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3. POLÍTICAS DE SUBJETIVAÇÃO NO INTERIOR DAS POLÍTICAS

3.1. A POLÍTICA NO INTERIOR DA PERSPECTIVA ESTÉTICA: JACQUES

3.1.1. Escritas e literaturas para repartilhar o sensível e produzir presenças: a escrita

Conhecer o conceito de política em Ranciere foi uma forma também de testar se eu era digno de empunhá-lo. O autor tem consigo uma escrita-arma, pensei. Se não sou digno dela, preciso aprender a ser, preciso aprender a manejá-la, decidi. Era hora então de revisar projeto e condições, exequibilidade e pretensões. Lembrei que manejar tal arma exigiria, primeiramente, capacidade para adaptá-la ao trabalho que aqui me impunha fazer. Reconhecer o limite do que entendia possível para poder forjar outros. Possíveis de devires brincalhões, possíveis com grandes pretensões, possíveis que desaprenderam a caberem em si. Possíveis que se inventem, que se induzam, que se invitem, que insistam, que se improvisem. Depois do

limite daquilo que temos à disposição reside um real aventureiro, um real que decidiu se recriar.

Antes de usar a arma de escrita, era preciso conhecer a quem deveria apontá-la: ao real. À realidade que os docentes decidiram me contar. Realidade que por vezes desmentia o que eu já havia lido a respeito da docência em Educação Física na 2ª CRE, seja pela letra da lei, seja pelas letras daqueles que puderam registrar essa história. O que aprendi com eles a respeito desse real, no jogo da disputa por esse sensível, não parecia, porém, fazer justiça aos gritos que os corredores e pátios das escolas faziam ecoar. Sons muito baixos para os formuladores de políticas perceberem ressoar; em contrapartida, altos demais para que os próprios habitantes aguentassem ainda tolerar. Não era de um justiceiro que essa arma precisava, pensei. Era de alvos, de metas e de rebeliões por registrar. Precisava, assim, reconhecer a capacidade política dos docentes, fazer justiça aos professores metonimizados pelo curso da história das políticas e espaço de escuta para projetos de escola que se ensaiam, mesmo que ainda de modo epifenomenal.

A literatura enquanto arte e arma de escrever é uma “[...] maneira de ocupar o sensível e dar sentido a essa ocupação”. (RANCIERE, 2017a, p. 7). Uma potência política a qual aqui me debruço, mesmo sem a certeza se tenho ou não condições de bem utilizá-la. Acreditei, porém, que mais importante do que certificar-se disso era reconhecer a relevância da própria tarefa, que julguei ser possível e necessária de ser assumida dentro dos limites e possibilidades inerentes à formalidade acadêmica.

A política para o autor sempre foi estética, e a escrita uma de suas manifestações mais relevantes. A escrita literária tem potencial para postular-se crível quanto tentativa de produzir arrebatamentos no real, determinando e redistribuindo o sensível. Ela engendra possibilidades de dar visão ao que não pode ser visto, dar forma ao disforme, nomear o que ainda era inominável. Pode até mesmo realocar o que é discurso e o que, até então, era apenas considerado um ruído. Nessa formulação, o autor claramente recorre ao postulado aristotélicos de que os homens são seres políticos porque possuem a palavra e, por isso, a chance de darem sentido a si por meio delas.

É por acreditar nas palavras e naquilo que elas seriam capazes de “embaralhar” na ordem do fazer, do ver e do dizer, que decido, dentro dos meus limites e possibilidades, escrever.

Segundo Ranciere (2017a), apenas um corpo que sofre pode escrever. A intensidade desse sofrimento, porém, penso, não tem medida, não pode ser decupável, o que, portanto, me coloca, em alguma medida, nessa condição. Senão sofro de fato, por certo parto de um desejo de reparação, aquilo que Benjamin (2013) entende dever ser o grande combustível dos teóricos que decidem se valer do pensamento crítico.

É importante destacar, ainda, segundo Ranciere (2016), que não há na arena de disputa pelas palavras apenas boas intenções, alinhadas à ideia de bem comum. Comum aqui tem implicações no sentido de partilha da cultura, de direitos civis e de liberdades, mas também como um lugar de disputas por poder travadas desde a partir de variadas intenções humanas.

Algumas palavras disputam os sentidos de maneira mais dramática; palavras sem corpo e sem pai, as quais Ranciere (2016) destaca três: povo, liberdade e igualdade. A errância de escrita dessas palavras pode fazer com elas sejam tomadas por máquinas de escrita que sugiram tempos menos vis. As mesmas palavras, porém, também podem corporificar a textura do que é tornado lei, assumindo um comum que não reconhece a diversidade de fato, mas sectarismos feitos para produzir barreiras e distanciamentos.

As palavras escritas inicialmente não têm mais do que o próprio poder da literalidade. A tomada da escrita é uma das formas de demovê-las dessa condição. É uma estratégia de arrancar o trivial da sua condição estanque, da normalidade como causa pétrea. A escrita é uma arma de arrancar sentidos. Segundo Ranciere (2017a), é preciso continuadamente recriar máquinas de escrita, superando modos de discurso “vindos do alto” que se utilizam da política pública para legitimar o status quo. Essas mesmas máquinas podem gerar, em contrapartida, também efeitos-rebote, outras condições de escrita, capazes de fazer escapar palavras do jugo dos discursos do alto para escorrerem até as mãos e bocas daqueles a quem elas não se destinavam.

E esse é um dos motes da escrita: é preciso emprestar palavras a um corpo político renovado. Quando as heranças das palavras resvalam ou devanescem, é momento dos postulantes a um renovado comum utilizar dos seus textos, ultrapassar seus limites e ignorâncias. E essa é, segundo Ranciere (2016, p. 8), a própria democracia da escrita:

É nisso que consiste a democracia da escrita: seu mutismo falastrão revoga a distinção entre os homens da palavra-em-ação e os homens da voz sofrida e ruidosa, entre aqueles que agem e aqueles nada mais fazem que viver. A democracia da escrita é o regime das letras em liberdade, que cada um pode tomar para si, seja para se apropriar da vida dos heróis ou das heroínas dos romances, seja para fazer de si mesmo um escritor, seja ainda para se inserir na discussão sobre os assuntos

comuns. Não se trata de uma influência social irreversível, trata-se de uma nova partilha do sensível, de uma relação nova entre essa literatura que sustenta e solapa ao mesmo tempo o absoluto literário.

A literatura, assim, é uma máquina de dar voz à vida (ibidem). Porém, é preciso mais do que isso. Segundo o autor, a escrita calcada na democracia das palavras, é desejável e, ao mesmo tempo, limitada. Trata-se de um primeiro passo: o direito de representar de modo análogo ao que a classe burguesa sempre fez. Trata-se do que Sartre chama de “petrificação literária”.

Ranciere (2016), porém, acredita que a literatura pode bem mais do que isso. Ela também pode transcender a pura representação e a impassível democracia das palavras. A literatura tem o poder de decifrar signos que as coisas em si carregam. O escritor, assim, é um arqueólogo que faz falar os testemunhos silenciosos da história comum.

O princípio desta forma na qual a literatura impõe sua nova potência não é de modo algum, como se costuma dizer, uma reprodução dos fatos em sua realidade, mas a demonstração de um novo regime de adequação entre o significado das palavras e a visibilidade das coisas, a aparição do universo da realidade prosaica como um imenso tecido de signos que carregam escrita a história de um período, de uma civilização ou de uma sociedade (RANCIERE, 2016b).

A escrita poética representa um modelo de democracia das palavras desarticuladora de devires. Cria uma metapolítica. Desarticula os oradores da democracia entre aspas, se voltando para conhecer e entender, mas principalmente resignificar a profundezas da sociedade, produzindo outras hermenêuticas do campo social. Não basta assim compreender os regulamentos de uma realidade opressora; é preciso dela extrair sensibilidades e fantasmagorias. Produzir escritas que revelem novos e reinventados veios de contrato social. Utilizar a literatura como forma de superar o “mutismo” que jaz sob o rótulo de democrático na letra das leis. Constituir novas escritas, promissoras quanto a dar meios e novas expectativa aos corpos políticos, desde potências renovadas, incomensuráveis. A literatura pode se tornar uma arma de “repoetização da vida” (RANCIERE, 2016, p. 20), transformado corpos poéticos em signos de uma nova história. A aposta do autor é a de que escritas endemizadas na poética possam conjurar histórias de outros comuns, feitos à forja e a partir do que se venceu na disputa pelo poder dizer, pelo poder significar e pelo que, dali em diante, se poderá rememorar, redividir, empunhar e reescrever.

Além da reinvenção da capacidade de escrita na arena do comum, decantada das aprendizagens disponíveis em Ranciere, encontrei também uma outra possibilidade potente de

reassentamento do político emaranhada ao trabalho historiográfico de Gumbrecht (2009), sobretudo no que diz respeito ao seu interesse em transformar o passado em uma força disponível a um presente interpelado pelos devires dessa relação. Falo da possibilidade sugerida pelo autor da escrita literária assumir a condição de produzir presenças no tempo.

Uma escrita a produzir presença teria que se reorganizar de modo a criar esse passado na linguagem. Para isso, segundo o autor, é necessário projetar estratégias de ordem dêitica, poética, ou de potencial encantatório.

A linguagem, no pensamento do autor, é atemporal. Representa um meio possível para superar distancias estabelecidas entre os sujeitos e as coisas, entre o que existe e o que (ainda) não. Esse processo, segundo Gumbrecht (2009), pode se dar também mediante a elaboração de desregramentos cingidos por operações ficcionais. A criação de novas regras é determinante para que as palavras digam e criem outros mundos, recriem as coisas, os sentidos das ações. O que se remontaria do passado e o que o futuro dele poderia cotejar. O desregramento daria novos sentidos a realidade e novas perspectiva ao que é, e ao que ainda não é possível. Essa espécie de novo possível conjuraria experiências de subjetivação política alternativas. A linguagem seria, assim, capaz de produzir presença, capaz de disparar uma experiência estética. Um dos modos possíveis de reconhecimento de alargamento da condição de presença estaria no uso e reinvenção da linguagem de matiz literária. Essa temporalidade reinventada, engendraria uma série de amálgamas entre linguagem e presença produzindo efeitos de epifania passíveis de tornar o passado tangencialmente presente.

3.2. A POLÍTICA COMO CIRCUITO DE AFETOS: A PERSPECTIVA DE VLADIMIR