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O livro didático e o Professor de Ciências: uma relação perversa?

Os professores que participam do GEPECIEM, os quais entrevistei um a um sobre a questão do livro didático, concebem o uso e a adoção do livro de Ciências como algo tácito em sua prática, tão acoplado a ela que alguns desacreditam que existiria um ensino sem ele. Nesse sentido, vale ressaltar o conhecimento acerca dos saberes docentes, em especial os

saberes da tradição pedagógica (GAUTHIER, 2006) e os saberes provenientes dos programas e livros didáticos usados no trabalho (TARDIF, 2005). Acredito que as raízes deste sentido, que deixa tão estreita a relação entre o professor de Ciências e o livro didático, podem ser melhor compreendidas através do exame da literatura pertinente, sempre tendo em perspectiva de análise dos resultados apreendidos nos documentos curriculares e no discurso educacional, muitos já discutidos nesse capítulo.

Ao examinar o discurso oficial a respeito do papel do livro didático na educação, apreendi uma passagem que suscita reflexões sobre o uso do livro e por que ele deve ser adotado, na visão do MEC-PNLD:

5. um LD, seja qual for sua área específica, deve preencher várias funções simultâneas:

5.1.Do ponto de vista do aluno: 5.1.1. transmissão de conhecimentos;

5.1.2. desenvolvimento de capacidades e competências;

5.1.3. consolidação de conhecimentos práticos e teóricos adquiridos; 5.1.4. avaliação dos conhecimentos práticos e teóricos adquiridos;

5.1.5. referência para informações precisas e exatas (BRASIL, 2010-b, p.14 [grifos do autor]).

O trecho selecionado é trazido aqui na perspectiva de compreender o modo pelo qual a política pública amarra a prática docente, empreende a obrigatoriedade do uso do livro didático como o melhor formato para o ensino, uma vez que explicita vários argumentos para qualificar a necessidade do uso do livro como ferramenta que cumpre “várias funções simultâneas” (BRASIL, 2010-b, p. 14), especialmente no que se refere aos alunos. Entre as funções apresentadas, a “transmissão de conhecimentos” e a “referência para informações precisas e exatas” (ibid, p.14) reforçam uma visão simplista de docência e uma concepção de Ciência Reproducionista balizados por um ensino tradicional. Ambas, na minha visão, são compreensões equivocadas e que estão muito ligadas ao ensino na área de Ciências.

Mais intrigante do que apresentar muitas funções e tentar atribuir todo o sentido da educação e da prática docente ao manejo de um livro didático é o fato de que o discurso oficial impregnado pelo PNLD assume que para o professor os benefícios são maiores ainda, pois apresenta informação científica e geral, ajuda a gerir as aulas e a efetivar avaliação de conhecimentos teóricos e práticos adquiridos e faz sua própria formação pedagógica, de modo a deixar claro que o professor deve adotar livros: “que ofereçam maiores oportunidades para o seu crescimento profissional e pessoal” (BRASIL, 2009, p. 15 [grifos do autor]). O atrelamento da formação ao uso do livro didático é um forte indício do discurso educacional

oficial de que o livro vai aprisionando o professor pelo seu mecanismo todo, como programa, ou, como Geraldi (1993) afirma, o livro vai transformando a sala de aula pela maquinaria pedagógica que vem junto com o uso do livro, ao se referir que o currículo, o encaminhamento da aula e as atitudes do professor vão incorporando gradativamente as feições às práticas pedagógicas ditadas pelo livro didático.

O uso [praticamente] exclusivo do livro didático pelos professores pode ser situado em no mínimo três tipos de discursos educacionais que selecionei como sendo: - um o dos gestores/supervisores escolares, - outro o dos próprios professores, e ainda - um terceiro que está contido nas descrições narrativas dos licenciandos em formação, presentes nos diários de bordo. Estes distintos discursos é que passo a situar para discutir a fim de compreender a natureza da relação entre professor e livro didático de Ciências, tendo como base as falas dos sujeitos de minha pesquisa.

O discurso pedagógico dos supervisores escolares traz à tona, quase que de modo denunciante, que o uso do livro se dá de modo exclusivo nas áreas de Ciências e Matemática, e de outro modo também expressa certa delação, relegando que ocorre certo descompromisso por parte dos professores da área. Esse tom denunciativo parece culpar muito o professor. Nas falas transcritas do diálogo que segue, parecem ficar claras essas feições.

Diálogo entre as Supervisoras:

(Supervisora 1, 2010): [O livro didático] Eu acho que muito, quase que exclusivamente... única e exclusivamente. É, em geral...

(Supervisora 2, 2010): ...porque Ciências e Matemática é quase que exclusivo.

(Supervisora 1, 2010): Exclusivo e... . O motivo... se vai ver com a professora, alegam falta de tempo de ir em busca, não é?... seria falta de tempo mesmo, mas eu acredito também que há um pouco de acomodação... hoje com a tecnologia e os recursos disponíveis, eu acho que o professor poderia dar um pouco mais de si ...

No discurso educacional dos licenciandos em formação na área de Ciências, fica expressivo o uso de livro didático em suas vivências como alunos. Também fica demarcado um certo descrédito na mudança em relação à situação do uso quase exclusivo do livro didático nas aulas de Ciências que a Licencianda 2 (2010) menciona: “este tema sempre será muito polêmico, acredito que, mesmo se algum dia o uso do livro didático fosse compreendido, os professores não conseguiriam retirá-lo da sala de aula porque ele está muito enraizado na cultura escolar”; “refletindo sobre o ensino de ciências pelo qual fui submetido, lembro de aulas expositivas como método de transmissão do conhecimento, o qual era consolidado com a resolução de exercícios propostos pelo livro didático adotado pelo professor, assim como por outros complementares elaborados pelo docente. [...] Lamento o

ensino de Biologia que tive no primeiro ano, o qual era regido exclusivamente pelo livro didático adotado. Inclusive as avaliações eram baseadas nas atividades propostas pelo material de apoio, sendo algumas questões cobradas nas avaliações idênticas às propostas pelo livro” (Licenciando 3, 2010).

A professora de Ciências, ao se expressar quanto ao uso do livro didático nas aulas, deixa claro o quanto no discurso educacional dos professores essa relação entre professor e livro é fortemente marcada. Ela refere o uso do livro nas atividades diárias, como fonte de conteúdo e planejamento das aulas, bem como no que ela descreve como uso do texto do livro para: “ter mais noção do conteúdo”, por certo aprofundando-o, como segue: “eu procuro assim ver a forma mais fácil, mais simplificada, dos alunos compreender, entender, eu procuro conteúdos nele que seja mais acessível, não é?, e daí eu programo minhas aulas, atividades, eu também tenho caderninho de atividades de outros livros e assim eu vou preparando minhas aulas [...]. Eu peço pra eles sempre lerem, porque eu às vezes, como eu toco assim o conteúdo, temas, folhas, quadro, eu sempre peço pra eles acompanharem o conteúdo e lendo no livro e outro dia eu cobro que tem os livros, o que eles entenderam, para ampliar o conhecimento, pra eles ter mais noção ainda do conteúdo; pra complementar eles fazem a leitura do livro, claro que os exercícios do livro a gente faz” (Professora 1, 2010).

Outro reforço ao aprisionamento docente do professor pelo livro está situado no discurso oficial que também oferece suas razões para o uso e a escolha do livro didático, como rotina e atrelado, acrescentando uma nova condição, a educação cidadã: “um LD bem

escolhido, do qual professor e aluno possam fazer um bom uso, é essencial para o

exercício da cidadania própria da ''república das letras", imprescindível para a plena conquista da outra” (BRASIL, 2010-b, p.14 [grifos nossos]).

Esses entraves, que se revelam nas falas e documentos oficiais, parecem concorrer sobremaneira para uma expropriação do trabalho docente, nas palavras tão atuais de Geraldi (1994, p. 119), que, ao se referir ao livro didático como parte concernente do currículo em ação, afirma: “é ele que imprimia direção ao processo pedagógico” e mais adiante reafirma, baseada em pesquisa e contexto da época que: “o livro didático ‘adota’ o professor e não o inverso”. A afirmação contundente de Geraldi (1993; 1994) acaba sendo, no sentido amplo da pesquisa com o livro didático no Brasil, um modo diferente de compreender a questão, recolocando-a noutra perspectiva de entendimento, não pensada até então.

Elucidando pelo campo empírico, é como bem afirma a Professora 10 (2010): “o livro [é visto] como único guia nas disciplinas”. Esta expropriação se dá de muitos modos e formas e parece bem demarcada, nas falas dos entrevistados, como se pode perceber ao fazerem referência aos motivos do uso do livro didático na aula de Ciências: “... principalmente a falta de tempo para a pesquisa de outros materiais. Há professores que trabalham até 60h” (Professora 11, 2010); “eu não compro mais revistas ou outros livros de ciências, meu salário está sendo usado somente para as despesas da casa” (Professora 12, 2010); “com certeza, pois torna mais prático, não havendo necessidade de buscar novos recursos e diferenças à aula” (Professor 14, 2010). As afirmações caracterizam um certo abandono docente, denunciam o descaso do Estado, e fazem referência a uma sensação de desmotivação que concorre para a desqualificação da aula, ao deixar de usar outras fontes no planejamento da aula. Para Ossak e Bellini (2009, p. 3), os livros “por uma série de dimensões políticas na escola (excesso de aulas, a não institucionalização de aulas práticas [...], a supremacia política dos livros didáticos como recurso exclusivo do docente entre outras), são considerados o instrumental” nas aulas de Ciências.

O uso do livro didático de algum modo desqualifica o trabalho do professor, no sentido da expropriação do trabalho docente. Essa “expropriação não se evidencia (somente) pela divisão do trabalho na escola (entre o especialista e o professor, entre os Guias Curriculares, que propõem, e o professor, que executa), mas também pelo tipo de uso feito do livro didático no currículo em ação” (GERALDI, 1994, p. 126 [grifos da autora]).

Esse uso do livro didático, que Geraldi (1994) caracteriza como parte do “currículo em ação”, está evidenciado na investigação que procedi, de tal forma que os professores afirmam que o livro didático: “o livro didático para mim é um suporte de conhecimentos e de

métodos para o ensino e serve como orientação para as atividades de produção e reprodução de conhecimentos” (Professora 11, 2010); “ele é peça diária em sala de aula”

(Professora 12, 2010); “ajuda a compreender e aprofundar o conhecimento e também sua pesquisa” (Professora 3, 2010); “o livro didático auxilia no desenvolvimento do nosso trabalho”(Professora 7, 2010); “ele é um instrumento que auxilia” (Professora 10, 2010).

Nas falas transcritas, parece ocorrer certa diversidade, que se reveste de um mesmo sentido, o livro manifestando-se intensamente na prática docente, aparelhando a aula. A autora afirma, ainda, que “o livro didático, nos diferentes usos que são feitos, ‘tem certo poder’ de, nessas classes e em muitas situações descritas, comandar o processo pedagógico” (ibid, p. 126). Esses resultados também são evidenciados em pesquisa realizada em São Paulo em que “os

professores salientam que o livro didático é utilizado como fonte bibliográfica, tanto para complementar seus próprios conhecimentos, quanto para a aprendizagem dos alunos” (MEGID-NETO; FRACALANZA, 2003, p. 148).

No mesmo sentido vão as afirmações de Krasilchik (2004, p. 27): “o estudo das Ciências naturais de forma exclusivamente livresca, sem interação direta com fenômenos naturais ou tecnológicos, deixa enorme lacuna na formação dos estudantes”. Cabe destacar que devemos ter especial atenção ao tratar desse recurso didático na formação de professores.

Em entrevista individual, uma professora afirma sem medos: “eu uso o livro, eu sou livreira” e mais adiante dá sentido ao uso do livro de modo muito peculiar, referindo que o mesmo tem “o papel de orientar o trabalho do professor” (Professora 12, 2010). Com base nas afirmações apresentadas, é possível afirmar que Geraldi (1994) está ainda tão atual. Essas dimensões que se afirmam, amarram o professor ao uso indiscriminado do livro no ensino de Ciências, na minha visão aprisionando-o ao livro fortemente. O livro é, pois, o motor do processo pedagógico.

Os próprios professores que fizeram parte da investigação, quando questionados sobre uma possível dependência que o livro poderia causar a sua prática docente, manifestaram concordância com essa suposição [a da pergunta]. Alguns afirmaram: “ o professor muitas vezes tornar-se refém do livro” (Professora 4, 2010);”acho que sim, pois o professor se habitua ao livro”(Professora 5, 2010); “há professores que seguem apenas o livro didático” (Professora 11, 2010); “acho que vai depender do professor, que o livro didático pode acomodar o professor, sim” (Professora 12, 2010); “de certa forma, alguns professores se fecham àquela rotina ...”(Professora 13, 2010); “pode tornar o professor dependente, perdendo sua identidade, tornando-se um mero divulgador de um autor ou grupo de autores” (Professor 14, 2010).

A suposta escolha consciente acaba por comandar o processo pedagógico, e o professor, refém de uma prática informada pelo livro didático, reduz a prática ao desencadeamento que o livro apresenta, seguindo-o e quiçá até utlizando-o para sua formação. Essa perspectiva do livro como espaço-tempo formativo é muito evidenciada nos discursos educacionais oficiais, especialmente expressos no PNLD. Tomo esta ligação para analisar como a prática (sobremaneira atrelada ao livro didático) e a formação estão contribuindo na relação de aprisionamento do professor pelo livro e ao mesmo tempo tentando apreender na formação docente um caminho possível de enfrentamento a essa relação, que é de ordem

perversa, na minha forma de enxergar a questão. A partir dessa análise acredito que fica mais deliberadamente clara a tese que estou defendendo e está planificada ao longo da investigação em distintos momentos da escrita: existe uma relação de aprisionamento do professor de Ciências pelo livro didático e a formação, pela via reflexiva, torna-se um caminho possível para o enfrentamento dessa relação.