva, ao passo que a primeira toma como objeto a relação da matéria em causa com as opiniões proferidas ou admitidas pela entidade perante a qual se argumenta211. É neste

208 Cf., e.g.: «[…] um “tópico”, por exemplo, “consiste em agarrar nas palavras pronunciadas contra nós e volta-las contra aquele que as pronunciou”: ora o que é este tópico senão o clássico argumento ad hominem, isto é, quando o adversário recorre ao insulto contra o orador, este retribui-lhe também com insultos?» (Campos, 2007: 153).

209 «Não se deve confundir o argumento ad hominem com o argumento ad personam, quer dizer com um ataque à pessoa do adversário […]» (2006: 124).

210 «Quando se apercebe que o adversário é superior e se teme a derrota, procede-se ofensiva, grosseira e ultrajosamente; quer dizer, abandona-se o objeto da discussão (já que aí se perdeu a disputa) e ataca-se, de qualquer maneira, a pessoa do adversário. Pode denominar-se este procedimento argumentum ad persona, distinguindo-o assim do argumentum ad hominem […]» (2001: 84).

211 «Para refutá-la [uma tese] existem dois modos e duas vias possíveis. / 1) Modos: a) ad rem, b) ad hominem ou ex concessis, quer dizer, demonstramos que a tese não concorda com a natureza das coisas, com a verdade absoluta objetiva; ou que não concorda com outras afirmações do adversário, ou com os princípios ou

149 sentido que Perelman afirma que toda a argumentação é uma argumentação ad hominem, visto que a verdade, no âmbito da argumentação, tem de ser forçosamente admitida pelo auditório.

O argumento ad hominem em sentido restrito, por seu lado, tem para Shopenhauer um âmbito muito específico. O ad hominem não desvincula inteiramente a incidência da argumentação da matéria de facto para a concentrar apenas na pessoa do antagonista, como faz o ad personam; o que se passa é que, através deste argumento, se procura colocar o adversário numa posição vulnerável em relação às teses que defende, explorando as contradições existentes no seu discurso, ou entre o seu discurso e os seus atos e/ou valores professados212:

Argumenta ad hominem ou ex concessis. No que diz respeito a alguma afirmação do

adversário, temos que procurar se ele não cai em contradição – nem que seja só aparentemente – com alguma outra coisa que tenha anteriormente dito ou admitido, ou com os princípios de uma escola ou seita que tenha elogiado ou aprovado; também com factos de quem pertence a essa seita, ou com membros falsos ou supostos, ou com o seu próprio procedimento. (Schopenhauer, 2001: 65)

Schopenhauer e os autores do Tratado de Argumentação não fazem o mesmo juízo sobre o lugar que um argumento deste tipo pode ocupar no âmbito dos procedimentos característicos de uma argumentação racional. Para Schopenhauer, trata-se, inegavelmente, de uma falácia de relevância; de resto, na sua opinião, a dialética é, de uma forma geral, um instrumento perverso que a inteligência põe ao serviço da vaidade e da desonestidade213, e por isso os argumentos de que fala na sua Dialéctica Erística são por ele classificados como

concessões por ele admitidos, seja com uma verdade subjetiva e relativa. Neste último caso trata-se de urna prova relativa que não tem nada a ver com a verdade absoluta» (Schopenhauer, 2001: 47).

212 Trata-se da oposição entre ad hominem abusivo e ad hominem circunstancial na tipologia de Douglas Walton (cf. 2008: 170-184).

213 «“Organe” de la perversité humaine naturelle, instrument indispensable pour affronter les discussions avec succès et pouvoir ainsi satisfaire l’arrogance humaine naturelle, bref, volonté de l’emporter, indépendamment du fait d’avoir raison ou non: voilà ce qu’est la dialectique pour Schopenhauer, et rien de plus» (Volpi, 2008, 79). A justificação schopenhauriana para que o domínio das técnicas de argumentação dialética não seja posto de parte («Não obstante, quem está com a razão recorre à dialética para proteger o seu ponto de vista, e é imprescindível conhecer os estratagemas desonestos para saber enfrentá-los ou até aplicá-los para vencer o adversário» – 2001: 45) tem pontos de contacto com a defesa aristotélica da dialética e da retórica («Além disso, é preciso ser capaz de argumentar persuasivamente sobre coisas contrárias, como também acontece nos silogismos; não para fazer uma e outra coisa – pois não se deve persuadir o que é imoral – mas para que nos não escape o real estado da questão e para que, sempre que alguém argumentar contra a justiça, nós próprios estejamos habilitados a refutar seus argumentos» – Retórica: 1355a).

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«estratagemas» ou «artifícios»214, colocados ao serviço desses baixos instintos. Perelman e Olbrechts-Tyteca referem-se a essa classificação nos seguintes termos:

Schopenhauer qualificará de artifício (Kunstgriff) o uso de argumentos ad hominem consistindo em pôr o interlocutor em contradição com as suas próprias afirmações, com os ensinamentos de um partido que ele aprova ou com os seus próprios atos. Mas nada há de ilegítimo nesta maneira de proceder. Poderíamos mesmo qualificar tal argumentação de racional […]. (2006: 124)

A possibilidade de conceber a contradição ilustrada por Schopenhauer como um argumento legítimo num quadro de racionalidade argumentativa parece-me decorrer da própria tipologia proposta pelos autores do Tratado. Com efeito, incorrer numa contradição significa procurar atualizar dois princípios que se excluem reciprocamente – independentemente de esses princípios se manifestarem sob a forma de asserções ou sob a forma de atitudes. Douglas Walton, ao abordar, em Informal Logic, o argumento ad hominem circunstancial215, que coincide na sua essência com a definição de Schopenhauer, coloca a tónica na questão da inconsistência entre as circunstâncias pessoais da entidade visada e aquilo que ela num dado momento defende – por exemplo, a inconsistência entre os seus atos e as suas palavras216 –, sendo que a noção de inconsistência é indissociável da ideia de contradição lógica217. Como observa Walton, trata-se de saber se aquilo que consubstancia essa inconsistência (essa contradição) se pode conceber como pertencendo ao mesmo plano argumentativo; ou seja, se palavras e ações se podem equiparar («do actions speak as loud as words?» – 2008: 154). Walton defende que, em dados casos, a resposta a esta pergunta é afirmativa218, demonstrando que um dado comportamento pode ser traduzido através de um

214 Perelman e Olbrechts-Tyteca traduzem «Kunstgriff» por «artifice» (2000: 149). «Estratagema» é, porém, a tradução mais comum.

215 Walton considera fundamentalmente três tipos de argumento ad hominem: o abusivo (o ataque direto ao carácter do adversário), o circunstancial (cf. n. 216) e aquele a que por vezes se chama envenenamento do poço («poisoning the well»): a alegação de que o adversário tem interesses ocultos que afetam a sua imparcialidade (2008: 170-189).

216 «The circumstantial ad hominem argument is the questioning or criticizing of the personal circumstances of an arguer, allegedly revealed, for example, in his actions, affiliations, or previous commitments, by citing an alleged inconsistency between his argument and these circumstances. The charge, “You don’t practice what you preach!” characteristically expresses the thrust of the circumstantial ad hominem argument against a person» (2008: 170).

217 «The notion of inconsistency is a very important concept in logic and the analysis of arguments. If an arguer is found to be inconsistent, then that is a very strong form of criticism or condemnation of his position. An inconsistent set of propositions is one where a contradiction can be deduced by valid arguments. A contradiction is a proposition that is the opposite, or negation of itself» (Walton, 2008: 152).

218 «Sometimes they do, and the message conveyed by an action needs to be taken account of in the careful analysis of an argument» (2008: 154).

151 subjacente enunciado proposicional219. Desta forma, a denúncia de uma contradição no adversário pode ser encarada não apenas como um ataque ao seu carácter ou à sua inteligência – isto é, como um ataque pessoal –, mas como a identificação de um ponto crítico num sistema cuja coerência interna é legítimo escrutinar.

Assim, a descredibilização do opositor que resulta da exposição das suas contradições não dita por si só a desconsideração deste procedimento argumentativo e a sua classificação como falácia. De resto, é necessário ter em consideração que a desqualificação de um adversário é uma decorrência natural da sua refutação, independentemente dos meios usados para alcançar esse objetivo. Como observam Perelman e Olbrechts-Tyteca, qualquer que seja a técnica investida na refutação de uma tese, essa refutação acarreta inevitavelmente uma diminuição daquele que a havia sustentado220. Ainda assim, é necessário ter em consideração que As Farpas não visam, em regra, indivíduos; a não pessoalização dos ataques é mesmo um princípio editorial assumido: Eça refere-o na já muitas vezes citada carta a Joaquim de Araújo em que traça o perfil de Ramalho221, e logo no primeiro número, recuando ante a iminência de identificar um deputado cujo discurso elege como exemplo da falta de eloquência parlamentar, enuncia esse mesmo princípio: «A nossa questão não é de nomes, é de factos»222.

219 «What about the case where the father who smokes says to his son, “You must not smoke. It’s very bad for your health.” Is the son justified in feeling that his father’s argument is inconsistent? […] If the father is really arguing as represented in example 5.23, then he is inconsistent. / Example 5.23 / 1. Nobody should smoke, because smoking is bad for health. I smoke. / 2. If I smoke, my act is justified. In other words, my action of smoking may be interpreted as meaning that I advocate smoking. / 3. Therefore, I should smoke. / 4. But, if nobody should smoke, I should not smoke. / If the above is a fair representation of the father’s argument, then the argument is inconsistent. For (1) and (4) imply ‘I should not smoke,’ but (2) and (3) imply ‘I should smoke.’» (2008: 154-155). Quando Eça coloca na boca do governo uma sequência de asserções contraditórias («– Eu nada tenho com a arte teatral – e por consequência dou 25 contos ao teatro lírico»; «– Eu sou o protetor da arte teatral – e por consequência vou fazer que os teatros de Lisboa se fechem de penúria»), faz justamente aquilo a que se refere Douglas Walton: de um comportamento contraditório extrai um enunciado proposicional contraditório.

220 «Aquele cuja tese foi refutada graças a uma argumentação ad hominem vê diminuído o seu prestígio, mas não esqueçamos que essa é uma consequência de toda a refutação, qualquer que seja a técnica empregue» (2006: 124).

221 «[…] ele [Ramalho] e eu tínhamos horror ao nome próprio: nas provas, antes de pentearmos os períodos, catávamos-lhes os nomes próprios […]» (CP: 111).

222 «A Câmara não tem eloquência. […] Queres ver, leitor de bom senso um modelo de discurso? Foi o sr. deputado… Para quê dizer o nome? A nossa questão não é de nomes, é de factos» (F: 49). Esta salvaguarda do indivíduo, ao mesmo tempo que a instituição que o enquadra é visada, é notória noutros passos, de que é exemplo o seguinte: «A câmara (tomemos a atual, para exemplo) não tem princípios, nem ideias, nem consciência, nem independência, nem interesse pelo país, nem ciência, nem eloquência, nem seriedade. Isto não quer dizer que isoladamente, indivíduo por indivíduo, não se encontrem aquelas qualidades com um relevo poderoso; seria ridículo negar a erudição do Sr. Latino, a ciência do sr. Jaime Moniz, a honestidade do Sr. Rodrigues de Freitas, a eloquência do sr. Barjona, etc., etc., etc. O que se quer dizer, é que como corpo constituído, sentada nas suas cadeiras, com o seu presidente, a sua campainha, o seu copo de água com açúcar,

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Um dos principais focos de incidência dos ataques queirosianos situa-se na fratura existente entre determinadas manifestações discursivas – determinadas retóricas – e certas práticas sociais inconsequentes com essas asserções. Eça empenhar-se-á, desta forma, em expor as contradições em que incorrem atores sociais e instituições, nomeadamente o desencontro entre valores afirmados e práticas efetivas, de modo a polarizar a atenção dos seus leitores para a inconsistência das regras que no seu momento histórico presidem ao funcionamento da vida coletiva. Mais do que os ataques dirigidos a figuras específicas, são sobretudo frequentes aqueles passos em que a contradição é assinalada enquanto fenómeno instalado no sistema, sem que esteja encarnada numa figura particular. Quando tal acontece, de resto, é a repercussão social, sistemática, do conflito apontado que está em causa, e não tanto a entidade em que ele se manifesta, individualmente considerada. A incompatibilidade que As Farpas tipicamente denunciam não é tanto a transgressão que desqualifica no plano ético ou no plano intelectual o indivíduo perante o juízo dos seus semelhantes, mas a transgressão que desqualifica toda uma sociedade quando escrutinada por um juízo que olha para ela do lado de fora e se apoia numa racionalidade ética a partir da qual constrói os seus raciocínios.

Na verdade, mesmo quando a entidade visada é uma figura individual, Eça não deixa de enquadrar a transgressão identificada no contexto da sua representação social. Num artigo do terceiro número, de julho de 1871, As Farpas abordam um episódio que a imprensa tinha noticiado e comentado recentemente: um alto dignitário forçara a passagem por uma rua vedada à circulação, desrespeitando as indicações da polícia. Escreve Eça:

Alguns jornais […] [q]uiseram dizer – que s. ex.ª pretendeu colocar-se ridícula e presunçosamente como excepção, superior às determinações da polícia; que s. ex.ª, militar, deu o exemplo do desacato à disciplina militar; que s. ex.ª, chefe de polícia, tornou irrisórias as disposições policiais; que S. Ex.ª, legislador, ensinou o desdém das leis; que s. ex.ª, homem de bem que deve cumprir o seu dever, repreendeu dois homens pelo facto de eles cumprirem o seu dever; que s. ex.ª, plebeu, se quis dar a atitude aristocrática de personagem excepcional; que s. ex.ª obriga as pessoas de senso a lembrarem-lhe – que ele não é o tirano Nabucodonosor – mas o comandante obscuro de uma milícia civil […]. (F: 106)

A personagem em causa, nunca nomeada no artigo de Eça – e creio que nunca até agora identificada –, é o Barão do Rio Zêzere, Joaquim Bento Pereira, comandante-geral da

e os seus contínuos – a câmara tem a falta absoluta daquelas qualidades, e a abundância dos defeitos opostos» (F: 48).

153 Guarda Municipal. Não seria difícil o leitor da época percebê-lo: tê-lo-ia sabido pela restante imprensa223, ou leria os indícios que o texto d’As Farpas oferece. O artigo, muito duro, ensaia, a partir deste episódio, uma interpretação do perfil psicológico de Joaquim Bento Pereira, explorando sempre, em várias etapas, um forte contraste entre um conceito elevado de coragem e de valentia e a forma deturpada como esse conceito é interpretado pela figura que protagoniza a situação inicial. Dir-se-ia que, não obstante a reserva de identidade que As

Farpas salvaguardam, é efetivamente um homem que elas atacam. O excerto citado, porém,

diz-nos outra coisa: as múltiplas declinações que Eça extrai do comportamento transgressivo da personagem visada traduzem, na verdade, as várias faces da repercussão social de um erro aparentemente localizado e relativamente inconsequente, e é isso que torna este caso merecedor de atenção.

Os desdobramentos que Eça opera de uma ocorrência única em sucessivas vertentes de significado apresentam-se à primeira vista como exibição (aliás recorrente) da sua competência analítica, mas são também marca (não menos frequente) da sofisticada elaboração retórica dos seus argumentos. Assim, os sucessivos epítetos («militar», «chefe de polícia», «legislador», etc.) são escolhas retóricas («uma qualidade que se escolhe para pôr em evidência» – Perelman, 1993: 65) que atualizam, tornando-as presentes no espírito do leitor224, aquelas diferentes dimensões do perfil social da personagem visada que lhe deveriam impor uma conduta distinta da assumida, desdobrando (e, portanto, amplificando) as consequências do seu ato. Entretanto, a opção pela forma contiguizada através da qual se opõem os pares antitéticos «militar»/ «deu o exemplo do desacato à disciplina militar», «legislador»/ «ensinou o desdém das leis», etc., em que o segundo elemento predica o primeiro, aproxima-se incontestavelmente da formulação da contradição lógica A ∧ ¬A.

Quando As Farpas se envolvem em polémicas, o ataque dirigido à persona da entidade adversária pode atingi-la com maior violência. Um dos casos mais ilustrativos deste princípio encontra-se na disputa em que As Farpas se envolvem, entre outubro e dezembro de 1871, com o jornal católico Bem Público. No número 6 (outubro), Eça censurara ao Encomendado de Santos-o-Velho o facto de este ter repreendido as mães que levavam as crianças à missa; o

Bem Público interviera em defesa do pároco, e Eça, no número 8 (dezembro), aponta o grosso

da sua artilharia a um argumento inesperado do jornal católico: «estão em primeiro lugar os deveres

223 Veja-se, por exemplo, o artigo «Um escândalo», com a data de 26 de julho, publicado em A Lanterna (Lobo, 1871).

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da lactação, que os desejos da devoção» (F: 319). Eça mobiliza um sofisticado aparato retórico

(enumerações, gradações, hipérboles, antíteses), pontuado por uma aparente solidez geométrica, necessária, dos raciocínios («isto é», «repara bem», P → Q, «estás pois», «és então»), para demonstrar ao seu adversário que semelhante proposição colide frontalmente com o corpo de valores por ele professado e socialmente representado: que tal afirmação assentaria antes na perfeição a Proudhon ou a Michelet; que ela contém em germe uma profunda revolução nos fundamentos da religião; que, em última instância, ela coloca o homem antes de Deus; que proferi-la é «racha[r] de alto a baixo o catolicismo» (F: 319), etc. Neste caso, o adversário de Eça, o Bem Público, tem o estatuto de interlocutor; é um sujeito argumentativo e, desta forma, existe uma reciprocidade dialógica que interrompe aquilo que é mais habitual acontecer n’As Farpas: um discurso crítico sobre uma entidade que, em regra, não se manifesta. É precisamente esse estatuto de interlocutor que Eça destrói («Ah! Bem

Público, excêntrico maganão, conserva-te quieto, no teu canto! Reza, jejua, disciplina-te, – mas

deixa-nos em paz!» – F: 320), depois de o expor não apenas à humilhação da incompatibilidade em que incorrera, mas ainda àquela que advém do facto de ser levado a uma situação de autofagia argumentativa. Eça acaba por prescindir da utilização de um argumentário proveniente do seu quadro de ideias e convicções e opta por provocar um curto-circuito na argumentação do Bem Público: ao construir a sua argumentação de ataque a partir do quadro conceptual do adversário, demonstra que o Bem Público será, em virtude das suas afirmações, vítima do seu próprio sistema de verdades e de valores225.

Mas esta violenta humilhação intelectual de um interlocutor não é, nem sequer neste caso, o limite derradeiro da intervenção queirosiana. O Bem Público é mais do que um interlocutor: na perspetiva d’As Farpas, é um ator social relevante, é um jornal que representa determinadas práticas que contribuem para o declínio da qualidade do discurso na esfera pública, é um tentáculo da reação ultramontana, comprometido com uma ordem que procura a todo o transe garantir a perpetuação de um mundo velho. Se As Farpas pretendem precipitar o fim dessa ordem e preparar o advento de um mundo novo, o ataque ao Bem

225 «Ó Bem Público, estás pois assim naturalista e ateu! És então um falso devoto! Um tartufo! Meu Deus, que suposição, serias tu que mataste, em Paris, mr. Darboy? Serás tu o anti-Cristo? Cruzes! Por cima da tua sotaina de sacristão, pões uma faixa escarlate de membro da comuna? Ó Bem! Será a tua água benta petróleo? – Celerado! incendiário! apóstata! Vai-te! Estás maldito: enquanto a Nação tua irmã, enquanto o Diário Nacional, enquanto a Crença, estarão muito contentes no paraíso, tu, Bem Público, excluído da bem-aventurança, por ter