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O discurso da religião

enigmas e decifrações

2.2. A linguagem como lugar crítico

2.2.2. A decadência do espaço público discursivo

2.2.2.2. O discurso da religião

Os ataques que na sua obra Eça desfere contra o catolicismo não podem ser encarados como a manifestação de uma antipatia pessoal, nem sequer como uma marca ideológica singular no contexto de ideias em que ocorrem. Bastaria a assunção do seu tributo ao realismo, com o que isso implica em termos de renúncia a um projeto estético ou ideológico individual e de adesão a um programa coletivo, para enquadrar num plano concertado a luta queirosiana contra as velhas estruturas que sustentam um país, entre outras coisas, católico e devoto104.

Com efeito, Eça está longe de travar sozinho esse combate contra aquilo que aos olhos das correntes progressistas do seu tempo se afigurava como uma das mais poderosas forças sociais de entrave ao desenvolvimento do país. No artigo «Eça de Queirós e Clarín ou o romance como discurso ideológico», Carlos Reis ensaia um esboço de mapeamento dos ambientes de inclinação anticlerical que rodeiam a conversão de Eça ao realismo e as suas primeiras produções filiadas nesta corrente105. Referências do anticatolicismo como Michelet e Proudhon, movimentos emergentes como o socialismo e o republicanismo, a par dos sinais de repúdio por parte da Igreja em relação ao progresso científico, político e social, bem como de reforço das suas posições conservadoras em matéria de doutrina – são vários os fatores que contribuem para o surgimento de uma sensibilidade crítica em relação à Igreja. É nesse contexto, refere Carlos Reis, «que se enuncia, a várias vozes e em vários registos, um discurso ideológico-artístico de propensão anticlerical e laicizante mais ou menos audível, mas não necessariamente de intenção anti-religiosa» (1999: 98).

104 «Os meus romances importam pouco […]; o que importa é o triunfo do Realismo» (Cor, I: 187); «O que queremos nós com o Realismo? […] queremos fazer a fotografia, ia quase a dizer a caricatura do velho mundo burguês, sentimental, devoto, católico, explorador, aristocrático, etc.» (Cor, I: 188).

105 «O anticlericalismo é um componente decisivo do contexto cultural e mental em que se enquadra o discurso ideológico queirosiano, quando ocorre a génese d’O Crime do Padre Amaro, num tempo propício a reacender uma questão religiosa que tinha raízes remotas na cultura portuguesa» (1999: 97).

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Convém não esquecer que no século XIX a Igreja de Roma é forçada a enfrentar uma série de complexos desafios que ameaçam quer a estabilidade da sua estrutura temporal, quer a solidez do seu corpo teológico: por um lado as revoluções liberais tinham atingido os alicerces políticos, sociais e ideológicos em que ela se apoiava historicamente; por outro o pensamento filosófico produzido por correntes e autores ligados ao racionalismo, ao idealismo, ao materialismo, ao positivismo – Kant, Hegel, Fichte, Feuerbach, Comte… – colocava cada vez mais desafios à sustentação da teologia tomista. Entretanto, correntes de doutrinação política como o socialismo e o anarquismo ameaçam desviar do seio do catolicismo as populações mais atingidas pela miséria social – preocupação que viria depois a estar na base da doutrina social da Igreja. Vários progressos no âmbito das ciências exatas, naturais e sociais atingem o coração de algumas verdades fundamentais da fé – desde os trabalhos no domínio do historicismo bíblico de Strauss e Renan até ao evolucionismo de Lamarck e Darwin.

Em face deste cenário, a Igreja defende-se. Por um lado, consegue garantir a preservação do seu papel como instrumento de reprodução de estruturas sociais: pelo magistério de proximidade que o clero mantém junto das populações, pelas influências que manobra nos processos eleitorais, pela presença nas estruturas do poder político (cf. Ferreira, 2000). Por outro, reage contra os ventos de mudança: na encíclica Mirari Vos (1832), Gregório XVI ataca o indiferentismo religioso e as liberdades de consciência, de opinião e de imprensa consignadas na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, posição reforçada depois por Pio IX, que no Syllabus (1864) elenca e condena os erros da época: racionalismo, socialismo, comunismo, autonomia da razão e da moral em relação à fé, laicidade dos Estados, liberdades individuais de culto, de consciência, de expressão, etc. Perante a vulnerabilidade das verdades de fé quando submetidas ao escrutínio da história e da ciência, o mesmo papa responde com a instauração de dogmas como o da Imaculada Conceição (1854) e o da infalibilidade pontifícia (Concílio do Vaticano I, 1870).

Contemporâneas d’As Farpas, as Conferências do Casino são, entre muitas outras coisas, também um marco incontornável na afirmação pública de um pensamento crítico de pendor anticatólico. Enquanto Antero, Eça e Adolfo Coelho (mais do que Augusto Soromenho) apostavam numa ação que pudesse contribuir para que o país se sincronizasse com a hora da Europa transpirenaica, Roma ia procurando a todo o custo travar os ponteiros desse relógio. Antero de Quental denuncia o papel da Igreja na história da Europa,

89 e em particular na história dos povos do Sul, elegendo o catolicismo pós-tridentino como o mais determinante dos três grandes fatores responsáveis pelo seu declínio106. Está em causa, na abordagem anteriana, sobretudo o condicionamento do livre uso da razão e o ataque ao princípio da autonomia da consciência individual que o concílio determinara, na sequência das decisões nele tomadas107. Antero passa em revista medidas e dogmas impostos em Trento, assinalando o respetivo alcance: o dogma do pecado original atingia a liberdade e a dignidade humanas, a transubstanciação feria a razão natural dos fiéis, a confissão fundava o poder do confessor enquanto elemento infiltrado na célula familiar, emergindo afinal o conceito de que «o homem deve ser um corpo sem alma, que a vontade individual é uma sugestão diabólica, e que para nos dirigir basta o Papa em Roma e o confessor à cabeceira» (1987: 39).

Todas estas questões estão presentes no espírito de Eça e informam decisivamente o cunho das suas críticas de cariz antirreligioso, quer elas se projetem em personagens de ficção, quer ocorram em textos de intervenção. Elas ecoam com assinalável precisão, por exemplo, no passo de O Crime do Padre Amaro em que o doutor Gouveia explica a João Eduardo, tomando o exemplo de Amélia, todo o fenómeno de submissão do espírito do fiel católico à autoridade da sua Igreja e a influência direta que sobre ele exercem os seus representantes108. Os múltiplos exemplos de personagens femininas expostas à influência dos respetivos ‘diretores espirituais’109 (Amélia nem sequer constitui o caso mais típico, que se

106 Cf. «Baixávamos pela indústria, pela política. Baixávamos, sobretudo, pela religião» (1987, 31); «Tal é uma das causas, senão a principal, da decadência dos povos peninsulares. Das influências deletérias nenhuma foi tão universal, nenhuma lançou tão fundas raízes» (1987: 49).

107 «[…] a liberdade moral, apelando para o exame de consciência individual, é rigorosamente o oposto do catolicismo do Concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus» (1987: 31).

108 «Toda a vida do bom católico, os seus pensamentos, as suas ideias, os seus sentimentos, as suas palavras, o emprego dos seus dias e das suas noites, as suas relações de família e de vizinhança, os pratos do seu jantar, o seu vestuário e os seus divertimentos – tudo isto é regulado pela autoridade eclesiástica (abade, bispo ou cónego), aprovado ou censurado pelo confessor, aconselhado e ordenado pelo diretor da consciência. O bom católico, como a tua pequena, não se pertence; não tem razão, nem vontade, nem arbítrio, nem sentir próprio; o seu cura pensa, quer, determina, sente por ela. O seu único trabalho neste mundo, que é ao mesmo tempo o seu único direito e o seu único dever, é aceitar esta direção; aceitá-la sem a discutir; obedecer-lhe, dê por onde der; se ela contraria as suas ideias, deve pensar que as suas ideias são falsas; se ela fere as suas afeições, deve pensar que as suas afeições são culpadas» (CPA: 583).

109 A questão da passagem do confessor a diretor espiritual (confessor na igreja, diretor em casa das fiéis) é abordada por Michelet em Le Prêtre, la Femme et la Famille: o ascendente do confessor sobre a mulher, o seu papel no enfraquecimento dos laços familiares, o isolamento da mulher numa solidão moral que reforça a dependência, etc.

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encontra antes em personagens como Maria Eduarda Runa110 ou D. Laura Amado111, por exemplo) representam bem, por um lado, a supressão de todo o princípio de autonomia individual, a alienação da consciência, dos instrumentos de julgamento e de ação, e, por outro, o efeito perverso da entrada do clero numa esfera de proximidade demasiado estreita. O doutor Gouveia, de resto, embora pelas contingências da cronologia não possa ter assistido às Conferências do Casino (a última cena de O Crime do Padre Amaro, volvidos anos sobre os acontecimentos centrais da ação, situa-se precisamente em fins de maio de 1871), exibe um pensamento assinalavelmente sintonizado com as teses aí defendidas. Na sua conferência sobre A Questão do Ensino, Adolfo Coelho, reagindo assumidamente contra a doutrina antiprogressista do Syllabus de Pio IX112, procura demonstrar uma consequência devastadora da subordinação da ciência à religião em matéria de conhecimento: o facto de a religião fornecer um sistema explicativo para a totalidade dos fenómenos torna, ipso facto, inútil o ensino de qualquer disciplina científica113. Também neste caso o doutor Gouveia assume o papel de porta-voz ficcional das conferências, ao defender perante o abade Ferrão ideias muito semelhantes, numa discussão em que sobressai, além do mais, a incapacidade do eclesiástico para rebater a argumentação do representante da ciência114.

110 «O padre Vasques, apoderando-se daquela alma aterrada para quem Deus era um amo feroz, tornara-se o grande homem da casa» (M: 19).

111 «O sacerdote particular deste Deus, o intérprete na terra das suas vontades, era o padre Augusto, que morava numa casa de hóspedes às Portas de Santo Antão, e de quem D. Laura recebia a direção espiritual, as ordens, os conselhos, as admoestações e as baforadas do hálito impregnado de alho» (CA: 69).

112 «“Lembremos” [sic], dizia ainda eu, em cujo espírito estava bem presente a Encíclica e o Syllabus de Pio IX “de que estamos num país em que que o catolicismo é a religião do Estado imposta materialmente à consciência de todos os que são portugueses: o espírito científico é, pois, aqui repelido de tudo o que estiver sob a ação imediata do Estado, perseguido fora dele […]”» (Adolfo Coelho, Alexandre Herculano e o Ensino Público, 1910. Apud Medina, 1984: 76).

113 «A questão da absoluta impossibilidade duma conciliação entre a ciência e a religião salta aos olhos de todos os que têm um pouco de bom senso; mas infelizmente o bom senso, os espíritos raciocinadores são raríssimos. É evidente que os dogmas católicos fornecem solução para todos os grandes problemas científicos; para quê pois a ciência? para quê reagir contra o que está estabelecido na Bíblia e nas decisões dos concílios? As investigações etnográficas e linguísticas são heresias: o Génesis fornece quanto é necessário saber sobre a origem das raças e das línguas. Os geólogos são heréticos, porque o grande fenómeno da criação se acha explicado no mesmo livro de Moisés; as ciências sociais são heresias porque o homem só deve tratar da sua salvação. Como explicar pois a contradição que existe na prática senão pelo estado ilógico dos espíritos e das sociedades, que fazem concessões simultâneas à tradição e à revolução?» (Coelho, 1872: 25).

114 «– Mas quando se manifestam no pequeno os primeiros sintomas de razão, continuava o doutor, quando se torna necessário que ele tenha, para o distinguir dos animais, uma noção de si mesmo e do Universo, então entra-lhe a Igreja em casa e explica-lhe tudo! Tudo! Tão completamente, que um gaiato de seis anos que não sabe ainda o bê-a-bá tem uma ciência mais vasta, mais certa, que as reais academias combinadas de Londres, Berlim e Paris! O velhaco não hesita um momento para dizer como se fez o Universo e os seus sistemas planetários; como apareceu na Terra a criação; como se sucederam as raças; como passaram as revoluções geológicas do globo; como se formaram as línguas; como se inventou a escrita… Sabe tudo: possui completa e imutável a regra para dirigir todas as ações e formar todos os juízos; tem mesmo a certeza de todos os

91 Neste clima de fricção entre um pequeno grupo de jovens que pretendem sacudir consciências e um statu quo que procura impedir que ventos contrários se agitem e abalem as estruturas do poder, as Conferências são encerradas – e essa mesma religião acossada por vários quadrantes, desgastada de tantos embates, inconformada com o liberalismo, e por isso enfraquecida, é afinal a razão por que o Marquês de Ávila e Bolama decreta a suspensão das sessões do Casino Lisbonense, invocando o artigo 6.º da Carta Constitucional115.

Mais convicto, porém, do que um verdadeiro sentimento antirreligioso, era o combate às posições retrógradas da Igreja que estava frequentemente em causa. Num texto em que responde às opiniões críticas que os jornais católicos Bem Público e A Nação publicam sobre a sua conferência, Antero de Quental escreve o seguinte:

Eu sou naturalista e, como tal, pouco afeiçoado aos deuses. Simpatizo porém com o que há no sentimento cristão de puro ideal, de humano, de eterno. Neste sentido, não tenho dúvida em me dizer cristão, apesar de não pertencer a igreja alguma… engano-me! exatamente por não pertencer a igreja alguma… É neste sentido também que me considero melhor cristão do que o papa, porque compreendo e sinto melhor do que ele o cristianismo. (Quental, 1982: 322)

Também o ataque que As Farpas fazem à Igreja, mais do que os fundamentos da religião, visa sobretudo as suas práticas. Eça tem o cuidado de preservar uma ideia que lhe será sempre cara: a de que o cristianismo comporta na sua origem um princípio de justiça inscrito numa história bela, que as vicissitudes da História foram progressivamente deturpando. Um artigo publicado no número de outubro de 1871 ilustra de forma particularmente feliz esta ideia: no início, Eça evoca um Cristo brando e acolhedor, um «meigo rabi» que quer junto de si as crianças que os discípulos procuravam manter afastadas, lição que contrasta com a atitude do Encomendado de Santos-o-Velho, que proíbe as mães da levarem os filhos à missa; no final, o divórcio entre o exemplo de Cristo e as práticas da

mistérios; ainda que seja míope como uma toupeira vê o que se passa na profundidade dos céus e no interior do globo; conhece, como se não tivesse feito senão assistir a esse espetáculo, o que lhe há de suceder depois de morrer… Não há problema que não decida… E quando a Igreja tem feito deste marmanjo uma tal maravilha de saber, manda-o então aprender a ler… O que eu pergunto é: para quê? / A indignação tinha emudecido o abade./ – Diga lá, abade, para que os mandam os senhores ensinar a ler? Toda a ciência universal, o res scibilis, está no Catecismo: é meter-lho na memória, e o rapaz possui logo a ciência e consciência de tudo…» (CPA: 971).

115 Segundo o texto da portaria afixada à porta do Casino Lisbonense a 26 de junho de 1871, o encerramento das Conferências deve-se ao facto de nelas se sustentarem «doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições políticas do Estado» e de tal ofender «clara e diretamente as leis do reino e o código fundamental da monarquia» (apud Rodrigues, 1980: 59). Determinava o artigo 6.º da Carta Constitucional de 1826 (na sequência, aliás, do artigo 25.º da Constituição de 22), à época na sua terceira vigência histórica: «A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Reino» (Miranda, 1984: 95).

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Igreja projeta-se deste caso particular para toda uma história secular: «Pobres pequenos! consolai-vos. Jesus o vosso amigo, também não é mais feliz: há muitos séculos que ele procura erguer a pedra do seu túmulo, e há muitos séculos que o seu clero carrega na pedra para baixo!» (F: 232).

Se considerarmos o processo crítico a que As Farpas submetem determinados aspetos da vida portuguesa, compreende-se que Eça concebe um lugar no sistema para uma eloquência parlamentar que não seja a sua própria caricatura ou para uma literatura que não se alheie das questões do seu tempo. Nesse sentido, é possível que haja também lugar para uma interpretação do cristianismo que não deturpe o exemplo do seu fundador. É, de resto, sintomático que não se encontre nos romances de Eça de Queirós uma personagem que encarne de forma edificante a classe política, que talvez só Fradique interrompa a galeria de escritores medíocres criados por Eça (mas Fradique é a todos os títulos a representação de uma impossibilidade), ao passo que entre os eclesiásticos se destaca, pela interpretação reta que faz do seu ministério, o abade Ferrão, de O Crime do Padre Amaro, precisamente aquela obra em que a Igreja é mais fustigada. O abade Ferrão representa a vocação que a religião poderia ter no mundo se os seus ministros não fossem sensíveis a chamamentos mais mundanos do que cristãos, e é também a manifestação de que, sob o anticlericalismo que informa o programa ideológico de Eça, nele existe um irreprimível fascínio pelos exemplos de santidade, que acaba por pontuar vários momentos da sua obra (cf. Monteiro, 2002).

O artigo de abertura do primeiro número d’As Farpas parece disposto a ajudar-nos a compreender esse lugar alternativo que a religião poderia ser, o papel que ela poderia desempenhar na vida das pessoas, em contraponto com os valores que efetivamente representa no momento histórico em curso. Num passo em que a ideia de decadência, transversal a todo o texto, é manifesta, encontramos uma das críticas mais sistemáticas que

As Farpas lhe dirigem: o culto dos seus aspetos exteriores, formais (poder-se-ia dizer desde já: retóricos), que acaba por preencher todo o espaço do culto; em contrapartida, a religião «não

dá uma regra para o julgamento, nem um critério para a consciência». Quase um ano depois, em março de 1872, Eça retoma em termos muito semelhantes este tópico:

Ora para que se dá religião a um homem, a uma mulher? Para lhe dar um guia para a sua consciência e um guia para a sua moral: uma doutrina que lhe ensine o que deve pensar e o que deve fazer: critério para o seu juízo e critério para a sua ação. O que se lhe ensina no catecismo? Uma série de fórmulas e de palavras, cujo sentido lhe é estranho, como uma língua ignorada. Aprende-a maquinalmente como uma lição, que recita a certas horas, depressa ou devagar, como uma obrigação, como se penteia e como trata as unhas. (F: 420)

93 Aquilo de que a religião se viu expurgada foi, portanto, segundo Eça, da sua qualidade de mapa para o julgamento, a consciência, a inteligência. Mas, sem esse mapa, ficarão perdidos julgamento, consciência e inteligência? Trata-se de saber se há, fora do âmbito da religião, uma razão ética, uma razão lógica e uma razão prática que permitam ao homem julgar, pensar e agir de outra forma que não ao sabor de impulsos ou condicionalismos externos.

Um dos tópicos recorrentes da abordagem que nos romances queirosianos se faz da questão religiosa prende-se precisamente com o papel da religião na definição das referências éticas do indivíduo. Em Os Maias, Afonso da Maia e o abade Custódio discutem sobre se Carlos deve ou não ser catequizado: o abade considera impossível que haja «felicidade e bom comportamento na vida sem a moral do catecismo» (M: 67); Afonso, por seu lado, crê numa ética laica, desejando que o neto «seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas não por medo às caldeiras de Pêro Botelho, nem com o engodo de ir para o Reino do Céu» (M: 68)116. Naturalmente, se os interditos e as obrigações religiosas são aquilo em que assentam as decisões fundamentais do indivíduo, este coloca-se sob o domínio de uma moral coerciva, uma moral que se impõe através de um sistema de recompensas e penalizações; já a ideia de moral que o avô de Carlos pretende incutir no seu neto apresenta- se como um valor superior, porque desinteressado. Em O Crime do Padre Amaro, o doutor Gouveia – a voz da razão esclarecida, a personagem que representa o espírito das Conferências – explica a João Eduardo precisamente que «a moral católica é diferente da moral natural e da moral social», e que ela é – depreende-se das suas palavras – perversa nos juízos em que assentam as suas hierarquias117, logo uma modalidade inferior de moral. Esta é,