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Nas assimetrias, há interação; nas diferenças, há aprendizagem; nas sinergias, há ação; nas falas, há reflexão; no diálogo, o discurso; do contexto, os conceitos; no caminho, há constituição: docência, pesquisa e formação.BB

Neste capítulo discuto a pesquisa e a formação de professores de Ciências, especialmente no tocante à formação continuada, no sentido de que estou empreendendo esforços para compreender como a reflexão se torna um instrumento mediador da formação e num modelo de investigação-ação como um caminho possível para transformação das práticas docentes. A partir da referenciação teórica pertinente e da apropriação dos resultados de pesquisa apresentados e analisados nos capítulos 2 e 3 deste texto-tese, neste capítulo, tenho a pretensão de avançar, com o aprofundamento da discussão do conceito de investigação-ação. As explicitações aqui expressas estão de toda forma alicerçadas no contexto situado de pesquisa, o qual circundou a criação/implantação de um grupo de estudos e pesquisa em ensino de Ciências e Matemática – GEPECIEM, bem como na revisão da literatura da área de formação de professores, corroborando a hipótese de que a formação se torna uma possibilidade de enfrentamento do aprisionamento docente imposto pelo uso do livro e sua maquinaria pedagógica, questão que venho discutindo em todo o texto. A validação/corroboração da hipótese se dá à medida que o processo formativo investigado demonstrou indícios que evidenciam a reflexão como categoria formativa que possibilita a constituição docente e a própria ampliação da investigação-ação como modelo de formação.

Através de um conjunto de reflexões fundamentadas postas em discussão neste capítulo, apresento uma proposição de aprofundamento no campo da compreensão conceitual acerca da formação de professores, demonstrando como a investigação-ação pode ser entendida como investigação-formação-ação (IFA). Entendo, desse modo, como o referencial da IA pode ser ressignificado e ampliado para o contexto da formação de professores em Ciências, tendo como orientação o referencial histórico-cultural, pois, ao me utilizar desse referencial, pude perceber a natureza da reflexão em contexto formativo e como os sujeitos se constituem em interações no contexto referido.

Abordagens e discussões teoricamente fundamentadas permitem-me afirmar proposições no sentido de avançar e alargar o conceito de investigação-ação justamente pela compreensão em profundidade do referencial da teoria educacional crítica e das percepções de mudança nos conhecimentos, que fui apreendendo nas vivências junto à realidade investigada. Este alargamento do conceito possibilita pensar na direção de um processo de investigação- formação-ação. Uma vez que, para além de sobre, é também para a formação que a investigação-ação se configura e se torna efetiva, com sentido transformador das concepções e das práticas pedagógicas, dos currículos, dos contextos escolares, quiçá das práticas sociais.

Assumi essa opção de delineamento desde o início da investigação, pois o referencial me permitiu reconstruir o conceito para uma dimensão formativa, que interessava estudar. Isto fez com que eu pudesse perceber e estar atento do início ao fim em/no como/quanto os movimentos formativos e constitutivos do professor colocavam em movimento e em construção os ciclos reflexivos que foram emergindo do contexto no GEPECIEM. Aparecendo de modo discreto, mas situado desde o primeiro capítulo, venho acenando para entendimentos com esta configuração conceitual, que gradativamente foi tomando forma e proporção ao longo da tese. Esses contornos permitem chegar ao final da investigação de modo propositivo, no campo conceitual e teórico da formação de professores, especialmente da formação de professores da área de Ciências.

Inicialmente faço uma discussão sobre os processos de formação de professores como modo de favorecer a crítica ao modelo técnico e tradicional. Depois apresento os indícios que desencadearam o modo como a reflexão pode mediar o processo formativo de professores de Ciências. Por fim, situo a reflexão como categoria formativa que passa a compor o conceito de investigação-ação.

4.1 Formação de professores: compreendendo um modelo possívelCC

O conhecimento de professor como fator constituinte da sua profissionalização esteve por longos anos mais atrelado à formação inicial em nível de graduação, antes ainda nos cursos normais que formavam os professores primários. Já em meados do século XX, foi verificado que o processo de formação inicial de professores não dava conta do universo das inúmeras questões em que estavam imersos os professores em contexto educacional. Por causa disso iniciaram-se os primeiros passos da formação continuada, que foi baseada (e ainda tem sido em muitos casos) em cursos de curta duração, cursos de especialização, palestras e oficinas (formação como sinônimo de eventos [MIZUKAMI et all., 2002]), muitas vezes, apresentando receitas e novas metodologias de ensino, sem discutir os processos de ensino e aprendizagem, o fazer docente nem tampouco os conteúdos do ensino; a esse modelo dá-se o nome de técnico ou tradicional (NÓVOA, 1992; PÉREZ-GÓMES; 1992).

Schön (1992; 2000) descreveu e criticou esse modelo de formação apoiado no acúmulo de conhecimentos científicos para posterior aplicação na prática como coerente com a racionalidade técnica, por fazer parte de um processo que consiste basicamente na aplicação de teorias e da técnica científica à resolução de problemas puramente instrumentais, sem a reflexão sobre a prática necessária à melhoria da ação.

Os modelos de formação apoiados na racionalidade técnica, especialmente no tocante à formação em Ciências, têm como agravante o absolutismo, o rigor científico e o positivismo lógico muito presentes nos processos que envolvem a produção da Ciência na área das CN. Esse modelo também foi tido e utilizado como eficiente e eficaz na formação inicial de professores, no famoso modelo identificado como três mais um, que era entendido como três anos de muita teoria e um ano de práticas e estágios pedagógicos ao final da formação.

A racionalidade técnica favorece, ainda, a adoção e o uso indiscriminado e quase exclusivo do livro didático, ações estas que ainda parecem ser muito corriqueiras nas salas de aulas brasileiras, como relatam pesquisas da área, já apontadas nos capítulos 1 e 2. Este favorecimento é evidenciado pela ideia vigente de que o conteúdo dos livros didáticos está correto e muitas vezes é considerado fonte única de apropriação da Ciência pelos professores e alunos da educação básica.

Em contraposição a este modelo, Schön (1992; 2000) e Alarcão (2001; 2010) têm defendido uma perspectiva denominada racionalidade prática, que visa, entre outros elementos constitutivos, à reflexão sobre a ação.

Apontar para reflexão como possibilidade de mediação dos processos formativos é vislumbrar outros caminhos possíveis à formação continuada de professores. Nesse sentido, a formação inicial pode e deve estar também articulada a esse mesmo processo. A ação de formação que vivenciei e que está analisada nesta tese fez com que fossem reunidos professores formadores, licenciandos e professores da educação básica, todos em processo de formação. Esse modelo parece favorecer a reflexão sobre a ação, como está posto na análise já realizada e nos indícios que demarcam os vestígios do processo investigado/analisado/transcorrido.

A busca de um saber processual e de uma formação que dê conta da articulação entre teoria e ação docente é defendida por Zanon (2003, p. 83), ao investigar processos de formação inicial, apontando-o, com base em Alarcão (1996), Tardif (2005), Porlán (1989), Porlán; Martín (1997) como um saber

complexo e dinâmico, que se constrói, desde cedo, na interação entre saberes teóricos e saberes inerentes à prática profissional; um saber de interface entre conhecimentos disciplinares teóricos e práticas docentes, que se constitua como um sistema de ideias em evolução; um conjunto de representações a partir das quais os professores interpretam, compreendem, (re)orientam e praticam a sua profissão. Essa defesa também é pautada por Porlán; Martín (1997), Silva e Schnetzler (2000), Alarcão (2010; 1996) e acredito que possa ser também aplicada às razões de uma formação continuada qualificada que tanto é buscada.

A reflexão é também uma possibilidade de encontrar outro caminho para a (re)significação do livro didático na constituição docente, pois a via da formação contínua, refletida, fundamentada e compartilhada parece favorecer uma adoção menos imediatista, pouco informada e deliberada, que impõe o uso exclusivo do livro didático em detrimento de uma formação que vai se consolidando por meio de processos refletidos e adoção de práticas docentes que visam à transformação da realidade e sua constante melhoria. A relação entre professor e livro didático é tensionada pelo processo formativo em que o primeiro se inclui e assim essa tensão exercida vai propiciando condições a uma prática refletida e reflexiva.

Os processos de formação continuada já testados e que podem dar respostas positivas têm algumas características relevantes: os grupos de professores que decidem “tomar nas próprias mãos” o tipo de aula e o conteúdo que irão ensinar, tendo a orientação maior – parâmetros curriculares, por exemplo – como referência e não como fim; a prevalência dos coletivos organizados sobre indivíduos isolados como forma de ação; a interação com professores universitários, envolvidos e comprometidos com a formação de novos professores; o compromisso das escolas com a formação continuada de seus professores e com a formação de novos professores compartilhando seus espaços e conquistas (MALDANER, 2006, p. 25).

Maldaner (2006), entre outros autores da área de Educação em Ciências (CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2000), tem defendido uma formação que faça estabelecer pontes entre contextos reais (da educação básica e das vivências dos sujeitos) e Universidade (aspectos formativos, pesquisa na área), na tentativa de encurtar o distanciamento entre as pesquisas educacionais e a prática docente que o modelo da racionalidade técnica impôs ao longo dos anos.

O modelo de investigação-ação tem sido utilizado sobremaneira em propostas de formação continuada de professores em Ciências que têm como perspectiva a racionalidade prática. Com diferentes performances, as propostas apresentadas pela literatura da área de Educação em Ciências tendem a respeitar o conhecimento dos práticos para reorganizar a produção de uma formação que pesquisa essa prática e esse “conhecimento prático” a partir de reflexão teórica e mediada em ambientes interativos.

Zanon (2003 [grifos da autora]), no que chamou de “tríade de interação”, acrescenta a esse modelo, quanto às interações necessárias para que se leve a cabo uma formação qualificada, a união de no mínimo três sujeitos que se envolvem com a produção de ensino: licenciandos da área em formação, professores formadores da universidade e professores de educação básica, configurando um ambiente interativo que favorece a aprendizagem e o desenvolvimento profissional e curricular.

Cabe apontar, também, que o professor formador da Universidade ou pesquisador acadêmico tem sumária importância nesse processo, pois dificilmente comunidades de professores se organizam voluntariamente e sem ajuda da academia. A “tarefa do pesquisador acadêmico é a de consolidar uma forma de pesquisa colaborativa que seja transformadora da prática curricular e que, no processo, favoreça o desenvolvimento do professor no que se refere à transformação de sua prática” (ROSA; SCHNETZLER, 2003, p. 30). Pérez-Gómez (1992[tradução própria]) também enfatiza esse papel do formador, ao referir que “não é possível ensinar o pensamento prático”. Desse modo, o professor formador “adquire uma importância vital”, tornando-se “responsável pela formação prática e teórica do professor”, sendo também “capaz de atuar e refletir sobre a sua própria ação como [professor] formador”.

Assim, o papel dos professores da Universidade pode ser evidenciado como de iniciadores/desafiadores do processo num grupo que os pesquisadores têm interesse de investigação, como assessores/consultores procurados por um grupo de professores interessados em formação ou como agentes externos/observadores de um processo em que o contexto vai receber uma formação ou, ainda, com um papel preponderante de professores