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3. POLÍTICAS DE SUBJETIVAÇÃO NO INTERIOR DAS POLÍTICAS

4.3. EXPERIÊNCIAS E PROFESSORES VAGA-LUMES

De modo a identificar e reconhecer experiências de resistências de professores diante dos endereçamentos das políticas educativas, recorro nas linhas que seguem a desenvolver um enlace teórico entre trajetórias de vida e alguns conceitos teóricos do autor alemão Georges Didi-Huberman (2011). Entre eles destaco em especial a metáfora que intitula um dos seus livros, “Resistência dos vaga-lumes”, publicação onde o autor se dedica a reconhecer possibilidades de resistência da cultura, do pensamento e do corpo diante das luzes da política em tempos de capitalismo. A grande referência Didi-Huberman para a escrita desse livro é Walter Benjamin e o conceito de experiência discutido pelo autor em “O narrador” (2013).

Didi-Huberman (2011), autor assumidamente benjaminiano, chamou-me a atenção desde o princípio pela potência da sua escrita e capacidade de metaforização. Tratou-se de uma leitura que fiz rápida e avidamente. De todos os autores aqui reunidos, foi aquele que “consumi” de maneira mais efusiva e o livro lido que ganhou mais riscos e mais sinais de assombro13. Além disso, Didi-Huberman chamou a minha atenção também por defender a

necessidade e desejo de reparação para com os sobrepujados pelo curso da história. Para tal,

13 Estratégia que utilizo sempre que o trecho de algum livro me desacomoda. Utilizo de vários sinais de exclamação como sinal gráfico para conotar essa sensação.

defende explicitamente a necessidade da descoberta de resistências que desvele cenas, pessoas, ações e pensamentos. Percebi, aos poucos, que o autor me inspirava e com isso também me “autorizava” a transitar por esse mesmo terreno, escrevendo e pesquisando de modo a reconhecer experiências distantes, fugazes e periféricas capazes de brilharem apesar da ausência ou do ofuscar de muitas luzes concorrentes.

Entendo ser possível representar essas luzes excessivas, na esteira do pensamento do autor, desde uma analogia com as próprias políticas educativas contemporâneas, e seus focos dirigidos intensamente às escolas e aos professores. São luzes que iluminam entendimentos, muitas vezes alheios aos do professorado e que acabam por lhes conferirem lugares sociais e políticos marginalizados, na cochia ou na obscuridade; ponto cego, de pouco ou nenhum real protagonismo. Um foco que ao exagerar na luz ofusca caminhos alternativos e de resistência ensaiados ou já em reconstrução.

A filosofia de Didi-Huberman (2011) defende a necessidade de encontrarmos e inventariamos espaços de resistência onde a experiência não esteja completamente esgotada e empobrecida pelos interesses mercadológicos. Lugar onde as luzes ainda emanam fortemente, iluminando caminhos e perspectivas originais e inspiradoras.

Ao tratar de uma suposta perda da capacidade dos sujeitos refletirem e transmitirem experiências, o autor se dedica a criar artefatos teóricos que deem relevo às luzes de experiências e sujeitos habitantes-praticantes de uma história outra, uma história relampejante que se esconde e se mostra apenas na conjugação da excepcionalidade de outros tempos. Uma história outra, de corpos e de desejos outros, histórias de almas e de dúvidas íntimas a viverem obscuramente no interior dos grandes acontecimentos.

Tive a alegria do encontro e a segurança do respaldo, enfim, ao ver o autor defender que a questão dos vaga-lumes tanto é política, quanto histórica. Convergir história e política, foi como reencontrar um tópos, mesmo que vacilante, para o meu discurso e estudo. Segundo o autor, trata-se de “[...]extrair o pensamento político em sua ganja discursiva e de atingir, dessa maneira esse lugar crucial onde a política se encarnaria nos corpos, nos gestos e no desejo de cada um” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 30). Ouvir essa frase foi especialmente tocante. Se pudesse, moveria esse excerto para tomar lugar dos objetivos dessa Tese, tamanha a identificação que encontrei nessas palavras.

Benjaminiano como se quase intitula, Didi-Huberman utiliza recorrentes expressões e máximas que um outro benjaminiano gostaria de tê-las escrito, mas que, como não pôde, se

contenta em lê-las em voz alta para, quem sabe, fingirem elas também serem um pouco suas. Confesso que fiz isso. Queria avaliar se tinham mesmo capacidade de soarem como lemas e hinos, tal como já há muito gritavam nas bordas rabiscadas desse livro.

E onde os vaga-lumes estão?

Para conhecer os vaga-lumes é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo. Ainda que por pouca coisa a ser vista. É preciso uns cinco mil vaga-lumes para produzir uma luz equivalente a uma única vela. Assim como existia uma literatura menor (DELEUZE; GUATTARI) haveria uma luz menor, possuindo os mesmos aspectos filosóficos: um forte coeficiente de desterritorialização; tudo ali é político; tudo adquire um valor coletivo, de modo que tudo ali fala do povo e das condições revolucionárias. Imanentes à sua própria marginalização. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 52)

Outro aspecto decisivo para minha admiração e catarse para com o pensamento do autor, foi criado quando discorre sobre o componente político da imaginação. A imaginação sempre encontrou espaço nas minhas subjetividades. Porém, tive algum receio inicial de utilizá-la para enfrentar os corolários de escrita de uma tese. Aos poucos, porém, decidi impor forças, enfrentar; porque a imaginação é coisa muito forte para ficar subsumida a contenções ou convenções. E nesta Tese ela acabou por escapar pelas brechas, derramou-se em alguns lugares mais do que em outros; se misturou à história, à política, à literatura, ao real, ao verdadeiro, ao possível e ao ainda não. Para o autor, “em nosso imaginar jaz fundamentalmente uma condição para nosso modo de fazer política” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 60).

Decidi que era isso que deveria fazer. Compor junto com Didi esse nós. Fazer política com a escrita depende de armas que não ferem corpos, mas podem ferir a razão. Armas que promovem dissensos, armas de revelar armas, de conjecturar passados-bomba, insidiar futuros e novos presentes. “Imaginação é política, eis o que precisa ser levado em consideração” (idem, p. 61). E levo. A escrita e o pouco de imaginação que me cabe, foi uma ferramenta de montar tempos e produzir imagens que impulsionaram outros sentires, outros modos de pensar. A história não está é uma jazida de buscar, não está sempre no mesmo lugar. Ela é viva, retroativamente ou projetivamente falando. É imaginando que criamos, sem mentir, nem adulterar, apenas tentando extrair outros outros. Imaginação que avolume e conteste o real. Que não o solape, lhe esconda ou revise. Um imaginário amalgamado de real, um real que, embora nem sempre visível, ocupa espaço. Tenho um compromisso tácito com o real, não com qualquer um, mas com um real que tenha aprendido a rimar.

E é por isso que Didi, como fizera Benjamin, confere superlativa importância à experiência de memória. É cada vez mais comum que mulheres e homens desse contemporâneo continuem a verem passar seus dias e vivências sem produzirem o que poderia ser transformado em experiências comuns compartilhadas.

É essa incapacidade de se traduzir em experiência que torna hoje insuportável – como em momento algum do passado – a existência cotidiana [...] uma visita a um museu ou a algum lugar de peregrinação turística, é, desse ponto de vista, particularmente instrutiva. Posta diante das maiores maravilhas da terra [...] a esmagadora maioria da humanidade recusa-se hoje a experimentá-las: prefere que seja a máquina fotográfica a ter experiência delas. Não se trata aqui de deplorar a realidade, mas de constatá-la.

A história oral aqui produzida, essa História do Não, procurou resgatar experiências vaga-lumes de professores vaga-lumes. Sujeitos que, que por mais que nem sempre reproduzam a luz que esperávamos encontrar (professor que sou, pensando em docências alternativas ou o reconhecimento da educação pública como espaço de crítica social), precisavam verem suas resistências e artesanias dispostas no quadro do tempo, emolduradas pelos devires da alternativa e da imaginação. As buscas foram por lembranças e saberes clandestinos, hieroglíficos, de sujeitos e realidades constantemente submetidos à fusão em comunidades de sentido obtusas ou de censura.

Não há sobrevivência de vaga-lumes sem resistências. Das memórias, produzir novos tempos, narrados de outros modos. Narrativas oníricas ou ficcionais necessitam, por isso, serem também historicamente reconhecidas. Para Didi-Huberman (2011), são elas que dão espessura à facticidade e novas múltiplas camadas ao real. São por elas que os professores, por vezes, transitam. Ao procurar fazer isso, permiti-me escrever sobre o muito que os professores me diziam, embora nem sempre pela própria voz. Algumas das marcas e acontecimentos dessa história, são monumentos resgatados pelo sentir, que as minhas pupilas e pele se encarregaram de escancarar. Palavras que eles evitaram, mas eu percebi. O que faço com esse real? Sentir não pode ser historicizado? Foi disso que me vali, procurando assumir o decantamento das palavras ditas pelas memórias que chegaram à boca como passíveis de também servirem de relatos. Memórias de uso experiencial, emergencial, providencial. Blimundagem.