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2. HISTÓRIA ABERTA DESDE AS POSSIBILIDADES DE RECONSTRUÇÃO

2.2. HISTÓRIA ABERTA DESDE OS ACONTECIMENTOS E DOS RASTROS DA

2.2.2. Por uma História à contrapelo

2.2.2.4. A quebra do tempo cronológico: o salto e a composição narrativa

O conceito de salto (ou de origem) em Benjamin representa uma importante ferramenta para que o autor, de acordo com a compreensão de Gagnebin (2013), pleiteie a possibilidade de compreender o curso da história a partir de saltos em sua cronologia linear, advindos de possibilidades rememoradas. A quem narra e a quem historiciza, esta forma de pensar a história permitiria uma apreensão alternativa do tempo, fundamentando em intensidades e não em um encadeamento de acontecimentos.

A origem, o salto para fora do continuum da história representa, para Benjamin, uma espécie de reação aos imperativos do cronos nivelador. Essa perspectiva distancia-se, portanto, de explicações causais da história, daquelas que, mesmo talvez sem intenção,

tenhamos nos tornado seguidores, seja por falta de consciência histórica, ou porque esta apresentava-se como um simples corolário. “A origem, quebra a linha do tempo, opera cortes no discurso ronronante e nivelador da historiografia tradicional” (GAGBEBIN, 2013, p. 10).

Esse ursprung (no original alemão), no entanto, não significa uma espécie de retorno a uma origem fundadora, cercada de nostalgia. Trata-se de um pulo dialético de intenção revolucionária, um salto potencialmente a provocar inovações, contrapondo a historiografia com o que a ela é análogo, com vistas a interromper o tempo e, desde aí, projetar formas como este pode reemergir, se resignificar e se atualizar. Esse processo de ursprung é exercitado, na construção da história do não, basicamente quando faço a categorização dos capítulos desta (em óperas), priorizando uma montagem histórica que primasse pela intensidade e não pela cronologia. Os títulos ali destacados, bem como a descrição de cada um destes capítulos está orientada por esse pulo dialético, redigido e permeado, diga-se, pela intensão de fazer política e adensar o real, recorrendo para tal a uma escrita de viés literário.

A presença do passado, no interior do presente, segundo Gagnebin (2009), é o que pode, segundo a autora, inspirada no pensamento de Benjamin, elaborar irrupções na cronologia da história. É preciso dentro deste esforço de rememoração, evitar, assim, simplesmente replicar o que já se sabe. É preciso “abrir buracos”, espaços em branco, esquecidos, onde se possa enfim dizer e interpretar aquilo que não teve outrora direito às palavras. É preciso, segundo Gagnebin (2013) valorizar esta tipologia de reminiscências para encontrar uma possibilidade de salto. O resultado da rememoração é a inventariação de constelações de acontecimentos passados, capazes de religar as demandas do presente às intercorrências recuperadas. Os pontos desta constelação, no pensamento do autor, serviriam como mônadas (BENJAMIN, 2013), que concentrariam potencialmente a totalidade histórica, desraigada do curso homogêneo.

Trata-se assim, segundo o autor, de descobrir uma espécie de constelação crítica (as vezes termos como salvadora ou redentora também são empregados pelo autor), que estabeleceria relações dialéticas entre passado-presente, história-política e rememoração- redenção. A história em formato de constelação, segundo Gagnebin (2013), desprivilegia a pensada como se as suas ocorrências representassem contas de um rosário, em uma sequência puramente causal. A história, nestes termos, viveria em uma atualidade permanentemente revigorada, em uma configuração sempre singular. Abordar a história desde essa ideia de tempo descontínuo representa, segundo Farge (2015), apostar em uma abordagem que não se conecta automaticamente em um sistema liso de causalidades, orientado por continuidades, o

que permitiria, em relação a um acontecimento, “[...] devolvê-lo a sua história, pura, áspera e imprevisível”. Privilegiar-se-ia, assim, o fugidio, o que não sintetiza, apreendido em uma incerteza necessária, em sua irredutibilidade aos grandes acontecimentos.

A história é objeto de uma construção, cujo lugar não é formado pelo tempo homogêneo e vazio, mas por aquele saturado pelo tempo de agora. Assim, a antiga Roma era para Robespiere um passado carregado de tempo de agora, passado que ele fazia explodir do contínuo da história. A Revolução Francesa era compreendida como uma Roma retomada [...] é o salto do tigre em direção ao passado. Só que ele ocorre numa arena em que a classe dominante comanda. O mesmo salto sob o céu livre da história é o salto dialético, que Marx compreendeu como sendo a revolução (BENJAMIN, 2013, p. 18).

Essa concepção de tempo em Benjamin provém da tradição judaica: o tempo não é uma categoria vazia, abstrata e linear, inescapável do seu conteúdo.

É preciso formar uma constelação com as experiências do passado, mas para que ela se forme, é preciso que o presente fique imóvel por um momento: é o equivalente, no nível da historiografia, à interrupção revolucionária da continuidade histórica (LOWY, 2005). Essas enunciações precisam ser estudadas na sua irrupção e não simplesmente rearticuladas, inseridas em um encadeamento causal às nuances da historiografia estruturante (FARGE, 2015). A história não é uma sequência contínua de acontecimentos conectados entre si. Os acontecimentos só podem ser narrados em sucessão, mas eles ocorrem simultaneamente – o que acontece na história não ocorre em série, mas em grupo – o que nos permite pensar que enquanto o relato é em linha, a vida é em cubo (LORIGA, 2011).

Uma narração que ao mesmo tempo desencadeie e viabilize um enredo mais favorável aos desmerecidos pelo cronos, precisa reconhecer as fraturas que escandem a narração não como simples marcas da desorientação moderna, mas como possibilidades para fazer emergir uma outra história. A tarefa do historiador materialista, assim, comprometido com a teoria benjaminiana, está em produzir rupturas eficientes. É preciso construir uma contra-história e, ao mesmo tempo, produzir abalos na história vigorante. O historiador deve irromper o encadeamento causal da história para inscrever, nessa narrativa, fraturas eficazes.

O enredamento que dá corpo à narrativa, segundo Ricoeur (2010a), é o que garante a síntese, nunca acabada e sempre imperfeita de um acontecimento ou da própria história, haja vista a inerente heterogeneidade presente nestas. A intriga, neste sentido, acaba por ser a responsável por garantir a inserção do cronológico no não-cronológico e vice-versa. O historiador opta para a elaboração da narrativa, pelos discursos e evidências possíveis e

disponíveis. É seu papel reconstituir a vida do acontecimento frente as armas que dispõe, que são, substancialmente, a cooptação das fontes e o conteúdo da própria narrativa.

O próprio lugar da enunciação sinaliza também eventuais rupturas, indicando onde a história se desfalece de suas certezas, tornando-se contestável. Esses outros lugares, segundo Farge (2015), ainda que pouco discerníveis, sempre tem muito o que dizer. Em meu caso, quero efetivamente olhar outros lugares para compreender a história, privilegiando e ouvindo outras vozes, estando em lugares e ao lado de vozes que não ressoavam, que estiveram distantes, lugares permeados de singulares, onde os formuladores de políticas pouco estiveram, via de regra, para produzir seus endereçamentos, sobretudo aqueles dirigidos aos docentes. Quero procurar por lugares que resistem às investigações históricas tradicionais, cujas estratégias de luta e de pertencimentos coletivos e individuais fazem cotidianamente emergir as histórias que estou procurando contar.

2.3. COMPREENDER, CONSTRUIR OU PROFANAR A HISTÓRIA? DAS