• Nenhum resultado encontrado

5. METODOLOGIA

6.1. CONTEXTO DE INFLUÊNCIA

6.1.2. Neoliberalismo e reestruturação do papel do Estado no processo de formulação

A fórmula para promover o discurso reformista do Estado já é bastante conhecida. Em primeiro lugar, a sentença: o princípio de Estado soberano falhou. Com isso, sua responsabilidade expirou. Teria chegado a hora de um modelo de regulação econômica e social de outra natureza, adequado a expansão do capital a partir da intensificação da globalização neoliberal. De acordo com Santomé (2003), partiria-se, assim, para uma redistribuição de responsabilidades entre o Estado e o mercado. Estes, aliançados, se poriam em melhores condições de enfrentar as crises que próprio capitalismo provê.

A tese dominante no âmbito do mercado e dos grandes detentores do capital, vai pouco a pouco minando discursivamente a centralidade do Estado como promotor de políticas públicas eficazes. Parte-se, então, para a elaboração de uma nova agenda de prioridades e, por consequência, a convicção da necessidade de revisão de políticas públicas de modo a garantir o auxílio dos interesses do mercado na condução dessas. A “grande receita” para a saída dessas crises, se faz com medidas duras e a elaboração de agendas reduzidas, voltadas ao atendimento prioritário à educação, segurança e saúde.

Essa lógica tem início sobretudo a partir do início da década de 1990, quando os interesses do grande capital se voltaram a garantir suporte a economias subdesenvolvidas ou em crescimento. Esse suporte foi oferecido por agências internacionais, sob a condição do estabelecimento de novas competências e funções para os Estados, o que pouco a pouco os fizeram se afastar das suas responsabilidades como provedores plenos de condições para a coesão e desenvolvimento social, em um mundo que passava a ter no capitalismo como única alternativa crível e ainda pretensamente viável. As reformas fortaleciam, assim, o papel regulador do Estado, transformando-o, segundo Ferreira (2013), em um facilitador, uma esfera e um ator, a dar vasão e condições em âmbito nacional para que os processos supranacionais mantivessem seus fluxos e fossem absorvidos por suas agências e instituições internas. O Estado vê reduzido substancialmente o seu papel na economia, se condicionando a

reconhecer o caráter permeável e contingente das lógicas e valores do mercado (JANELA AFONSO, 2002). Em outras palavras, ainda segundo Janela Afonso (2002), as condições impostas pelo processo de globalização, especialmente no âmbito da globalização de ordem econômica, acabaram por tornar o Estado uma instância de recontextualização, um espaço médio que canaliza pressões externas procurando alinhá-las a demandas locais existentes ou possíveis de serem criadas.

Segundo Dale (2006), esse crescente afastamento do Estado como centro de coesão, relega a outros níveis e a outros agentes essas responsabilidades. Essas são redistribuídas ante uma plêiade de atores e de interesses, ora em escala supranacional, ora em escalas subnacionais - o nível da sociedade civil. Mais do que fazer tudo, o Estado determinava então qual organismo seria responsável pela condução dos processos – Estado coordena a coordenação.

O fato é que, como consequência, vê-se reproduzir em segundo plano ou como efeito colateral a reprodução das lógicas do capital no âmago do tecido social; seus efeitos se impõem naturalizando a redistribuição de autoridades e o controle das estruturas decisórias que condicionam o desenvolvimento da sociedade. Trata-se da ratificação das condições de desigualdade econômica e social, haja vistas essas serem necessárias de modo a afiançar os interesses do mercado. Se desmantela, por consequência, ideais de construção de uma sociedade mais justa e democrática. Nas palavras de McCarthy et al. (2011), o reordenamento sistemático dessas prioridades do Estado subordina a própria democracia à acumulação capitalista, tornando-a um simulacro. O resultado prático é que todas as instituições democráticas se tornam irrelevantes, sendo facilmente suprimidas por representações do capital usadas de forma flexível e negociável como se houvesse uma espécie de “constitucionalização do neoliberalismo” (ROBERTSON; DALE, 2011).

Nesse processo de constitucionalização, a sanha neoliberal recorre a medidas de caráter privatizantes e de um limitado e dissimulado espaço de democracia no que diz respeito as decisões políticas. Os legisladores, de modo a atenderem interesses alheios ao da sociedade nacional, produzem ações em grande parte contrários aos interesses das classes mais populares e carentes. Esse modelo de relacionamento de Estado com o mercado estabelece as condições para o avanço do pensamento neoliberal. Se assume que medidas dessa ordem embora “duras”, são necessárias; a alternativa viável diante das condições de precariedade que o próprio capital cria e recria. Essa narrativa já é bastante conhecida; os seus efeitos na

melhoria das condições de vida dos mais pobres e no equilíbrio das condições materiais de nações emergentes ou periféricas, também.

Apesar dos resultados variarem historicamente entre o limitado e o torpe, as alternativas neoliberais continuam, embora com algumas pequenas “modernizações”, a se reconhecerem portadoras de uma condição de originalidade latente.

Se tivesse que intitular a história do neoliberalismo e dos seus efeitos políticos e econômicos, a partir do discorrido até aqui, seria possível tomar emprestado o título empregado por Popkewitz (2004) ao se debruçar sobre essa questão: uma “história de salvação”, o qual, por óbvio, tomaríamos, com alguma galhofa e muito fúria. O fato de considerar que as histórias de salvação do neoliberalismo sejam velhas e já conhecidas, porém, entendo não me darem salvo-conduto para tratar essa premissa como natural ou dada.

O fio condutor que permite a narrativa de salvação do neoliberalismo seja reiteradamente reconsiderada se dá a partir de uma espécie de apelo ao senso-comum. A condução do Estado, desde esse discurso, deveria reproduzir uma condição análoga ao que significar gerir uma empresa. O estado de bem-estar social empregaria mal os seus recursos, gastando-os de maneira irresponsável e com privilégios a grupos particulares. O bem-estar é visto como dependente de acordos sujeitos a reconsiderações diante de pressões de diferentes grupos sociais sobre as suas representatividades na esfera do Estado, visando obter privilégios e benefícios.

Segundo Santomé (2003), as alternativas defendidas, entre outros procedimentos, via de regra, se dão a partir da apologia à privatização, flexibilização de direitos e políticas de escolha de viés clientelista aplicados aos serviços públicos. Existe a crença de que esse outro modelo de gerenciamento de recursos e de prioridades, calcada na ideia de eficácia típica do setor empresarial, reordenaria os processos econômicos e remodelaria o contrato social. A salvação esperada dependeria fortemente do mercado e dos movimentos do grande capital, na consignação da cidadania plena mediante mérito individual e empreendimentos que se voltem a oportunizar competitividade. Essa história incorpora como cânones as políticas de governo de Margareth Tatcher, na Grã-Bretanha, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, ambas alinhadas conceitualmente às teorias sociais da escola de economia de Chicago (POPKEWITZ, 2004; McCARTHY, ET. AL, 2011; CARDOSO, 2006).

Algumas outras características desse modelo de Estado, são oferecidos pelo pensamento de Ball. Para o autor, o Estado, pouco a pouco foi assumindo uma roupagem de

viés pós-moderno (BALL, 2013). O papel dele, ainda que atuante, se dá de forma e abrangência multilocalizada, racionalizado por modelo econômico flexível e difuso. Os interesses deste Estado pós-moderno se confundem com os de outros atores (corporações transnacionais e a iniciativa privada), produzindo uma “governança em rede” (BALL, 2013, p. 188). Trata-se, de modo análogo, ao que Dale (2006, p. 64) metaforiza desde a concepção de uma ideia de Estado ectópico (fora de lugar) e não atópico (sem lugar). Em outras palavras, o Estado está presente no processo de desenvolvimento das suas políticas, porém em posição adjacente e em condição de complacência para com as suas necessidades sociais mais prementes.

Embora os Estados ainda estejam responsabilizados pela resolução de problemas, eles não estão necessariamente envolvidos no diagnóstico e definição do de que fato é um problema, muito menos se reconhece como parte dele. É papel também das instituições representativas do neoliberalismo se postularem como financiadores e fiadores dessas propaladas soluções. As alternativas, segundo Robertson e Dale (2011), que os Estados têm “à disposição” para o enfrentamento dos seus supostos problemas se encaixam em um pacote estandardizado. É por meio deles que os Estados entendem quais são os seus problemas. O que está em jogo aqui, assim, é a própria possibilidade dos Estados participarem da definição do que é real (SANTOMÉ, 2003).

Algumas das possibilidades de trânsito consentido pelo capital estão limitados a uma espécie de raio de ação, cujo limite está nos processos de consumo, acumulação e mais-valia. Essas possibilidades limitadas se escandem em termos circunspectos por uma aura fetichiosa. A palavra flexibilidade, por exemplo, segundo Santomé (2013), funciona como um desses mecanismos. Opera mediante “sedução” e é utilizado pelo poder político e econômico como forma de dissimular realidades mais cruas. Quando se fala em flexibilidade, ela não se alonga ou se retrai como poderia se imaginar, caso levássemos ao pé da letra a densidade da metáfora; ela só reduz. A flexibilidade aplicada à esfera profissional, por exemplo, diz respeito a construção de valências que se façam absorvíveis por um mercado que é volátil, impreciso e imprevisível. Para tanto, o trabalhador não pode mais reproduzir as mesmas competências fabris e enrijecidas que lhe alcunhava e que eram capazes de mobilizá-lo ao longo de toda a sua vida. Esse novo comportamento traz no seu bojo também a ideia de Educação ao Longo da Vida (LIMA, 2006), que considera o aprendizado flexível e dependente de reinvenção contínua como forma de atender as demandas que não são necessariamente dos sujeitos, mas do mercado, operando a partir de uma falsa consciência.

Outro mecanismo seria estimular os indivíduos a se comportarem de acordo com o ideal do empreendedor. As habilidades inerentes à sobrevivência (acumular capital próprio e competitividade) substituiriam aqui valores essenciais para a manutenção do tecido social. Segundo McCarthy et. Al (2011), esse novo modelo de sujeito, além de um assíduo consumidor da cultura de massa, seria alguém que primasse por interesses individuais a despeito de causas comuns e atenção a necessidades coletivas. As políticas assim priorizariam permitir ao indivíduo tomar as suas decisões, diminuindo a interferência de aparelhos de Estado nessa mediação. O empreendedor de sí mesmo seria reconhecido socialmente pelos seus próprios méritos, embora também viva o permanente risco de tornar-se algoz de si mesmo, ou seja, único a ser responsabilizado pelos eventuais próprios fracassos.

O fato é que o neoliberalismo também toma para si o interesse em atribuir sentidos vis a palavras que a classe trabalhadora poderia se servir. Falo, por exemplo, da palavra liberdade. Na sociedade capitalista neoliberal e desde um desenho de Estado pós-moderno, estamos a falar geralmente, na verdade, de uma falsa liberdade. Uma liberdade baseada no poder de escolha, uma liberdade de e para o consumo. Liberdade consentida pelo poder, cuja ampliação é em alguma medida regulada para ser exercida dentro de raios bem traçados e de entornos invisibilizados. Segundo Santomé (2003), liberdade requer, em uma sociedade contemporânea, que se crie sempre condições para exercê-la. Porém, segundo o autor, não importa tanto que o indivíduo seja livre politicamente se ele não for também socialmente. Liberdade essa que se faça a partir de mediações que transcendam o poder de comprar, o poder de consumir. Precisamos de liberdade, mas desde um outro sentido ontológico.