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A prevalência materna e feminina no cuidado cotidiano de crianças pequenas

Lúcia Vaz de Campos Moreira Ana Maria Almeida Carvalho Vânia Maria Picanço de Almeida Nestor Norio Oiwa

Introdução

D

uas constantes acompanham os sistemas familiares ao lon-

go do tempo e do espaço: a unidade familiar, como contexto básico de convivência e de criação de filhos, e a responsabilidade predominante da mulher em relação ao cuidado do lar e dos filhos. Isso foi mais amplamente apresentado por Castro e colaboradores no primeiro ca- pítulo deste livro.1

Apesar das mudanças decorrentes de transformações no modo de produção das sociedades humanas e da participação cres- cente das mulheres no mercado de trabalho, particularmente a partir de meados do século XX, essa atribuição de responsabilidades não parece ter sofrido mudanças significativas até a atualidade. (ARAÚJO; SCALON, 2005; ARAÚJO; PICANÇO; SCALON, 2007; ARRIAGADA, 2000, 2007; BORGES, 2007; CAPPELLIN, 2005; ENRIQUEZ, 2005;

SORJ, 2004) Ainda que as novas relações de gênero tenham desesta- bilizado a figura do pai como autoridade, em relação ao uso do tempo para tarefas domésticas e qualidade de sua participação nestas, os ho- mens são “atores coadjuvantes” (DONATELLI, 2006 apud CASTRO; MIRANDA; ALMEIDA, 2007) e as mulheres continuam a ter uma so- brecarga de trabalho doméstico que não contrabalança a duração de sua jornada de trabalho externo, a qual é, em média, inferior à dos ho- mens. (BORGES, 2007) Assim, as mulheres já desempenham funções tradicionalmente masculinas no mercado de trabalho, mas o inverso não tem ocorrido para os homens em relação às tarefas domésticas, a não ser de forma auxiliar ou complementar. (TORRES, 2004)

Arriagada (2000) assinala que as funções de cuidado e de so- cialização inicial dos filhos são compartilhadas, cada vez mais, com outros agentes sociais, como a escola, a instituição de educação infan- til, outras pessoas da família e não familiares – o que ocorre segundo as possibilidades econômicas e a presença ou não de famílias exten- sas. Entretanto, não se pode dizer que o envolvimento dos diversos cuidadores se dá com a mesma intensidade. Eles são classificados por Born (1996) como primários, secundários e terciários. Os primários são identificados como os principais responsáveis pelos cuidados e desempenham a maioria das tarefas. Já os secundários podem desem- penhar as mesmas tarefas que o cuidador primário, porém não têm o mesmo nível de responsabilidade e decisão. Comumente atuam de forma pontual em algumas tarefas de cuidados básicos, oferecem aju- da doméstica e se revezam com o cuidador primário. Por sua vez, os terciários são coadjuvantes e não têm responsabilidades pela pessoa que requer cuidados.

Transformações tecnológicas, sociais e econômicas, favorecem mudanças na estrutura, organização e padrões familiares, e também nas expectativas e papéis de seus membros. (DESSEN; POLÔNIA, 2007) Diante das mudanças sociais e familiares, o casal da atualidade, cuja mulher está inserida no mercado de trabalho, precisa vivenciar novas formas de comportamento, de trocas, levando homens e mu-

lheres à necessidade de reformular seus papéis de buscar novas defi- nições; segundo Cerveny e Chaves (2010), isso torna a paternidade contemporânea um pouco incerta, um lugar ainda não definido – ou melhor, de reestruturação –, fazendo com que o modelo de paternida- de tradicional não mais caiba na contemporaneidade. Com as velozes transformações sociais, a família contemporânea depara-se de forma contundente com a mudança no posicionamento das mulheres que, assim como os homens, encontram-se inseridas em contextos compe- titivos que interferem nas relações, como o do trabalho profissional, em que, segundo Machado (2004), há trocas mediadas pelo dinheiro, com circulação de bens e de valores de acordo com as regras impostas pelo mercado. Mas não são apenas as questões econômicas que impul- sionaram, e impulsionam, as mulheres para o mercado de trabalho e a outras mudanças de comportamento; assim como os homens, elas passaram a valorizar e a buscar satisfação para as suas necessidades pessoais e profissionais. (GIDDENS, 2004)

Há alguns indícios de uma nova divisão de tarefas no âmbito familiar e social. Jablonski (2007), ao estudar o cotidiano do casa- mento no contexto carioca, sinaliza que a maior parte das pessoas entrevistadas em sua pesquisa, além de contar com a ajuda de fami- liares no cuidado com as crianças, também recebe apoio de profis- sionais diversos para a execução de tarefas domésticas. Um estudo de Moreira e Alves (2007) visou conhecer quais pessoas/instituições colaboram com pais e mães na tarefa de educar seus filhos. Para cumprir este objetivo, foram entrevistados 50 homens e 50 mulhe- res de nível universitário, com união marital estável e filho(s) com idade(s) entre dois e sete anos, sendo 50 de uma cidade do inte- rior paulista (25 pais e 25 mães) e 50 de uma capital do Nordeste (mesma divisão). Perguntou-se aos participantes se concordavam ou não que os avós, tios(as), outros parentes, empregada/babá, ami- gos e vizinhos colaboravam com a educação e os cuidados ao filho. Como resultado, os avós obtiveram o maior índice de concordân- cia: 81%. Para os tios(as) (68%) e a empregada/babá (67%), foram

constatadas concordâncias acima de dois terços. A porcentagem de concordância sobre a colaboração da babá/empregada foi maior nos participantes do Nordeste. Cabe destacar que tanto os pais quanto as mães afirmaram que a babá colabora mais no cuidado e menos na educação, dado o baixo nível de escolaridade por elas apresenta- do, constatando-se referências dos participantes de que necessitam transmitir conhecimentos básicos a suas funcionárias, a fim de que isto se reflita positivamente no que transmitem a seus filhos. Os amigos obtiveram concordância em torno de 50%. Outros parentes e vizinhos têm índices menores de concordância. Os participantes que tinham o filho frequentando escola ou instituição de educação infantil foram indagados, ainda, se concordavam ou não que esta instituição colabora com a sua educação e cuidados. Como resulta- do, dos 87 participantes nesta condição (pois 13 crianças não fre- quentavam escola), 86 disseram que sim; apenas um pai do interior de São Paulo respondeu que não.

Na dinâmica de compartilhamento do cuidado infantil, tem- -se evidenciado, também, nas últimas duas décadas, uma tendência à maior participação masculina nos grandes centros urbanos e em paí- ses desenvolvidos. Na atualidade, é relativamente comum observar-se os homens participando da educação dos filhos e, até mesmo, dos cuidados para com os mesmos – um pai que, de acordo com Braga e Amazonas (2007), vai além do pai característico da modernidade, não sendo apenas aquele que faz a mediação entre as esferas pública e a privada, mas passando a ter outras funções e a criar laços mais estrei- tos com seu filho desde a vida intrauterina, através da comunicação verbal, do toque, e com ele relacionando-se fisicamente, a partir de cuidados com a higiene, da participação em atividades corriqueiras como o alimentar e o colocar para dormir. Entretanto, como sinaliza Jablonski, a distribuição de tarefas no lar ainda é marcada pela divi- são sexual, observando-se que, nesse contexto, a mulher arca com a maior parte das atividades.

Quanto à divisão das tarefas domésticas, embora se note que os homens relatem uma participação efetiva, na verdade, cotejando as informações pres- tadas por homens e mulheres, verifica-se que aque- les têm uma função coadjuvante, colaborativa e periférica: sua participação é definida pelas mulhe- res quase sempre como uma ‘ajuda’. (JABLONSKI, 2007, p. 218)

Os indícios são, portanto, de que as mulheres ainda arquem com a maior parte das tarefas domésticas e o tempo gasto em sua exe- cução continue muito desigual. (SILVA; ANASTÁCIO, 2008; WANG; JABLONSKI; MAGALHÃES, 2006)

Araújo e Scalon (2005, 2006) e Jablonski (2007) identificaram alguns sinais de maior participação masculina em tarefas tradicional- mente femininas, mas apenas nas relacionadas ao cuidado dos filhos, e em vários casos em atuação conjunta com a mãe. Quanto a outras tarefas domésticas, tal participação também aparece como bastante se- letiva na prática. (ARAÚJO; SCALON, 2006) Segundo Jablonski (2007, p. 209), “parece ainda persistir uma visão conservadora dos papéis dos cônjuges no que se refere às tarefas domésticas e à responsabilidade pelo cuidado e educação dos filhos” e, embora os homens tendam a considerar que a divisão de tarefas está se tornando como mais equita- tiva, as mulheres continuam a percebê-las como assimétricas.

No estudo de Wagner colaboradores (2005), que focalizou 100 famílias de Porto Alegre com filhos em idade escolar (sete a 12 anos), pais e mães foram entrevistados a respeito de sua participação nas tare- fas de cuidado e educação dos filhos. Uma parte da amostra apresentou um quadro mais tradicional, no qual as mães assumiam a responsabi- lidade pela maior parte das tarefas; em um segundo grupo, as tarefas de cuidado diário continuavam a ser desempenhadas predominante- mente pelas mães e o pai era o provedor principal, mas havia algum grau de compartilhamento de responsabilidades: entre oito tarefas relacionadas à criação e educação dos filhos, seis tinham participação de ambos os pais; nas duas restantes, a mãe era a principal responsá-

vel, e em nenhuma das oito o pai apareceu como principal responsável. A maior participação destes pais em tarefas relacionadas aos filhos, em comparação com outros estudos, poderia estar relacionada com a idade das crianças: Jablonski (2007) sugere que a participação dos homens na criação dos filhos tende a aumentar com a idade destes.

O objetivo da análise apresentada neste capítulo é detalhar a distribuição de tarefas de cuidado entre os membros da rede de cui-

dadores na amostra de famílias pesquisadas,2 que complementa em

dois aspectos os dados de Wagner e colaboradores (2005): focaliza crianças menores, ainda muito dependentes de cuidado físico, e ex- plora uma variedade maior de tarefas de cuidado. São investigadas possíveis relações com gênero do respondente, Nível Socioeducacio- nal (NSE) e geração segundo o critério II (G1: filhos caçulas pequenos – que ainda usam fraldas; G2: filhos caçulas com idade superior a 15 anos) e exploradas, no mesmo nível micro de detalhamento das tarefas, algumas questões possivelmente relacionadas, buscando pis- tas sobre o que subjaz à prevalência materna e feminina no cuidado cotidiano de crianças pequenas.

Com esse objetivo, esta análise focaliza três questões do rotei- ro de entrevista, a saber:

1 - Agora vou perguntar sobre atividades que todos os dias a gente faz com as crianças pequenas, para saber quem (entre os cuida- dores que você indicou) é o principal responsável por elas e que outras pessoas ajudam ou também participam: (4) mais frequentemente (na maioria das vezes); (3) muitas vezes; (2) às vezes ou (1) nunca.

2 - Entre as tarefas de cuidado, qual (ou quais) são, para você: (a) mais prazerosa(s), mais gostosa(s) de fazer?; (b) mais desgastante(s), mais desagradável(is) de fazer?; (c) a(s) que você acha mais fácil(eis) de fazer? e (d) a(s) que você tem mais dificuldade de fazer, não consegue fazer?

3 - Entre todos os cuidadores que você indicou, quem você acha que realiza bem cada uma das atividades (ou em quem você con- fia para)?

As atividades focalizadas nessas questões são especificadas a se- guir, sendo distribuídas em quatro tipos de tarefas de cuidado: cuidado físico, lazer/convivência, educação/disciplina e atividades externas.

Quadro 1 – Tipos de tarefas de cuidado

Cuidado físico Lazer/ convivência Educação/ disciplina Atividades externas

a. Trocar fralda j. Brincar op. Disciplinar/educar r. Levar ao médico

b. Dar banho k. Cantar/ ler história* s. Comprar alimento

c. Dar comida l. Passear t. Comprar roupa

d. Preparar comida m. Comprar brinquedo u. Outras externas*

e. Dormir de dia f. Dormir de noite g. Atender à noite h. Atender quando

doente*

Fonte: Pesquisa Gênero e família em mudança: participação de pais no cuidado cotidiano de filhos pequenos (UCSal-PPGFSC, 2009-2011).

* Categorias que apresentaram casos de Sem resposta: Não sabe/não lembra (mais comuns nos Grupos 2b e 3, entrevistas retrospectivas) e Não se aplica (por exemplo, a criança ainda não teve episódios de doença; não existe/não existia o hábito de cantar/ler histórias; não há/havia outras atividades exter- nas).

Na análise que se segue, primeiramente são identificados os cuidadores indicados mais frequentemente por pais e mães (a saber: mãe e pai,3 avó materna e babá) e os demais cuidadores. Houve poucas diferenças significativas entre respostas de pais e mães, motivo pelo qual foi analisado o conjunto de 300 respostas; isto implica que os nú- meros se referem a menções e não a cuidadores. Faz-se um exemplo: quatro menções a avós representam duas avós (mencionadas pelo pai e pela mãe); em caso de número ímpar de menções, o(a) cuidador(a)

foi mencionado(a) apenas por um dos respondentes (pai ou mãe, mais tipicamente a mãe). A partir desses resultados, são traçados os perfis dos cuidadores mais citados (mãe, pai, avó materna e babá, e de ou- tros cuidadores, agrupados por sexo e por parentesco).

Nos itens seguintes, são indicadas e comentadas diferenças apontadas nos testes estatísticos quanto a nível socioeducacional, gêne- ro e geração;4 é investigada a possibilidade de caracterização de tarefas

como femininas ou masculinas, a partir dos resultados do estudo (per- fis das atividades), e são exploradas duas outras questões pontencial- mente informativas sobre fatores subjacentes à divisão do trabalho de cuidado de crianças pequenas entre os cuidadores disponíveis: como os pais classificam as tarefas em termos de prazer/desprazer, facilidades/ dificuldades envolvidas e em quem confiam para realizá-las.

Nas considerações finais, os resultados expostos são retoma- dos e discutidos à luz das evidências de prevalência materna e femini- na no cuidado cotidiano de crianças pequenas e são apontadas algu- mas questões para pesquisas futuras.

Perfil dos cuidadores: de que tarefas cada cuidador se ocu-