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3 AS CATEGOTIAS CONCEITUAIS DE REFERÊNCIA PARA

3.3 Mediação

A mediação constitui conceito central para a compreensão das funções psicológicas superiores na teoria vygotskyana. A mediação é um processo de intervenção de um elemento intermediário numa relação, que deixa de ser direta e passa a ser mediada por esse elemento. Esse elo intermediário é, segundo Vygotsky (1991), um estímulo de segunda ordem (signo) que cria outra relação entre S (estímulo) e R (resposta). Nesse caso, o processo simples estímulo-resposta é substituído por um ato complexo, mediado, representado pela forma:

S - - - R

X

Quando uma pessoa retira a mão de uma chama por sentir dor, está estabelecida uma relação direta entre calor da chama (S) e retirada da mão (R); entretanto, quando ela retira a mão ao se lembrar da dor sentida, a relação chama e retirada da mão estará mediada pela lembrança da experiência anterior. E se esta retirar a mão quando alguém disser que poderá se queimar, a relação estará mediada pela intervenção dessa pessoa. A lembrança da dor e o aviso da outra pessoa são elementos mediadores (X) entre o estímulo e a resposta, tornando a relação mais complexa. Ao longo do desenvolvimento, essas relações mediadas vão predominando sobre as relações diretas.

A relação do homem com o mundo, portanto, é mediada. As funções psicológicas superiores se desenvolvem com base na relação mediada entre homem-mundo. As ferramentas auxiliares da atividade humana ou elementos mediadores podem ser de dois tipos: instrumentos e signos. Instrumento é um elemento posto entre o trabalhador e o objeto de seu trabalho, ampliando as possibilidades de transformação da natureza, como, por exemplo, o machado, o facão.

O signo age de forma análoga ao instrumento, só que no campo psicológico, como meios auxiliares para solucionar problemas de lembrar, comparar coisas. Assim, os instrumentos são externos à pessoa e sua função é provocar mudanças nos objetos, ao passo que os signos são orientados para o próprio sujeito e sua função dirige-se para o controle de suas ações psicológicas ou de outras pessoas. Ao utilizar uma lista de compras como forma de não esquecer todos os itens que devem ser comprados no supermercado, o sujeito está fazendo uso de um signo como meio de auxiliar no desempenho de suas atividades psicológicas, no caso descrito, a memória. Sabemos que a nossa memória tem limites e procuramos meios de

armazenar informações em quantidades superiores ao que podemos guardar por nós mesmos. Dessa forma, a memória mediada por signos é mais poderosa do que a memória não mediada.

Vygotsky (1991) realizou experimentos para estudar o papel dos signos na atividade psicológica e verificou que o uso de mediadores aumentou a capacidade de atenção e de memória e permitiu um controle voluntário do sujeito sobre sua atividade. Em um desses experimentos, ele verificou a relação entre a percepção e a ação motora em crianças de quatro e cinco anos. Na primeira fase, havia um conjunto de figuras e cada figura correspondia a uma tecla de um teclado. Ao ser mostrada a figura à criança, ela deveria pressionar a tecla correspondente. As crianças registraram dificuldades de decidir rapidamente a tecla a ser pressionada. Na segunda fase, foram introduzidas marcas nas teclas que faziam lembrar as figuras, o que modificou radicalmente o desempenho da tarefa, fazendo-as centrar a atenção nas marcas e selecionar a tecla apropriada.

Esse processo de mediação por meio de signos é, portanto, fundamental para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores e é objeto de transformações ao longo do desenvolvimento dos seres humanos. A utilização de marcas externas que fornecem suporte concreto para a ação do homem vai se transformando em processos internos de mediação ao longo do desenvolvimento. Com o tempo, ele vai prescindindo das marcas externas e passa a utilizar signos internos, que são representações mentais substitutas das marcas, ou seja, basta pensar na marca para lembrar.

Como vimos, esse processo de internalização é essencial para o desenvolvimento dos processos mentais superiores e evidenciam a importância das relações sociais na feitura desses processos, uma vez que os signos passam a ser compartilhados pelo grupo social, permitindo a comunicação entre as pessoas e o aprimoramento das interações sociais. Quando alguém aprende o significado de “cachorro”, ele internaliza esse conceito, que é compartilhado pelo seu grupo social, e passa a ter uma representação mental que serve como signo mediador da sua compreensão do mundo.

O significado que atribuímos às coisas está impregnado de significações e influências do mundo social. É a interação social que fornece a matéria-prima para o desenvolvimento psicológico:

A interação face a face entre indivíduos particulares desempenha um papel fundamental na construção do ser humano: é através da relação interpessoal concreta com outros homens que o indivíduo vai chegar a interiorizar as formas culturalmente estabelecidas de funcionamento psicológico. (OLIVEIRA, 1997, p. 38).

É nesse sentido que Vygotsky (1991) atribui à intervenção pedagógica um papel essencial na elaboração dos processos psicológicos superiores. O desempenho desse papel só será adequado quando o mediador, conhecendo o nível de desenvolvimento dos alunos, dirigir o ensino não para etapas intelectuais já alcançadas, mas para aquelas que ainda estão em desenvolvimento, funcionando como um motor de novas conquistas psicológicas. Processos já consolidados não necessitam de intervenção. Para uma criança que já sabe amarrar sapatos, o ensino dessa habilidade é sem efeito, assim como é também para um bebê, pois está muito distante de suas funções psicológicas. Para se beneficiar da mediação, é necessário que a criança ainda não tenha aprendido uma habilidade, mas que o desenvolvimento desta já tenha sido desencadeado.

A mediação interfere, então, na zona de desenvolvimento proximal, que é a distância entre o nível de desenvolvimento real, ou seja, o que a criança consegue fazer sozinha, sem a ajuda do outro, e o nível de desenvolvimento potencial, o que ela consegue fazer com ajuda de adultos ou de companheiros mais capazes.

Vygotsky considera aquilo que a criança consegue fazer com a ajuda do outro mais indicativo de desenvolvimento mental do que o que ela consegue fazer sozinha. O aprendizado desperta vários processos internos de desenvolvimento, que operam somente quando a criança interage com pessoas e quando em cooperação com seus companheiros. Uma vez internalizados, esses processos tonam-se parte das aquisições do desenvolvimento.

O ensino-aprendizagem na escola deve ser elaborado, segundo Oliveira (1997), partindo-se do desenvolvimento real da criança e tendo como ponto de chegada os objetivos estabelecidos pela escola, respeitando-se a faixa etária e os níveis de desenvolvimento de conhecimento e habilidade de cada grupo de crianças.

Consoante Reuven Feuerstein (1980), a mediação é responsável pela capacidade de transformação do ser humano, sendo possível, por seu intermédio, transcender os limites biológicos do cérebro humano. O organismo humano é, para ele, um sistema aberto, sendo a inteligência concebida como um processo dinâmico e flexível, suscetível a mudanças em qualquer etapa do desenvolvimento humano, independentemente da idade. Essa ideia embasa o seu conceito de modificabilidade cognitiva estrutural, entendida como a mudança interna, endógena, com base na elaboração de fenômenos mentais, ocorrentes em razão dos processos mediadores vivenciados pelo sujeito, ao longo de sua vida, e não como resultado de sua maturação.

Assim, Beyer (1996, p. 90) assegura que o conceito de aprendizagem autônoma consiste em que:

[...] a autonomia cognitiva correlaciona-se com a aprendizagem mediada, ou seja, quanto mais uma criança usufruir da mediação na aprendizagem, tão mais rico será o desenvolvimento intelectual advindo da interação direta com o meio. A capacidade de aprendizagem resultante de tal processo é chamada de nível de modificabilidade cognitiva estrutural.

Esse conceito da modificabilidade cognitiva estrutural, que implica a capacidade potencial do ser humano de transformar-se, relaciona-se com o conceito de ZDP descrito por Vygotsky (1991), pois correlaciona positivamente o desenvolvimento cognitivo do ser humano com o nível de interação sociocultural. Esses parâmetros conceituais surgem como desencadeadores de uma nova prática educacional capaz de suplantar as insatisfações e carências que ameaçam os alunos com dificuldades de aprendizagem.

De acordo com Feuerstein (1980) as dificuldades de aprendizagem podem ser compreendidas como decorrentes da carência de experiência de aprendizagem mediada e do uso ineficaz das funções cognitivas, prerrequisitos para o bom funcionamento cognitivo. A modificabilidade cognitiva do sujeito deriva, portanto, da Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM). Ele desenvolveu esse conceito de EAM para enfatizar o papel da mediação na elaboração dos processos mentais.

A mediação constitui aquilo que o adulto situa entre a criança e o mundo para torná-lo inteligível. O conceito de EAM envolve uma interação qualitativa entre o organismo e seu ambiente, e implica, necessariamente, a interposição de um ser humano. Ao contrário do esquema behaviorista, na qual o organismo emite uma resposta com base em um estímulo (S→O→R), para Feuerstein (1980), entre o estímulo e o organismo há uma interposição de outro organismo (homem) que medeia essa relação com o meio:

S = H = O = H = R

Legenda: S=estímulo; H=mediador, O=organismo; R= reações do organismo

Não é toda interação humana, entretanto, que possibilita mudanças na estrutura cognitiva da pessoa. Para que ela seja considerada Experiência de Aprendizagem Mediada, são necessários alguns critérios que representam a qualidade da interação: intencionalidade e reciprocidade, transcendência dos atos para outras situações e mediação do significado.

A intencionalidade significa o propósito de intermediar e a disponibilidade da criança de aceitar o ato da mediação. “Há um trabalho conjunto entre a criança e o mediador, onde ambos interagem ativamente, embora a iniciativa na situação de aprendizagem provenha sempre do mediador”. (BEYER, 1996, p. 96). O mediador, como ressaltam Souza, Depresbiteris e Machado (2004), interage com o mediado, selecionando e interpretando

estímulos específicos, meios e situações, para facilitar a transmissão cultural, adequando-a às necessidades intrínsecas de cada mediado.

Os aspectos mediadores de uma situação de aprendizagem têm significado que transcende os conteúdos e objetivos imediatos. A interação mediada também se propõe produzir no sujeito mudanças estruturais que o ajudem a responder a novas experiências. O objetivo da transcendência, para Souza, Depresbiteris e Machado (2004), é promover a aquisição de princípios, conceitos e estratégias que possam ser generalizados para outras situações, o que exige um pensamento reflexivo sobre o que está subjacente à situação, de modo a estendê-la a outros contextos. Essa característica transcendente da mediação possibilita a flexibilidade do pensamento da criança e apoia o desenvolvimento de suas operações superiores, pois propicia uma ampla compreensão do mundo, de como as coisas estão interligadas.

A mediação de significados passa à criança os valores morais culturalmente determinados e desperta o desejo pelo objeto do conhecimento. Ela envolve, portanto, aspectos sociais e afetivos e por meio dela é transmitida à criança a cultura de seu grupo social sendo, muitas vezes, a necessidade de transmissão desses valores o que constitui a motivação dos pais para mediar. Na intervenção mediadora do professor, o objeto de conhecimento apresentado não é neutro, mas envolve aspectos afetivos e valorativos estabelecidos culturalmente. O que o sujeito aprende da exposição a objetos e acontecimentos está, para Souza, Depresbiteris e Machado (2004), determinado pela noção prévia sobre esses elementos e pela capacidade de relacioná-los com nossas aprendizagens anteriores.

A Experiência de Aprendizagem Mediada, estabelecida com apoio nesses três critérios, afeta a estrutura interna do sujeito, possibilitando uma autonomia (aprender a aprender) para selecionar e organizar os estímulos. Podemos dizer, então, que a Experiência de Aprendizagem Mediada possibilita à pessoa desenvolver competências metacognitivas, tornando o aprendiz independente e autônomo.

Com base nesse conceito de EAM de Feuerstein, inferimos que, para o mediador intervir ativamente na aprendizagem do sujeito, ele precisa, além de entender como as informações são captadas, elaboradas e operacionalizadas na mente da criança:

1 criar situações e fazer uso de estratégias para ativar e aperfeiçoar os conhecimentos espontâneos dos alunos, utilizando-se de diversas modalidades: verbal, escrita, pictórica, simbólica, esquemática, gráfica, etc;

2 adotar estilo questionador; e

Esse tipo de intervenção exige do professor, além de saberes ─ como mediar a aprendizagem ativa do aluno ─ conhecer as estratégias de ensinar a pensar, auxiliar os alunos a buscarem uma perspectiva crítica ante os conteúdos, uma constante reflexão sobre sua prática. Se há a pretensão de que o professor trabalhe numa perspectiva metacognitiva, que planeje e promova na sala de aula situações em que os alunos estruturem suas ideias, expressem e analisem os próprios processos de pensamentos (acertos e erros), resolvam conflitos cognitivos, é necessária a reflexão cotidiana de sua prática pedagógica. Como bem afirma Portilho (2009, p. 154),

[...] para que os alunos desenvolvam competência metacognitiva, é necessário que os professores sejam, além de ensinantes, também aprendentes e, consequentemente, transformem o ensino a partir de exigências diferentes com relação à aprendizagem a que tivemos acostumado por muito tempo.

Considerando que o desenvolvimento de competências metacognitivas deve ser um dos objetivos da educação, e que professores precisam buscar essas competências, antes mesmo de trabalhá-las nos alunos, torna-se relevante abordar dois conceitos: o de prática educativa e o de professor reflexivo.