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e a divisão do tempo/trabalho

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Bárbara Maria Santos Caldeira Claudia de Faria Barbosa Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti

Podem os desajustados serem outra coisa do que as supostas teorias procuram justificar, pessoas que não têm interesse nos interesses de outros.2

(BAIER, 1994, p. 29, tradução nossa)

Introdução

A

instituição família tem sido lugar de investigação dentro das Ciências Sociais e Humanas e, a partir de um enfoque interdisciplinar,

1 Este artigo é parte de um projeto coletivo coordenado pelas Professoras Dras. Mary Garcia Cas- tro e Ana Maria Almeida Carvalho e contou, ainda, com contribuições de Helaine Pereira Souza e Mellany Moreira Nascimento. Agradecemos as sugestões e as indicações bibliográficas que fomentaram e proporcionaram novos olhares para e sobre a economia do cuidar, ambas essen- ciais para a escritura deste texto: Dra. Dulce Galvão (Universidade de Coimbra, Portugal) e Dra. Marta Zabaleta (Middlesex University, Reino Unido). Especiais agradecimentos pelo levanta- mento bibliográfico realizado na London School of Economics pela estudante Júlia Thomaz, que possibilitou um acréscimo importante na abordagem historiográfica mais atual.

2 May unfit people to be anything other than what its justifying theories suppose them to be, ones who have no interest in each others’ interests.

ocupa dimensões instigantes e que dão abertura para novos olhares e novas abordagens. Não se trata de um novo objeto de estudo, mas de um fenômeno dentro de um ambiente híbrido e paradoxal, de inten- sas mudanças na contemporaneidade e que requer mais que recortes disciplinares. Tanto no uso de categorias relacionais como famílias (DONATI, 2008) e gênero (SCOTT, 1992, 1994, 2000) quanto na ob- servação das dimensões da vida social (seja individual ou familiar) e

histórica,3 proporciona campos de pesquisa e aprofundamento nas

dicotomias entre as duas categorias, ressaltando uma hermenêutica do cotidiano. (DIAS, 1998)

O cruzamento de categorias contribui no sentido da multirre- ferencialidade e da sobreposição/associação de gênero, gerações, ter- ritórios, raça/etnia e classe.4 Tempo e divisão do trabalho de cuidar de

crianças pequenas não são tarefas somente da contemporaneidade. A produção e a reprodução se matizam de forma naturalizada, mas, sobretudo nos últimos tempos, tem ocupado espaços e firmado novas fronteiras nas relações familiares e de gênero.5

3 Aqui vale a pena recuperar a seguinte citação: “Examinar gênero concretamente, contextu- almente e de considerá-lo um fenômeno histórico, produzido, reproduzido e transformado em diferentes situações ao longo do tempo. Esta é ao mesmo tempo uma postura familiar e nova de pensar sobre a história. Pois questiona a confiabilidade de termos que foram tomados como auto-evidentes, historicizando-os. A história não é mais a respeito do que aconteceu a homens e mulheres e como eles reagiram a isso, mas sim a respeito de como os significados subjetivos e coletivos de homens e mulheres, como categorias de identidades foram construídos.” (SCOTT, 1994, p. 19)

4 Outras são categorias abordadas em triangulação de dados. Ver o capítulo 8, deste livro, O Imaginário sobre mudanças na divisão sexual do trabalho doméstico de pais e mães de distin- tas inscrições socioeducacionais e gerações, de Castro e Souza e Gênero e família em mudança: uma revisão com foco em cuidado parental de Carvalho e colaboradores no capítulo 1. Ade-

mais, verificar também Macedo (2007).

5 Até os anos 80, poucos foram os trabalhos que refletiam as práticas mais igualitárias da vida privada, nomeadamente a inserção dos homens em uma participação efetiva e cotidiana dos cuidados de crianças pequenas. Já na década seguinte, as pesquisas enveredavam pou- co sobre “modelos de masculinidade, problemas de conciliação entre vida familiar e vida profissional do ponto de vista dos homens.” (WALL; AMÂNCIO, 2007, p. 22) No que diz respeito à produção acadêmico-científica a partir dos anos 2000, ver as indicações feitas por Castro e Souza, neste livro, no capítulo 8 intitulado O Imaginário sobre mudanças na divisão sexual do trabalho doméstico de pais e mães de distintas inscrições socioeducacionais e gerações.

Prover, cuidar e proteger são ações distintas, mas que demons- tram a necessidade e o exercício para além do econômico como mo- triz da ética do cuidar6 nos primeiros anos de vida. Esse ambiente

não somente está vinculado à formação do próprio indivíduo, mas espelha, ainda, de que maneiras as práticas familiares e sociais serão constituídas e fomentadas.

Espaço de sociabilidade e de formação de valores, o ambiente familiar pode sinalizar, paralelamente, mudanças macroestruturais vivenciadas e compartilhadas na atualidade, seja a conexão reali- zada entre gerações (avôs e avós que cuidam e proveem filhas(os) e netas(os)), sejam os serviços remunerados para suprir a atividade de cuidado diretamente realizada por parentes próximos e, de primei- ra instância, como mães e pais (nomeadamente babás, cozinheiras, empregadas domésticas, dentre outros), ou da ampliação novamente da concepção de família (permitindo a irmãs(os), tias(os), primas(os), etc. participarem do cuidar cotidiano).

Implica, sem dúvida alguma, a verificação da complexidade das tramas que se realizam no espaço familiar, mas identificam víncu- los e conflitos, assinalam “limites diversificados que o articulam, que requerem ser definidos e individualizados, mas também tematizados nas suas interdependências.” (SARACENO; NALDINI, 2003, p. 17)

Neste sentido, o principal objetivo desse texto é analisar as re- lações entre trabalho/tempo produtivo, cuidados com as crianças e

6 Uma contribuição clássica para a concepção de ética, percebida e produzida socialmente, bem como a ideia de que fato e significados compõem a cultura de um determinado grupo e tempo foi indicada por Lévi-Strauss (1992). Entrementes, a assertiva também é confir- mada no trabalho desenvolvido por Castro e Souza, neste livro, no capítulo 8 intitulado O Imaginário sobre mudanças na divisão sexual do trabalho doméstico de pais e mães de distintas inscrições socioeducacionais e gerações a partir da abordagem sobre ética referenciada por Figueiredo (2009), também sendo complementares as razões de Boff (1999, p. 47) quando menciona que “cuidar de alguém é prestar-lhe atenção solícita e ter uma disposição de afe- tividade.” Vale conferir, ainda, as referências indicadas no capítulo mencionado anterior- mente (O Imaginário sobre mudanças na divisão sexual do trabalho doméstico de pais e mães de distintas inscrições socioeducacionais e gerações) sobre a questão da paternidade, demons- trando um enfrentamento prático e teórico das mudanças advindas na esfera familiar e das relações de gênero. (GUEDES; DAROS, 2009)

igualdade/desigualdade de gênero, em uma perspectiva diversificada e fundamentada em literatura interdisciplinar e pesquisa investigati- va de um enfoque tipológico e centrado na premissa de que, apesar das mudanças nas estruturas familiares e de relações de gênero que aconteceram nas últimas décadas, as permanências e as nuances de um sistema simbólico e de representações sobre divisões sexuais – sobretudo quanto ao tema dos cuidados de filhos pequenos – ainda seguem mentalidades de longa duração, dando destaque às represen- tações relativas às assimetrias de gênero, sobretudo à questão da par- ticipação masculina nessa abordagem relacional.

O uso do banco de dados – com 300 indivíduos em dois núcle- os socioeconômicos distintos – obtido no Projeto de Pesquisa Gênero e família em mudança: participação de pais no cuidado cotidiano de filhos pequenos (CNPq Processo 402906/2008-0, 2008), cobre a pri- meira parte quantitativa no que diz respeito às questões da divisão temporal e de tipologia das atividades quando a referência é a primei- ra infância e a dedicação de mães e pais na prestação de cuidados.7

Para complementar, foram realizadas entrevistas com dez pais cuidadores-provedores,8 norteadas a partir das representações de di-

7 Parte inicial do projeto de pesquisa, através do piloto realizado com comunidade vulnerável de integrantes do Movimento sem Teto da Bahia, publicada como resultados parciais em Cavalcanti, Carvalho e Caldeira (2009).

8 Defendendo aqui o tripé conceitual cuidar (família e outros), prover (família) e proteger (papel do Estado, abrangendo segurança, legislação e efetivação). Abordagem teórica desen- volvida em Cavalcanti (2003). Além disso, deve-se acrescentar as contribuições trazidas pela pesquisa de campo que revelam, por exemplo, que “59,3% das respostas das mães sugerem que os pais seriam cuidadores complementares, distribuída tal indicação de maneira equili- brada entre os grupos geracionais, sem grandes diferenciações entre os estratos sociais. Já para 40,7% das informações coletadas junto às mães, indicariam que os pais estariam na condição de cuidadores esporádicos. Novamente, não há indícios de diferenças quando de mulheres de diferentes estratos etários e socioeducacionais. Observando as respostas dos pais, tem-se que eles se enquadrariam como cuidadores complementares (70%), sem que diferenciações segundo grupos geracionais ou estratos socioeducacionais sejam notadas.” (CASTRO; SOUZA, 2012, p. 294-295) no capítulo 8 O Imaginário sobre mudanças na divisão sexual do trabalho doméstico de pais e mães de distintas inscrições socioeducacionais e gerações. Quando o tema é proteção integral da infância, vale conferir Araújo (2008) e Cavalcanti, Silva e Araújo (2010).

visão do trabalho entre adultos cuidadores – sejam pais, mães, avôs, avós, babás, tias etc. –, sobre o trabalho remunerado (prestadores de serviços com vínculos empregatícios) e trabalho doméstico (podendo, inclusive, ser realizado por pessoas que tenham vínculos de paren- tesco, conforme poderemos constatar na apresentação da pesquisa realizada) e a prestação de cuidados quando da primeira infância de filhas/os – sempre a cargo de adultos, sejam do sexo feminino ou masculino. (ÁVILA, 2007)

Nas representações apresentadas através da pesquisa de cam- po – e levando-se em consideração os papéis e as funções assinaladas pelas(os) entrevistadas(os) –, há que se referenciar e destacar o fato de que, dentre as atividades de cuidado listadas (cuidado/bem estar físico; atividades externas; educação/disciplina/valores e lazer/convi- vência), já se observa a frequência da realização por parte de ambos os progenitores, “independente dos estratos socioeducacional e dos grupos etários, segundo informações deles e delas”.

Neste sentido, uma das hipóteses encerradas no relatório fi- nal coaduna-se com a premissa de um universo híbrido e multirrefe- renciado, envolvendo aspectos da vida privada e doméstica, mas sem deixar escapar os embates da teoria e da prática cotidiana do viver em famílias e das relações de gênero.

Nota-se quanto a cuidados e tipo de provedor que não haveria uma correspondência entre represen- tações e parâmetros ‘objetivos’. As representações dos entrevistados, independentemente do gênero, tendem a favorecer a ideia de compartilhamento, declarando que ambos cuidam das crianças pe- quenas, independentemente do tipo de atividade focalizada, e a contabilidade feita pela pesquisa, mais pautada por horas (caso de cuidados) e nível de renda (caso de tipo de provedor). Os entrevista- dos negariam a ideia de divisões sexuais quanto a cuidado e lugar no sustento da criança, e ambos, homens e mulheres, participam desse imaginário de equidade, quando de fato o que se evidencia é a reprodução da mulher cuidadora e do pai pro-

vedor. Consciência não acompanharia ou seria equivalente à “realidade”, ou melhor, as represen- tações de mães e pais seriam diferentes das repre- sentações dos pesquisadores, nossos argumentos de que o tempo gasto em cuidados e os diferen- ciais de rendimentos por sexo/gênero contribuem para perfilhar divisões sexuais. (CASTRO; SOU- ZA, 2012, p. 297)

Para além da conjugalidade, o viver no privado e no público muitas vezes esbarra nos conflitos ligados à parentalidade e ao re- corte geracional, levando o passado e o tempo presente a dialogarem com os estereótipos e representações entre a modernidade e o con- temporâneo:

As novas famílias produzem sintomas, sim, po- rém, relacionados à dívida enorme que possuem em relação a um modelo de família supostamente ideal e perfeito: a família da modernidade perdida (na realidade nunca encontrada, pois nunca exis- tiu). E a sobrecarga dessa dívida impede que os adultos atuais, homens e mulheres, pais e mães, se autorizem e se encarreguem de acolher, criar e educar as crianças que lhes cabem, que são de sua responsabilidade, seja qual for a maneira pela qual elas foram atribuídas a eles, seja qual for a sua origem. A cultura atual nos obriga a uma du- pla injunção impossível: proíbe-nos de ser e agir ‘como nossos pais’ e nos diz, contraditoriamente, que o ideal era sê-lo. (AMAZONAS; BRAGA, 2006, p. 189)

O exercício da parentalidade, alocado nas relações conjugais, extrapola o cuidar limitado às figuras paternas e maternas, a exem- plo do aumento da participação das avós cuidadoras que não deixam de apresentar sentimentos ambivalentes em relação à ética do cui- dar: por um lado, sentem-se sobrecarregadas ao se encontrarem na obrigação que a organização social da família de pós-patriarcado lhes impõe; do outro, o cuidar revigora e lhes concede uma nova força e

perspectiva para cotidiano, como apontam pesquisas. (DIAS; COSTA; RANGEL, 2005)

A cultura e a divisão do cuidar: paradoxos e tradições