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A reflexão, o esclarecimento e a adultez

3. CAPÍTULO 3 RACIONALIDADE ANARQUISTA E ESCLARECIMENTO

3.3. ESCLARECIMENTO (“E"NLIGHTENMENT) ANARQUISTA E PERCURSO

3.3.3. A reflexão, o esclarecimento e a adultez

Vários autores nos alertam que a reflexão tem sido um tema de grande importância para a filosofia, tanto no que concerne à própria definição de filosofia, quando dizem que ela é essencialmente um “exercício de reflexão”, quanto como meio ou instrumento filosófico para o alcance de algum fim que se estenda para além da exclusiva resolução de algum problema prático, como também por se tornar em si um objeto bem delineado de pesquisa filosófica, tal qual a epistemologia o fez (cf. Kornblith, 1988). Dito isso, é óbvio que não iremos esgotar o tema e ele só será tratado de modo muito específico para os propósitos que temos. Ao longo da história,

adveio uma série de noções e esforços para definir o termo reflexão, tornando-o, na medida em que foi aprofundado, também mais díssono entre filósofos. Nesse sentido, o termo aqui será compreendido de modo muito compartilhado entre grande número de filósofos, a saber:

Aqui, a reflexão é entendida como uma performance, uma atividade na qual a pessoa examina a evidência, o conteúdo e a confiabilidade de suas próprias crenças. Esse desempenho pode levar a resultados diferentes…(Silva Filho e Rocha, 2017, p. 2, trad. nossa).

Diferentes, ao que entendemos, significa epistemicamente distintos, embora isso não seja tão relevante para o valor e o papel da reflexão (Silva Filho e Rocha, 2017, p. 6) se por tal é exigido como resultado crenças verdadeiras. Posto o sentido do termo reflexão para grande número de filósofos e sendo ele o ponto de onde se partirá, importa agora indicar qual o papel da reflexão na infraestrutura protoanarquista e na noção de EA e, logo, como ela contribui para a própria composição (essência) do diálogo na epistemologia anarquista.

Sob esse viés, antes cabe lembrar que: a) a definição de EA se aproxima daquilo que Amelie Rorty (2005) chamou de enlightenment tardio e que permitirá, em certo sentido, a concretização da autonomia intelectual; b) anteriormente, foi feita uma aproximação entre Kant e Feyerabend a partir do conceito de esclarecimento, de maneira a ressaltar nesse conceito um contrapeso às pressões de qualquer tipo de perspectiva monista (tradição epistêmica, metodológica, cultural, ontológica, etc.) e em especial aquelas que se pensem superiores a priori ou a posteriori; c) assumindo que “a” e “b” não perdem de vista a resolução de um problema específico, que Feyerabend chama de relação entre teoria e prática, ele também se foca na escolha e formação de uma crença (e. g., “Por que devo crer no geocentrismo ou no heliocentrismo?”); logo, o EA inevitavelmente pretende nos responsabilizar e

adultizar sobre essas escolhas epistêmicas que fizemos, fazemos e faremos, alertando-

nos acerca dos perigos de nos mantermos naquilo que Kant (1784) chamava de imaturidade autoinfligida e que Feyerabend compreendia como um processo de

infantilização do adulto (Feyerabend, 1999, p. 211) promovido pelas diversas escolas

de pensamento e pelas tradições; e, por fim, d) a responsabilidade epistêmica está inteiramente atrelada ao esforço de reflexão empregado, pois que, na adultez do

indivíduo, é suposto um estado de atribuição de responsabilidade dado que se espera de um adulto o pensamento/reflexão (do tipo auto-nomos) antes da ação.

Como disse Bonjour (1985) sobre a responsabilidade epistêmica: “Aceitar uma crença na ausência de razão, por mais atraente ou mesmo obrigatória que tal aceitação possa ser de algum outro ponto de vista, é negligenciar a busca da verdade. Tal aceitação é, digamos, epistemicamente irresponsável. Meu argumento aqui é que a idéia de evitar tal irresponsabilidade, de ser epistemicamente responsável em suas crenças, é o núcleo da noção de justificação epistêmica” (1985, p. 8, trad. nossa). Obviamente, esta noção de responsabilidade, junto com a de Elgin, ligada à justificação e suas consequências para a noção de reflexão será que: se a reflexão é uma ação deliberada e aceitar uma crença sem razão e sem reflexão é irresponsável, então, saber quando temos uma boa razão e fizemos uma boa reflexão parece ainda ser uma pergunta importante. Um caminho inicial possível, em acordo com o EA, é o rompimento com a influência de nossa tradição na medida em que a identificamos e consideramos que o assunto merece tal gasto de energia.

Deste modo, a valorização da reflexão e da responsabilização epistêmica não significa que a todo instante se deva revisar todas as crenças adquiridas ou mesmo que seja preciso revisitar todas as que parecem duvidosas e nem mesmo implica que o fato de refletir causará a aquisição de um sistema de formação e de escolha de crenças melhor e com alto grau de justificação e, logo, responsável integralmente pelas crenças que decidiu formar com o maior cuidado.

Assumir esses pressupostos seria assumir a ideia de que possuímos uma racionalidade iluminada, objetiva, transparente e que, durante o processo de formação/escolha de crenças (supondo que escolhemos algumas, mas não todas), um sujeito está em condições de avaliar e sopesar todos os aspectos que envolvem a crença X e mesmo que estamos sempre em condições de dar a cada aspecto ou item, sobre o qual lançamos atenção, um valor objetivo para compor um sistema que levará, por fim, a uma crença racional X. Essa seria, pois, uma associação entre racional e autonomia com a qual não concordamos.

De modo mínimo, ainda assim indispensável, pode-se dizer que a reflexão está no anarquismo para garantir que não se precise revisitar todas as crenças, nem mesmo

todas as crenças duvidosas de que se tem ciência (de fato, ignoramo-las o tempo todo), ou tampouco para que se possa responsabilizar e/ou culpar, de maneira completa (comparável ao que se faria com o Sr. Spock), um sujeito sobre um determinado resultado de uma crença que ele mesmo considerou como tendo sido uma crença refletida.

Trazemos para nossas crenças atuais e observadas não apenas elementos de que se tem ciência e sobre as quais se supõe possuir clareza no presente (água é H2O e não XYZ), mas também aspectos e itens com variados graus de clareza e de obscuridade que se conectam de algum modo com tal crença.

Claro que quanto mais alguém ignora algo que ele mesmo acredita que deveria incluir e valorizar, tanto mais aumenta sua irresponsabilidade epistêmica (talvez fosse isso que queria dizer Bonjour) e, nesse viés, a responsabilidade torna-se, parcialmente, um aspecto internista (uma vez que nem sempre é possível identificar a falha epistêmica e cognitiva do sujeito), mas, por outro lado, também externalista, pois não pode ignorar o devido peso da efetiva disponibilidade de razões epistêmicas externas ofertadas num contexto e numa circunstância X para poder justificar a crença e a ação intelectual adulta-responsável (ex.: a resposta para a pergunta "está chovendo agora?” poderá, caso alguém queira sair de casa sem guarda-chuva, requerer olhar pela janela, numa casa com janelas e sem outras comunicações, e não fazer isso parece ser algo irresponsável epistemicamente).

Não obstante tudo isso, a exigência da reflexão permanece, pois ela é um meio valioso para que gradualmente os sujeitos se independentizem e sejam responsáveis sobre suas decisões epistêmicas perante si mesmos, a sociedade e o mundo. Dito de outro modo, a reflexão no anarquismo pede a ligação com o crescimento intelectual (aprendizado) e, assim, com a busca pelo EA ainda que o estado atual do sujeito seja um entendimento (understanding) incompleto, limitado e até parcialmente incoerente com outros sistemas de crenças que possuímos.

Essa perspectiva parece se opor a outras que acreditam ser o resultado final (ex.: um bom café feito por uma máquina ruim) suficiente para igualar, mesmo naquele exato momento da saída do café, as duas máquinas (a que tem fama de fazer bons cafés àquela que não o tem porque não faz)!

A mesma coisa, no que diz respeito ao valor da reflexão, ocorre, por exemplo, quando alguém S (cientista) pede para S’ (não-cientista) acreditar em X e/ou fazê-lo (a usina nuclear ao lado de sua casa deve ser desejada), e, então, quando S’ acredita em X e/ou o faz, parece não haver valor no mero resultado materialista, mesmo que tudo tenha saído como desejado por S e por S'.

Em resumo, a reflexão possui, na economia da epistemologia anarquista, um valor em si não porque ele garanta a verdade (poderia levar também à falsidade), a coisa em si, etc., mas porque alimenta a busca pela adultez (para se usar um termo mais anarquista), na medida em que responsabiliza epistemicamente os indivíduos perante o outro, bem como perante si mesmo e o mundo, além de também alimentar a busca pela “melhor resposta” do “melhor mundo possível” nas circunstâncias, no tempo e no contexto específicos.

4. CAPÍTULO 4 - AUTONOMIA NO ANARQUISMO, NA EDUCAÇÃO E NO