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A prevalência materna e feminina no cuidado de crianças pequenas: considerações finais

Os resultados descritos e comentados aqui evidenciam uma clara prevalência do cuidado feminino, particularmente na categoria de cuidado físico. Em termos da classificação de Born (1996), apenas cuidadoras mulheres seriam classificadas como primárias (predomi-

nantemente a mãe).25Há maior diversidade de cuidadoras mulheres,

tanto familiares quanto não familiares, ao passo que os cuidadores homens incluem apenas, além do pai, avôs paternos, tios e irmãos, os quais, na maioria dos casos, seriam classificados como cuidadores terciários (categoria onde também se encontram algumas cuidadoras, por exemplo, a única bisavó, vizinhas e amigas). Assim, ainda que as mães apareçam como as principais responsáveis pelo cuidado, é predominantemente com outras mulheres que tendem a comparti- lhá-lo, particularmente quanto ao cuidado físico. Entre os cuidadores homens, o compartilhamento mais comum se refere às atividades de

24 Este e outros efeitos possíveis de interação entre os diversos fatores potencialmente rele- vantes para as análises a respeito do compartilhamento do cuidado e da participação dos cuidadores estão sendo tratados por meio de uma análise estatística mais elaborada, e serão alvo de outra publicação.

25 Ver neste livro, no capítulo intitulado Rede de cuidadores envolvidos no cuidado cotidiano de crianças pequenas.

lazer/convivência (especialmente brincar), e, apenas no caso do pai, há compartilhamento de educação/disciplina e atividades externas. Alguns outros indícios de critérios de compartilhamento, inclusive em relação às cuidadoras mulheres, são sugeridos pelos perfis dos cuidadores. Por exemplo, a participação reduzida de babás em edu- cação/disciplina, para a qual Moreira e Biasoli-Alves (2007) relatam uma possível justificativa: os pais e mães entrevistados em seu estudo informam que a babá colabora mais no cuidado (físico) do que em educação, o que atribuem ao fato de babás em geral terem menor nível de escolaridade; a participação de irmãs se concentra em brin- car, ao passo que outras cuidadoras (adultas) tendem a participar em algum grau de atividades diurnas de cuidado físico, além de lazer/ convivência.

Os resultados sobre confiança requerem uma exploração futu- ra mais detalhada, mas a avaliação subjetiva das tarefas produziu um indício interessante: para as mães, a participação independe da ava- liação subjetiva quanto a prazer versus desprazer e facilidade versus dificuldade, o que não ocorre para os pais. Essa diferença sugere ati- tudes subjacentes diversas em relação ao cuidado e que podem refletir disposições psicológicas diversas entre os gêneros: se a mãe assume, como sugerem os resultados descritos em itens anteriores, que lhe cabe (por direito ou por dever) o lugar de cuidadora principal, seu de- sempenho das tarefas será regulado pela necessidade de execução das tarefas, e não pelo grau de prazer ou dificuldade que envolvem; já no caso do pai, como cuidador complementar ou esporádico, há mais es- paço para a regulação por esses fatores. Assim, o pai poderá desenvol- ver com mais frequência atividades que mais lhe agradam. Por outro lado, há que levar em conta que, tipicamente, a socialização das meni- nas tende a prepará-las para certas tarefas de cuidado (particularmen- te de cuidado físico), o que não se dá na mesma medida no caso dos meninos, o que poderia estar se expressando na maior dificuldade que os pais percebem nessas tarefas. Em contrapartida, embora sem alcançar expressão estatística, há uma tendência de avaliação subje-

tiva mais positiva de educação/disciplina por parte dos pais do que das mães, o que poderia sugerir a hipótese de que os pais se sentem mais preparados e confortáveis nessas tarefas tradicionalmente mais atribuídas a eles, a ser verificada em outras amostras e/ou com outra metodologia. Essas são questões que abordagens qualitativas também poderiam contribuir para iluminar e aprofundar. Em síntese, tais da- dos corroboram a afirmação de Georgas, Berry e Kagitçibasi (2006, p. 238) de que “o papel do pai como uma figura de autoridade e de provedor mudou mais do que o da mãe como cuidador primário.”

Como observação paralela, é interessante retomar as diferen-

ças encontradas quanto a NSE,26 algumas das quais são sugestivas:

brincar e passear como tarefas mais prazerosas no NSE médio alto em contraste com o baixo pode estar refletindo simplesmente condições de vida que favorecem os recursos e a disponibilidade para essas ativi- dades; ao passo que levar ao médico como tarefa difícil no NSE baixo, em contraste com o alto, pode refletir a maior dificuldade de acesso e acolhimento nos serviços de saúde para os pais que não podem dispor de atendimento privado.

Carvalho e colaboradores (2008) refletem a respeito de práti- cas e conceções do cuidar como papel feminino, examinando os pon- tos de vista psicobiológico e histórico-cultural. Os presentes dados desenham o mesmo quadro geral descrito na revisão dessas autoras, na qual se evidencia a prevalência feminina em tarefas de cuidado em contextos diversificados e em vários níveis de cuidado, da materna- gem a profissões que envolvem cuidar. Segundo sua análise, o enfo- que psicobiológico baseia-se no argumento do maior investimento pa- rental feminino, que justificaria especializações e predisposições das mulheres para o cuidar, ao passo que argumento histórico-cultural enfatiza a identificação com modelos como mecanismo fundamental da preservação cultural dos papeis dos gêneros. Não cabe retomar essa discussão no contexto da presente análise que, no entanto, con-

firma a persistência da prevalência feminina no caso do cuidado de crianças pequenas e deixa espaço para ambos os pontos de vista ou, como propõem Carvalho e colaboradores (2008), para um esforço de integração entre estes.

Os presentes dados não encaminham à superação da dicoto- mia natureza-cultura, mas levantam questões de interesse para sua discussão e para aprofundamento neste e em outros estudos:27 o que subjaz à prevalência feminina, e particularmente da mãe, no nível micro do cuidado cotidiano e na especifidade das tarefas de cuidado? Disponibilidade de tempo relacionada a condições de trabalho? Dife- renças de motivação e de competência? Estereótipos culturais ainda prevalentes em um momento aparentemente de transição na divisão social do trabalho? A interação e o modo de operação desses e de ou- tros fatores ainda constituem desafios para a pesquisa e a prática rela- tivas ao cuidado parental.

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27 Ver neste livro, os capítulos intitulados respectivamente: O imaginário sobre mudanças na divisão sexual do trabalho doméstico de pais e mães de distintas inscrições socioeducacionais e gerações – Salvador e Quem cuida de quem? repensando as práticas familiares e a divisão do tempo/trabalho.

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Anexo A – Participação nas atividades (respostas de pais + mães)

Quadro 1 – MÃE

Atividades N Maioria Mtas vezes Às vezes Nunca s/ resp

Bloco 1. Cuidado físico n % n % n % n % n %

a. Trocar fralda 300 142 47,3*1 ***2 137 45.7*2 ***1 21 7,0 0 b. Dar banho 300 149 49,7 *1 ***2 125 41,7 *2 ***1 26 8,7 0 c. Dar comida 300 135 45,0 ***2 137 45,7 ***1 27 9,0 1 0,3 d. Prep comida 300 152 50,7***2 109 36,3 30 10,0*2 9 3,0*2 e. Dormir dia 300 122 40,7 *1 93 31,0 65 21,0 19 6,3 1 0,3 f. Dormir noite 300 171 57,0*1 108 36,0 20 6,7 1 0,3 g. Atender noite 300 161 53,7 115 38,3 19 6,3 5 1,7 h. Atender doente 300 137 45,7***2 150 50,0 7 2,3 2 0,7 4 1,3 Bloco 2 Lazer/conviv. j. Brincar 300 62 20,7 ***2 190 63,3 43 14,3 5 1,7 k. Cantar/ ler 300 95 31,7 147 49,0 36 12,0 19 6,3 3 1,0 l. Passear 300 62 20,7 213 71,0 19 6,3 6 2,0 m. Comprar brinq. 300 105 35,0***2 155 51,7*2 29 9,7***1 11 3,7 Bloco 3 Educação/disc.

op. Disc./ educar 300 81 27,0***2 193 64,3***1 20 6,7 6 2,0

Bloco 4: Externas

r. Levar médico 300 143 47,7*1 **2 147 49,0*2 **1 8 2,7*1 2 0,7

s. Comp.alimento 300 72 24,0 154 51,3 40 13,3*1 34 11,3

t. Comp. roupa 300 149 49,7***2 125 41,7 18 6,0*1 8 2,7

u. Outras externas 300 62 20,7***2 194 64,7*2 ***2 10 3,3 7 2,3 27 9,0

Fonte: Pesquisa Gênero e família em mudança: participação de pais no cuidado coti- diano de filhos pequenos (UCSal-PPGFSC, 2009-2011). X2 a 95%

* NSE: 1baixo > alto/ 2alto > baixo ** Gênero: 1pai > mãe/ 2 mãe >pai

*** Geração conceito 2: caçulas pqnos(p) x caçulas grandes(g): 1pequenos > grandes/ 2gdes > pqnos