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5. METODOLOGIA

5.1. DA PROVOCAÇÃO DE BALL, À DESCOBERTA DE RORTY: INVESTIGAR

Neste trabalho procurei me aproximar de perspectivas teóricas e métodos que viessem a me auxiliar na compreensão dos fluxos de subjetividades presentes no processo de

constituição da docência em Educação Física no contexto da 2ª CRE do Rio Grande do Sul nos últimos 22 anos. Essas intenções foram contempladas pela abordagem do Ciclo de Políticas (BALL, 1994; MAINARDES, 2006). Trata-se de um “guarda-chuva” teórico- metodológico com o qual pude compreender o processo de cooptação de racionalidades e subjetividades que justificaram a construção das políticas tal qual se materializaram, os recortes feitos para produção dos documentos legais, e as traduções produzidas no contexto de prática por aqueles a quem estas políticas se endereçam – especialmente professores e estudantes, nas instituições educativas.

Pensar a política como ciclo já havia sido reanimador sob uma série de aspectos, em especial por garantir aporte teórico justamente ao que vi como pesquisador e vivi como professor. Uma abordagem que também dá conta de relevar políticas de contrafluxo, marginais, produzidas no submundo da escola, desde sentidos heterogêneos e conflitantes aos que se materializaram enquanto subjetividade.

Segundo Ball (2011), as políticas públicas, em especial as educativas, são permeadas por fluxos. Elas existem para se tornarem necessariamente outra coisa, para continuarem sendo transformadas, seja por reforços de sentido macro, seja por novas resistências e ressignificações vindas de sentidos micro, disputa permanente que envolve demandas e expectativas de lado a lado. Aprendi com Ball (2011), que basicamente as políticas e os sentidos não são universais e não podem simplesmente serem espelhadas pela teoria que tenta representá-la.

Segundo o autor, o processo de construção, implementação e execução das políticas públicas é produzido a partir de discursividades interdependentes, não-lineares e não- hierárquicas, que se plasmam e se orientam no espectro de três contextos distintos:

a) Contexto de influência: espaço onde as políticas públicas são iniciadas e discursos políticos são construídos. Grupo se articulam para influenciar a definição da linha que pautará os debates e o caminho social a ser percorrido;

b) Contexto da produção do texto: é o texto da política. Resultante de disputas e acordos; grupos atuam para legislar sobre os textos e, com isso, controlar as representações da política;

c) Contexto de Prática: é onde a política está sujeita à interpretação e recriação e onde ela acaba por produzir maiores efeitos e consequências. Pode representar mudanças e transformações significativas na política original. O que os agentes da prática pensam e

acreditam têm implicações diretas no processo de implementação das políticas, criando traduções originais e particulares.

Ball (2011) é bastante crítico às ferramentas e pressupostos teórico-metodológicos adotados por muitos pesquisadores do campo da Sociologia da Educação atualmente. O entendimento do autor é de que muitos “estudos educacionais estão em estado desolador” (BALL, 2011, p. 79). A maioria dos modelos compreensivos partem de “gramáticas fracas”, possuem sintaxes conceituais incapazes de reconhecer as ambiguidades dos diferentes contextos e partem de descrições empíricas insuficientes para representação da realidade. São comuns, segundo ou autor, o uso de análises sintomáticas e descritivas amparadas em pressupostos e premissas de viéses confirmatórios ou, ainda, reafirmações mântricas de crenças pré-estabelecidas. Esses limites acabam por impedir que esses estudos sejam assumidos como ferramentas operativas a pesquisadores e outros interessados em investigar políticas no âmago dos próprios sistemas educativos. De acordo com o autor, é preciso desenvolver outras ferramentas, outras teorias, outras formas de pensar as reais demandas da vida da escola.

As teorias precisam, no ponto de vista do autor, ter o poder de serem disruptivas e violentas. Oferecerem novas linguagens e permitirem aos interessados em aprender com a própria política possibilidades de desidentificação da sujeição ideológica. Para isso, o autor defende que elas sejam cada vez mais imaginativas, que se pautem na criação. Que se apaixonem pelas hipóteses e não pelos dados. Que se façam em linguagem incendiária e não amena, rígida, como fazem alguns cientistas políticos. A autoridade intelectual científica e tecnológica necessita ser revista, flexibilizada, de modo a permitir aproximação com os fluxos das mudanças e a vida dos impactados por elas.

O modelo de compreensão político precisaria, para Ball (2011), ser equivalente ao realizado por estudos culturais, onde não se tem a pretensão de revelar novas verdades, mas sim perspectivas. Ball defende a necessidade de invenções de políticas, no sentido da disputa por poder e legitimidade, específica e situada. Políticas que reconheçam o imediato, o dia a dia, o nível pessoal e biográfico. Aconselha que façamos política perigosamente. Para o autor (idem, p. 97) “há um tipo de teorização que repousa sobre a complexidade, a incerteza, e a dúvida, além de basear-se na reflexividade sobre a própria produção e sobre as suas pretensões de conhecimento do social”. É necessário, apoiado nas palavras de Laurentis (1990), nos apartarmos de terrenos firmes e seguranças prévias, de casas linguísticas e epistemológicas. Sugere que escolhamos transitar por novas vias, por conhecimentos outros.

Que estes se mostrem furtivos, experimentais, ainda porvir. Lugares em que falar ou pensar precisa ser incerto ou incapaz de garantias.

A virulência do autor é provocada não por empirismo vulgar, mas pela vinculação que faz a teorias de outra ordem, distanciadas da “sua casa”, a Sociologia da Educação. Uma teoria aberta a essa inventividade, a essa contestação permanente, que coloca no lugar de normas e discursos pregressos ideias em que explorem ironias radicais. O autor acomoda-se (possivelmente temporariamente) no terreno do pensamento do filósofo neopragmatista norte- americano Richard Rorty, em especial na sua filosofia fundacionalista e pós-epistemológica. A experiência de Ball com o pensamento do autor lhe permitiu abertamente sugerir que as pretensões científicas devem se dirigir à originalidade e à descoberta. Sugere que na produção de conhecimento, nos pautemos mais na construção de diálogos do que em postulados criadores de verdade. Em outro momento (BALL; MAINARDES, 2011, p. 13), reforça:

Precisamos de uma linguagem não-linear e que não atribua à política mais racionalidade que elas merecem. As políticas envolvem confusão, necessidades, crenças e valores discordantes, incoerentes e contraditórios, relações de poder assimétricas (de vários tipos), sedimentação, lacunas e espaços, dissenso e constrangimentos materiais e contextuais.

As provocações do autor, inicialmente não haviam me tocado. Tinham tudo até para passarem despercebidos por mim. Não me propunha desde logo a seguir manuais ou mapas para o desenvolvimento da tese, seja sob o ponto de vista teórico ou metodológico. Porém, considerava até já estar me arriscando o suficiente. A escolha pelo Ciclo de Políticas como pano de fundo para a estruturação do trabalho de análise, por exemplo, ratificava essa convicção.

O fato é que as provocações do autor e sobretudo as visões que ofereceu ao pensamento de Rorty vieram a justificar alguns dos meus pontos de partida. Era como se Rorty viesse, já no meio do caminho de construção desse trabalho, a me oferecer um ticket de entrada nesse universo. Independente se o tivesse ou não, seguiria viagem, porém, sob o permanente risco de ser convidado a me retirar do vagão tão logo fosse descoberto pelo censor, pelas teorias da reforma amparadas na ode à razão, aos métodos e aos postulados pré- definidos, como já havia me ensinado Stephen Ball.

Seguia viagem aprendendo com ela, algo que procurei fazer ao longo de toda a tese. A provocação de Ball e o convite insidioso - não formalmente feito diga-se - para o interior do

pensamento de Rorty, fez com que eu revisasse muito do texto. Convite que me oportunizou outros modos de compreender como esse trabalho deveria ser montado e organizado, bem como o alcance que poderia atingir. Mais do que compreender a crítica de Ball, por Rorty, decidi me encontrar formalmente com o pensamento de Rorty, em especial a partir da leitura do livro “Filosofia e o espelho da natureza (1994)”.

Neste livro o autor transita por uma modelo compreensivo organizado a partir dos seguintes eixos: a) a mente não é o espelho do mundo, mas uma possível representação do mundo; b) não reconhecimento irrestrito nem do subjetivismo, nem do relativismo; c) tudo é contingente, impermanente e cambiável. A partir desses pressupostos, Rorty organiza o seu pensamento de modo a defender a necessidade de novos ideais para compreensão do mundo e para a produção de conhecimento. O autor sugere que estes estejam vinculados aos ideais que subvertam guisas orientadoras e a presunção da filosofia como tribunal da razão. Para Rorty (1994), as teorias da verdade precisam ser mais modestas, uma vez que, para o autor, o que se postula verdadeiro é não-coincidente como o real. A verdade, a partir dessa abordagem chamada de deflacionista, são sempre limitadas, dependentes de acordos firmados entre dois ou mais sujeitos de fala. Representa, assim, um acordo tácito, e não um fundamento cognitivo essencial. O sentido de verdadeiro, à la Rorty, emula, assim, não mais do que uma escolha

justificada sobre o real.

Para o autor, não há uma representação unívoca capaz de produzir um irrepreensível espelhamento da realidade. O conhecimento em relação a ela será sempre insuficiente e não- essencial. Acredita que essa distinção entre o que é real e o que não é acaba por justificar e redistribuir funções que validam socialmente determinados falantes e suas premissas e a marginalização de outros tantos. Acredita, ainda, que antes de se tornar conhecimento representacional, a verdade já parte de uma teoria prévia, já cercada de dogmas, crenças e desejos incorporados organicamente, a partir do que o autor chama de vocabulários (RORTY, 1994). Em relação a esses, o autor tem convicção de que são opcionais e mutáveis. Não toma o vocabulário tal qual uma estrutura, uma tarefa sisífica, por se carregar e voltar a carregar.

Na medida que não temos condições de acesso direto ao mundo, a linguagem é a nossa grande mediadora. É por ela que fazemos descrições dele e sobre ele. O mundo, portanto, não fala conosco, nós é que falamos sobre o mundo. Conceitos são palavras e como elas só podemos conectar outras tantas.

Quanto a produção de conhecimento, o autor sugere a necessidade de recriação da linguagem como forma de provocar linhas abertas para o (re) conhecer, adensando e

complexificando vocabulários comuns. Um dos conceitos importantes para o autor, assim, é o entendimento do conhecimento como uma prática social conversacional. Isso significa que, para Rorty (1994), criar e experimentar palavras ou produzir metáforas (saramagueio?) representa uma forma de produzir conhecimento. Ao invés de buscar por comprovações teóricas, devemos experimentar o que gostaríamos de dizer e escrever. Essa forma de produzir, faria, segundo o autor, que a filosofia progredisse, não pela sua rigorosidade, mas a medida que ela conseguisse se tornar mais imaginativa (RORTY, 1994).

As metáforas, essa imaginação incontingente, provoca buracos no ver, ouvir e sentir costumeiros. A metáfora já quebra as regras de partida, redefinindo sentidos para poder produzir outros, ainda no prelo. Metaforizar revitaliza padrões criando novas condições para lidar com as contingências da existência, com os nossos limites e com as nossas possibilidades de construir conhecimento. Ela não é racional a priori, o que exige que ela, para produzir efeitos mais sensíveis, seja incorporada a vocabulários subjacentes.

Essa filosofia de caráter edificante, mostrou-se definitivamente promissora, sobretudo pelo meu interesse, - travestido de limitação - já antes antecipado, de que preciso escrever e amalgamar a escrita para poder aprender. Assim, ao reconhecer a produção de conhecimentos como vocabulários e a aprendizagem também possível pela metaforização, me vi bastante envolvido com a filosofia rortyana, tomando sempre o cuidado, porém, de não a assumir como credo (o que, diga-se de passagem, subverteria completamente o sentido do que é defendido pelo autor).

Uma filosofia da conversação foi o que minimamente procurei fazer, quando perfilei seis colaboradores a falarem comigo, como se ao tempo, na verdade, se dirigissem. As vozes, todas as seis, são proferidas desde baixo e, por isso, entendi que precisariam dele emergir sob condições especiais e não a partir de convenções linguísticas. Dizer, mas não da forma como a grande História costuma narrar. A história à contrapelo, entendo, é feita também de metáforas, que emulam palavras vaga-lumes, que, reunidas desde outras formas de vocabulizar, ao meu ver, permitem renovadas condições de experimentação da história e da política nesse tempo.

Encorajado pela virulência de Ball, me propus a pensar alternativas aos postulados de compreensão das políticas educativas de modo a montar a minha própria amálgama, uma versão confessadamente não fiel ao que o próprio Ball sistematiza enquanto ciclo de políticas. Isso porque uso os três contextos de fluxo da política - anteriormente descritas - para produzir narrativas, porém, não voltadas a compreensão de uma política específica, mas para conhecer a espectralidade desse conjunto no âmago do próprio contemporâneo. Formalizo isso,

utilizando os dois primeiros contextos – o contexto de influência e o contexto de produção da política – como backgrounds, cenário e lugar de identificar intenções de ordem macroestruturais ligadas em especial ao mercado e a grupos específicos ligados ao establishment, lugar onde os capitais narrativos dos docentes possuem, via de regra, pouco espaço e frágil poder de aderência. Esses dois contextos reunidos vêm a compor, assim, o que estou chamando de História Sistêmica, onde apresento o curso liso (FARGE, 2015) e cronológico da história das políticas educativas deflagradas no RS nos últimos 22 anos.

A segunda narrativa, intitulada de História do Não, é desenvolvida na sequência da narrativa anterior, e está alinhada ao contexto de prática do Ciclo de Políticas. A História Sistêmica foi utilizada na entrevista com os professores de modo a servir como artefato evocador de memórias. Como resultado, essa História do Não, tenta escancarar os pressupostos até aqui defendidos; é onde me utilizo da não-cronologia, da escrita literária como estratégia de abertura e repartilha do sensível, das possibilidades de alargamento do real e o exercício de metaforização como estratégias de dizer não, simbólica e narrativamente. Nessa história, o destaque é a presença da experiência vagalúmica das Raimundas e Raimundos narrando as suas trajetórias enquanto docentes de Educação Física no tempo e no espaço da 2ª CRE.