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A Psicologia Sócio-histórica de Vygotsky

3 AS CATEGOTIAS CONCEITUAIS DE REFERÊNCIA PARA

3.2 Conceito de metacognição

3.2.4 A Psicologia Sócio-histórica de Vygotsky

Muito embora não tenha desenvolvido estudos sobre a metacognição e não tenha mesmo conhecido autores que os fizeram, Vygotsky (1991), maior representante da Psicologia Soviética, estudou o processo de internalização e o papel da linguagem interior como reguladores do comportamento. Por essa razão vamos considerar aqui suas relevantes contribuições para explicar o processo de internalização e o papel da linguagem no controle e planejamento da atividade cognitiva.

O conceito de internalização de Vygotsky (1991) é um dos elementos-chave na compreensão da gênese das funções psicológicas superiores (consciência, vontade, pensamento, linguagem etc.). A internalização é entendida por ele como a constituição interna de uma operação externa, ou seja, todo processo de desenvolvimento do ser humano, inserido em um determinado grupo social, se dá “de fora para dentro”.

As funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes, primeiro no nível social e depois no individual, primeiro entre as pessoas (interpsicológicas) e depois no interior da criança (intrapsicológica). Primeiramente, a pessoa realiza ações externas, que serão interpretadas pelos que estão ao seu redor, de acordo com o significado culturalmente estabelecido. Com tal interpretação a pessoa vai atribuir significados às suas ações. O processo pelo qual o ser internaliza não é, entretanto, um processo de absorção passiva, ele pressupõe uma atividade do sujeito, que ressignifica suas ações.

“As funções psicológicas internalizadas vão se desenvolvendo e consolidando através

de sistemas semióticos de representação, principalmente a linguagem egocêntrica e interna.

(MARTÍN; MARCHESI, 1995, p. 29). A linguagem egocêntrica da criança é, segundo Vygotsky (1993), uma etapa de transição entre a linguagem social e a linguagem interna. Esta última surge dos primeiros intercâmbios comunicativos da criança com adultos e vai se constituindo como um elemento básico do desenvolvimento cognitivo, já que permite a criança perceber a realidade por meios das categorias linguísticas e planejar e regular sua atividade, tornando possível, assim, a realização de atividades metacognitivas.

Ele compreende a fala egocêntrica como um fenômeno de transição das funções interpsíquicas, ou seja, da atividade social da criança, para as funções intrapsíquicas, da atividade mais individualizada. Para estudar a fala egocêntrica, Vygotsky organizou atividades para as crianças de modo semelhante a Piaget, acrescentando uma série de dificuldades e frustrações. Ele observou que elas, ao enfrentarem problemas, tentam

solucioná-los falando consigo mesmas, elevando a frequência da fala egocêntrica. As interrupções no fluxo regular da atividade se tornam importantes para a fala egocêntrica, concluindo que ela não apenas acompanha a atividade da criança, mas torna-se instrumento do pensamento, ajudando-a no planejamento da solução do problema e, consequentemente, na consciência dessa atividade.

Essa capacidade de controle executor foi explorada por outros estudiosos e hoje se fala na metacognição como um suporte importantíssimo na melhora e recuperação do desempenho escolar de alunos. Dessa forma, para Vergnaud (2004), Vygotsky estava adiante de seu tempo, no que diz respeito às atividades metacognitivas e à complexa interação dos processos cognitivos e metacognitivos.

Ainda sobre a fala egocêntrica, Vygotsky (1993) ensina que ela não declina, ao contrário, evolui para posteriormente transformar-se em fala interior. Melhor explicando, o desenvolvimento da linguagem, assim como toda função psicológica superior, se dá, como vimos, por um processo de internalização: a fala, que a princípio é exterior, torna-se egocêntrica antes de se tornar interior. Esta se assemelha à fala egocêntrica, pois está ligada à organização do comportamento da criança, parcialmente incompreensiva para os outros, mas clara e explícita para si mesma. A fala interioriza-se porque sua função muda e torna-se estrutura de seu pensamento. “Com a fala interior, inverte-se o processo: a fala interioriza-se em pensamento. Consequentemente, suas estruturas têm que divergir”. (VYGOTSKY, 1993, p.113). Na fala interior, a sintaxe e a fonética são reduzidas ao mínimo, passando-se a operar com a semântica. Há um predomínio do sentido sobre o significado.

Ao trabalhar o desenvolvimento dos conceitos espontâneos e científicos na obra

Pensamento e Linguagem, Vygotsky aborda, portanto, a temática da metacognição, sem fazer uso desse termo, é claro, e da complexa interação dos processos cognitivos e metacognitivos. Ele diz que a criança adquire consciência de seus conceitos espontâneos relativamente tarde e que a capacidade de defini-los por meio de palavras aparece bem depois de havê-los adquirido. “Ela possui o conceito (isto é, conhece o objeto ao qual o conceito se refere), mas não está consciente de seu próprio ato de pensamento”. (VYGOTSKY, 1993, p. 93). Quando ela começa a definir verbalmente esse conceito e a operar com ele de forma não espontânea, tem início o desenvolvimento de um conceito científico, que, por sua vez, influencia o desenvolvimento mental da criança.

Para melhor explicar, os conceitos espontâneos ou cotidianos são aqueles desenvolvidos no decorrer da atividade concreta da criança a partir de suas experiências e interações sociais. O conceito de irmão é, por exemplo, impregnado de experiência, sendo

difícil para a criança resolver um problema abstrato sobre o irmão de um irmão. Já os conceitos científicos “são aqueles adquiridos por meio do ensino, como parte de um sistema organizado de conhecimentos, particularmente relevantes nas sociedades letradas [...]”. (OLIVEIRA, 1992, p. 31).

Os conceitos espontâneos não possuem um sistema organizado, uma vez que não se distanciam da experiência imediata. Por exemplo, a criança, ao explicar um fenômeno, utiliza- se de afirmações contraditórias, sem se perceber, com base em fatos empíricos: um objeto se dissolve porque é grande e outro porque é pequeno. Isso não ocorre com os conceitos científicos, os quais contêm relações de generalidade, ou seja, de um sistema. O estudo, pela criança, dos conceitos científicos, após a intervenção pedagógica, transforma a estrutura dos seus conceitos espontâneos e ajuda a organizá-los num sistema de inter-relações dos conceitos, promovendo a ascensão da criança para níveis mais elevados de desenvolvimento.

Embora Vygotsky acentue que esses dois tipos de conceitos se desenvolvem em direções opostas – os conceitos espontâneos se desenvolvem de forma ascendente e os científicos de forma descendente – ele defende o argumento de que esses dois processos estão intimamente relacionados. Os conceitos históricos, por exemplo, só podem ser compreendidos quando a criança souber diferenciar o conceito cotidiano do passado. Ao mesmo tempo, os conceitos científicos adquiridos “fornecem estruturas para o desenvolvimento ascendente dos conceitos espontâneos da criança em relação à consciência e ao uso deliberado”. (VYGOTSKY, 1993, p. 94).

Podemos assinalar, com efeito, que os conceitos científicos, por estarem organizados em sistemas e por envolverem a mediação desde o início de sua elaboração, implicam uma atitude metacognitiva, ou seja, de consciência e controle do seu conteúdo e da relação com outros conceitos. A criança, ao deparar um conceito científico, revê seus conceitos espontâneos, ampliando-os e reformulando-os. Essa ação fornece elementos para que ela não apenas adquira o conceito de forma generalizada e sistemática, mas também a capacite para defini-los por meio de palavras, tornando-a consciente de seu pensamento.

Isso quer dizer que a mediação se faz imprescindível para a formação de conceitos e para o desenvolvimento de habilidades metacognitivas. A intervenção pedagógica provoca avanços, os quais não ocorreriam sem a ajuda do outro. A instituição escolar, nesse sentido, adquire importância inestimável nas sociedades letradas. O ensino que nela ocorre é fundamental para a constituição dos processos psicológicos.

A importância atribuída à intervenção de uma pessoa sobre a outra e à instituição escolar advém de um postulado básico da teoria de Vygotsky, o de que a aprendizagem é fundamental para o desenvolvimento do sujeito:

O processo de ensino aprendizagem que ocorre na escola propicia o acesso dos membros imaturos da cultura letrada ao conhecimento construído e acumulado pela ciência e a procedimentos metacognitivos, centrais ao próprio modo de articulação dos conceitos científicos. (OLIVEIRA, 1992, p. 33).

Os processos metacognitivos, que envolvem consciência e controle por parte da pessoa, de suas atividades cognitivas, são essenciais à formulação e articulação dos conceitos científicos. Assim, esses processos servem tanto à aprendizagem quanto ao desenvolvimento do sujeito, uma vez que a capacidade de articulação entre conceitos implica o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, tornando o pensamento e a linguagem cada vez mais elaborados.

Vale ressaltar que, para Vygotsky (1993), a linguagem dirige a formação de conceitos, pois o desenvolvimento deste está determinado pelo significado que a palavra adquire em um contexto sócio histórico. A palavra, que tem o papel de meio na formação de um conceito, torna-se, posteriormente, seu símbolo. A palavra assume também, na teoria de Vygotsky, papel preponderante nos processos metacognitivos, pois a criança só terá um conceito científico quando ela passar a defini-lo verbalmente, desde a linguagem.

Quando as pessoas amadurecem, vão internalizando a função de autorregulação, tornando-se capazes de interrogar a si mesmos e avaliar os próprios processos cognitivos e os resultados obtidos. Nesse amadurecimento, a comunicação e a linguagem são imprescindíveis. As dificuldades na comunicação inicial nas primeiras interações sociais atrasam os processos de internalização das funções psicológicas superiores, inclusive a linguagem, e, consequentemente, a capacidade de planejamento e regulação da atividade cognitiva. Nesses casos, o papel do professor é estabelecer situações em que se fomentem os processos de internalização no aluno (MARTÍN; MARCHESI, 1995).

Compreendemos, com arrimo nas considerações feitas há pouco, o papel imprescindível da mediação na elaboração dos conhecimentos do sujeito. Esse aspecto foi amplamente discutido por Vygotsky e objeto de muitas pesquisas que vieram confirmar sua relevância na aprendizagem. Por essa razão, nos deteremos um pouco mais na discussão desse conceito.