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5. METODOLOGIA

5.2. DO CAMPO EMPÍRICO À PRODUÇÃO DAS NARRATIVAS

5.2.1. Blimundagem: a linguagem literária como ferramenta de habitar as brechas do

Percebi um grande limite entre as minhas condições para compreender o exercício da docência a partir da vida narrada pelos colaboradores aqui reunidos. Um desafio que Saramago não tinha. Diferentemente do autor, eu não pude exercitar ao longo do exercício diegético o mesmo comportamento onisciente que ele adotava para a construção de seus personagens. Ele aparentava conhecer tudo sobre eles, seus passados, presentes e futuros. Ele os criou, e por isso também era o artificie das suas personalidades, dos seus desejos e de suas próprias fabulações. Saramago narrava quase apenas para que também soubéssemos o que ele já conhecia de antemão, cabendo a nós, leitores, o papel de seus cúmplices. No meu caso, todavia, preciso lidar com verdades, ao menos aquelas que os colaboradores me confiaram. Ao longo das entrevistas conheci deles apenas o que diziam, o que ouvia ou o que percebia. Oniscientes eram eles próprios e, eu, um refém dessa impossibilidade.

Tal como nos ensina Aleksiévitch (2016a), tentei encarar cada um dos Raimundos e Raimundas que colaboraram com o estudo como se fossem caixas-pretas. Professores caixas- pretas. Sujeitos circunstanciados por conhecimentos, valores, experiências e vicissitudes particulares que desde o início me interessavam, mas que não seriam revelados apenas pelo encontro, pelo contrato, pela assinatura do termo de compromisso. A abertura das caixas- pretas não estava autorizada à priori. Apenas pude as ler desde fora imaginando o que dentro delas jazia. Como pesquisadores, e partir do real disponível, somente podemos aludir aquilo que os caixas-pretas dizem saber, dizem conhecer, dizem ter vivido, dizem lutar, dizem sonhar. Pela escrita tradicional, precisava esperar que eles se abrissem; eu assim seria um quase expectador, aguardando o abalroamento das palavras porvir.

Confesso que não pude cumprir todas as exigências que o ofício de pesquisador me impunha. Não pude ser e estar alheio, distanciado do que diziam, dos seus suspiros e sorrisos. Fui um espelho. Um pesquisador-espelho. Fui loquaz quando diziam o que também me movia, fiz uníssono aos seus suspiros, me peguei sorrindo quando recordavam de imagens que lhes evocavam alegrias. Ser pesquisador-espelho, podendo refletir em si, as relações possíveis entre pesquisa-pesquisado, produzindo resultados que são assim um pouco mais e um pouco menos do que reflexões. O pesquisador que sente o pesquisado, o pesquisado que sente o pesquisador, não fazem pesquisas, não criam e perscrutam evidências: criam laços. Troca-se o pó do acervo, por novos amigos.

Entendi que os professores narram, evocam lembranças que apenas às vezes são ditas. Outras vezes se abrem pelo sentir. Gritam o que um gravador não é capaz de escutar. O que diz uma lágrima quando cai, depois que o nosso questionamento sai/foge da boca/vida do entrevistado? Como ler e transcrever folhas que remexem sem razão, tensões que as sobrancelhas dão relevo, peles que cambiam de cor matizadas pelas janelas que a memória evoca?

Senti que para a captação desses dizeres precisava moldar uma escrita feita de um ouvir outro, de um ouvir por toque e não apenas escutado.

E das vísceras escrevi. Com o que pude sentir, com o que se introjetou em mim, tocou minhas vísceras, que no meu caso é a região do corpo mais próxima da caneta. Um aparelho composto pelos meus órgãos mais íntimos e profundos, o qual procurei apurar ao longo de toda essa tese: ouvidos - vísceras - caneta. Aparelho de abrir, o único que em minhas limitações físicas e cognitivas senti ter à disposição para captar para além do que fora tornado voz.

Para conhecer o interior dos sujeitos, assim, precisava adotar outros caminhos. Se não era onisciente tal qual Saramago, imaginei, porém, que nas minhas vísceras vivia uma das suas personagens mais caras: Blimunda, de o “Memorial do Convento”. Ela poderia me ajudar a ver esse sentir. Decidi que aqui a inspiração seria ela, a personagem que Saramago disse certa vez que queria ter sido, e que foi, acredito, durante o tempo em que a escreveu.

Poderia eu me identificar com a sua mágica, com a sua iniciativa, com a sua sensibilidade, com a sua força de vontade ou com o simples fato de ser uma grande sonhadora. Acabei por me identificar com a dádiva-fardo que ela carregava inexpugnavelmente em seu viver: a capacidade de olhar para dentro das pessoas, encontrar

nelas seus desejos escondidos. Se não poderia ter os poderes de Saramago, poderia escolher ter os mesmos de Blimunda, contanto que encontrasse uma forma de aprender a olhar metaforicamente para “dentro dos sujeitos”.

Decidi procurar fazer isso a partir de uma estratégia metodológica que vim a chamar de Blimundagem. Nesse procedimento espreito brechas produzidas pelo encontro não- cronológico do tempo narrado com o tempo vivido de modo a garantir que a intensidade produzida por esse encontro tenha forma, tenha registro. A Blimundagem em outras palavras, serve de condição de fala, um meio de visitar as brechas deixadas por eles, ou ao menos aquelas que percebia assim estarem. Uma fenda no tempo causado pelo presente que recorre ao passado, forjando o extemporâneo. Essa escrita que vem em devir é pura intensidade.

É nessa simultaneidade entre os tempos que surge o “convite” a um fora que se assume hábil para ocupar a brecha no tempo, que é também brecha do eu, que também é brecha da história. Onde tudo que é interioridade se volta para o exterior. Pulsante. E esse lugar, segundo Maurice Blanchot (2013) convida à escrita. Acabei como pesquisador a espreitar brechas, já abertas ou produzidas, quase em si mesmas cavadas. Não para falar por eles, mas para ajudar a compor esse tempo, um tempo carregado de instantes, esférico, em devir como sugestiona Blanchot. Pela blimundagem, reproduzir mais do que uma outra voz, mas também o que era possível sentir e produzir naquele real a partir da escrita da minha parca literatura.

Trata-se de uma simultaneidade vívida, “o próprio tempo da narrativa, o tempo que não está fora do tempo, mas que se experimenta como um exterior, sob a forma de um espaço, esse espaço imaginário onde a arte encontra e dispõe seus recursos” (BLANCHOT, 2013, p. 17). A obra, assim, torna-se lugar do fenômeno da reminiscência, “comunicação que não é a do presente, nem do passado, mas o surgimento da imaginação cujo campo se estende entre um e outro” (p. 25). O espaço do imaginário, assim, segundo o autor representaria uma esfera forjada pelo movimento de instantes sobrepostos e de ação sempre porvir.

O que é tornado voz é um complemento a um possível real, que apenas a voz não poderia garantir. Quando me volto a dar nome a sensações, percepções e sentimentos engendrados na relação que estabeleço ou aquilo que está agarrado à fala, mas inaudito, estou penso, a historicizar não apenas os acontecimentos por eles relatados, mas os sentimentos por eles evocados ou passíveis de serem provocados no espectro desse contemporâneo de 22 anos.

Manejar o tempo pode também servir como um truque. Uma alternativa para tornar incidentes quiçá insignificantes do passado cintilantes ante um instante, uma contração tão única quanto original. Nesse sentido, a lembrança é demovida da sua significância passada, assumindo a condição de real, não necessariamente verdadeiro, pois a memória, em sua fugacidade e inventividade, não nos deixa jamais reconhecer essa pretensão. A lembrança evocada, tornada narrativa, assim, é sempre um novo tempo. Ela e o instante, eclodidos, conforme Blanchot (2013), rasgam a trama do tempo, e por ele introduz um outro mundo. Passado e presente agarrados, uma simultaneidade sensível, original. Proust, nas palavras de Blanchot vai ousar a dizer que esse seria o tempo puro. O tempo separado dos grandes acontecimentos. Em outras palavras, o tempo que está fora do tempo é o tempo puro. Passado e presente, um raio do instante, simultâneos, a abolir a cronologia.

Viver a abolição do tempo, viver esse movimento, rápido como um raio, pelo qual dois instantes, infinitamente separados, vêm [...] ao encontro um do outro, unindo-se como duas presenças que, ela metamorfose do desejo, se identificassem, é percorrer toda a realidade do tempo e, percorrendo-a, experimentar o tempo como espaço e lugar vazio, isto é, livre dos acontecimentos que geralmente o preenchem. Tempo puro, sem acontecimentos, vacância móvel, distância agitada, espaço interior em devir onde as estases do tempo se dispõem numa simultaneidade fascinante (BLANCHOT, 2013, p. 17)

Esse tempo, fraturado, organizado da forma como sugiro, faz sentido sobretudo enquanto tempo narrativo, um terceiro tempo, como sugere Ricoeur (2010b). Nele o passado e o presente podem sim serem simultâneos. Esse espaço, essa brecha, representaria uma espécie de ausência móvel, sem acontecimentos que a dissimulem, um vazio, mas não qualquer um. Um vazio em devir. O que é interioridade se abre para o exterior, tornando-se imagem. A imagem, em essência, tal como também revelaria Benjamin (2013), toda voltada para o exterior. Toda para fora, que na prática é um dentro para fora. Não é possível haver significação previa, dada a originalidade premente clamando por um uma nova profundidade. Uma presença-ausência. O ursprung convidando os olhos a ver e a mão ao escrever.

Essas digressões – as blimundagens - foram produzidas a partir da escrita do diário de campo. Reconhecendo a intenção aqui destacada, muitos registros foram feitos ao longo da entrevista e a transcrição realizada imediatamente após elas. Entendi ser esse um modo de preservar as sensações e a intensidade que o contato com aquele professor e sua história havia me provocado e me permitido sentir-dizer. Era a chance de dar linhas a um real que ainda era

vivo, mas que precisava do oxigênio da escrita para aprender o caminho que o levaria a se tornar sentimento, e de sentimento se transformar em história.

Objetivamente, em relação ao texto, a minha voz acaba por aparecer em momentos fortuitos, acreditando que nem todas as falas produziram as mesmas intensidades, certamente por pura limitação minha em encontrar onde estavam as brechas. O reconhecimento dessa minha incapacidade, revela um ponto interessante da investigação. Isso porque se possivelmente outras mônadas distintas tivessem sido agrupadas, produziriam afinidades outras e, por consequência, também intensidade outras. Além disso, o executor da blimundagem teria a disposição um outro cenário, uma brecha distinta um porvir imprevisível.

A minha voz textualmente, encontra-se presente sempre em itálico, entre parênteses, principalmente no interior das falas (simulando serem esses parênteses as próprias brechas), mas também ocorrem no espaço entre as falas, de modo a produzir diálogos que de fato nunca houveram, mas que imaginariamente, ao serem produzidos, dão conta de engendrar intempestividades imprevisíveis. A estética dessa escrita é influenciada pela inserção-reflexão textual de tempos de construção psicológica, experienciados em algumas obras de ficção, como nos trabalhos de William Faulkner17, por exemplo

A blimundagem, mais uma vez, foi a alternativa que encontrei, inventei, embora nem saiba ao certo se bem executei. Uma criação desde um eventual devir Jackson Pollock. Entrei, pisei no quadro também aqui. Me sujei com as tintas dispostas nesse tempo e nessa história. Fazer política nessa história revirando as tintas, as cores e as sensações. Negros alaranjados, brancos esverdeados, vontades, desejos, pisoteados. Habitei brechas, as mínimas possíveis, apenas as insuficientes. Decidi descrevê-las porque, se me faltam verdades, haviam desejos dos professores por voar, e também pretensões que continuavam a me sobrar.

17 Exemplos desse estilo de escrita de construção psicológica podem ser encontrados em livros como “Absalão, Absalão” (FAULKNER, 2014), “Luz em Agosto” (FAULKNER, 2007), entre outros.

6. HISTÓRIA SISTÊMICA

Nesse capítulo apresento duas narrativas que compõe a construção da história que decidi por chamar de Sistêmica, nos termos e condições defendidos por Goodson (2014).

Os dois capítulos dessa história estão alinhados diretamente aos dois primeiros contextos do chamado Ciclo de Políticas, criado e organizado por Ball (1994). Opto aqui por uma construção narrativa cronológica, onde priorizo revelar sentidos e subjetividades presentes no escopo de deflagração das intenções e dos próprios textos das leis. De modo a facilitar essas percepções, me apoio também em referenciais teóricos que, antes de mim, também se debruçaram sobre esses mesmos temas e processos.

Na primeira sessão, intitulada Contexto de Influência, discorro sobre algumas influências de ordem macroestrutural - especialmente de viés econômico - que orientaram em grande parte o que veio a se transformar em ordenamentos legais no país. Recorro a leituras de autores de perspectivas prioritariamente críticas a respeito dos condicionamentos e engendramentos presentes no contexto de formulação das políticas públicas dirigidas ao professorado de Educação Física, no tempo e no espaço do Ensino Médio gaúcho, nos últimos 22 anos.

A segunda sessão abarca o que veio a se materializar enquanto política pública, formalizado a partir da produção de documentos legais orientadores. Esse caminho é relatado também de modo cronológico, iniciando na LDB de 1996 e culminando com o recente lançamento da Base Nacional Comum Curricular. A prioridade aqui é entender os sentidos presentes nos próprios textos legais, ainda que recorra em grande medida a outros autores que também produziram estudos com desenhos semelhantes a esse.

Essa bricolagem metodológica teve a intenção de ampliar as minhas condições de análise, reconhecendo que o processo de implantação de políticas públicas não se dá a partir de relações de causa e de efeito. O Ciclo de Política segundo Ball (1994) e Mainardes (2006), nos permite perceber que as deliberações de âmbito micro e macro são permanentemente reinterpretadas, estimulam criações particulares e sectárias da legislação e das normativas educacionais. Pensar o processo de “vida” de uma política desde o seu enraizamento documental, estratégias de disseminação e reconhecimento até os meios de execução, permite que se reconheça que a comunidade educativa de um modo geral possui potencialmente

condições de impor resistências aos imperativos legais de nível macro de modo crítico e emancipatório.