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1. CAPÍTULO 1 O DEBATE ACERCA DO OBJETIVO DO ENSINO DAS CI-

2.2. O ANARQUISMO: CONCEPÇÃO INGÊNUA E ALTERNATIVAS

2.2.4. O protoanarquismo como metaprincípio e como base para uma racionalidade

2.2.4.2.1. Razão e prática no anarquismo

Referindo-se ao aspecto contextual e prático da racionalidade feyerabendiana, Farrell (2003) escreve que a noção de racional nesse autor assemelha-se à análise das virtudes morais de Aristóteles (a qual buscaria uma mediania) e que o faz através da “correspondência às demandas peculiares das situações particulares que requerem deliberação racional" (p. 210, trad. nossa), ou seja, haveria, no filósofo austríaco, uma ponderação quanto aos diversos elementos que exigem de alguém uma solução, e isso pode facilmente incluir emotividade, desejos, necessidades, equacionamento de prós e contras, etc. Isso pode ser aplicado ao caso histórico de Semmelweis e a febre puerperal e os verdadeiros motivos dos cientistas da época terem rejeitado as propostas de Semmelweis (Oliveira e Fernandez, 2007). Não ao acaso, Lloyd (1996) defendeu que, devido a uma revisão da ideia de que Pierce considerava inevitável a convergência para uma só verdade (1996, p. 256), além de outros aspectos similares entre Pierce e Feyerabend ou ainda entre Feyerabend e Dewey (Cunha, 2015), não seria estranho defender algum aspecto de pragmatismo na filosofia de Feyerabend (1996, p. 253).

Sobre essa preocupação com um contexto prático, um exemplo trazido por Feyerabend é o caso Galileu. Em descrições (anotações diárias feitas pelo próprio Galileu) sobre seu processo de conversão do geocentrismo ao heliocentrismo e deste à própria história que mostra a descoberta e a justificação de novas hipóteses sobre o heliocentrismo, Galileu já expunha, segundo Feyerabend, a complexidade que envolve a ciência, a justificação de suas teses, a mudança ontológica e semântica e a racionalidade que rodeia um processo complexo como esse, principalmente quando há implicações diretas e sobre a vida de não-cientistas. Mais que isso, segundo o austríaco, a noção de razão objetiva promulgada largamente pelos critérios racionalistas para mudanças seria incapaz de lançar luz sobre tal processo e mesmo de promover os câmbios necessários ao progresso (Feyerabend, 2007). Assim, dentre os

motivos, podem ser elencadas as recorrentes e ainda atuais tentativas de separar os contextos de descoberta e de justificação, sobre o que Feyerabend afirmou:

Portanto, as atividades que, segundo Feigl, pertencem ao contexto da descoberta não são apenas diferentes do que os filósofos dizem a respeito da justificação, mas estão em conflito com ela. A prática científica não contém dois contextos movendo-se lado a lado; ela é uma complicada mistura de procedimentos... (Feyerabend, 2007, p. 209).

Em síntese, Galileu é um caso exemplar de como não é possível encaixar a racionalidade e a justificação transcorrida na investigação científica dele dentro da teoria lakatosiana de programas de pesquisa ou mesmo no conjunto de fases kuhnianas (pré-ciência, ciência normal, revolução, etc.), e, logo, em apoio a uma separação entre história interna e externa (Feyerabend, 1975b).

Esse desacordo anarquista destaca um isolamento não só da história, como também de uma proposta de investigação lógica do conhecimento científico que tende a distanciar o “problema lógico da relação existente entre a teoria e as provas, e o problema prático relativo àquilo que deve ser considerado como prova” (Feyerabend, 2008b, p. 71). Trata-se, pois, de uma separação que mostra ser, além de uma má compreensão de parte da filosofia sobre o processo de produção do conhecimento científico, um fruto, também, da ideia de que a filosofia e a ciência estão em polos longínquos (obviamente reforçado pelo item anterior). Disso, surge a desconfiança anarquista “da possibilidade de regular o conhecimento de longe, com a ajuda de princípios e modelos abstratos”, com a separação e até a submissão dos aspectos internos e externos auxiliadas por logicismos, racionalismos, conceitualismos, empiricismos e, assim:

Esta é a razão pela qual procurei demonstrar que nem sempre a prática da ciência podia estar encarcerada em conceitos gerais, a não ser de um modo vago e superficial. Até a ciência, que está plena de estereótipos e bastante afastada da vida cotidiana dos seres humanos, vai além do alcance dos princípios e dos métodos filosóficos (Feyerabend, 2008b, p. 74).

É claro que o afastamento mencionado não é o da ciência em si acerca da vida cotidiana, e Feyerabend sabe disso, a questão é que há um tentativa de afastar o conhecimento e seu processo da compreensão dos outsiders da ciência e, logo, também de qualquer mediação com outras áreas. De fato, porém, é inegável que uma

filosofia que se pretenda monista está invariavelmente afastada do que foi chamado por Boaventura (2008) de ciência pós-moderna e que a ciência moderna se afastou dessas interações a que uma racionalidade protoanarquista considera relevantes, por incluírem no debate os itens: multicultural, responsável e epistemicamente progressiva.

Diante do exposto, é possível destacar que os ataques de Feyerabend aos atributos do racionalismo ajudam numa expectativa de extração de sua concepção de racionalidade fundada na atitude protoanarquista, permitindo, com isso, perceber sua aversão a uma “lealdade permanente” (Feyerabend, 1977, p. 292-3) para com uma tradição, uma realidade, uma instituição, uma metodologia, bem como uma preocupação com uma aderência a tradições do tipo monolítica e universalista, pois que elas são exatamente as exceções mencionadas no início do texto quanto à consequência da atitude protoanárquica.

E o motivo, também já explicado, é que tradições do tipo monolítico possuem tendência reducionista epistêmica, metodológica, cultural e ontológica. As consequências imediatas são o empobrecimento do Ser, a limitação precoce dos processos e dos resultados epistêmicos, além de contribuir para infelicidade dos indivíduos. Einstein, na condição de um oportunista inescrupuloso, já sabia desses malefícios (Feyerabend, 2007).

Todavia, se, por um lado, são encontrados alguns aspectos que indiquem talvez uma noção de como Feyerabend entende que funcionaria a ciência dentro das situações concretas através dos casos na história não-racionalista das ciências, por outro lado, parece já nesse momento condizente com sua filosofia conformar-se com a ausência de uma definição objetiva, mecânica, positiva e direta de racionalidade, pois que fazer isso seria precisamente encerrar-se em modelos limitadores e, logo, seria fazê-lo cair na própria crítica.

Dito de outro modo, estabelecer uma racionalidade direta-positiva para Feyerabend seria promover um padrão de solução fora das situações concretas de problemas do cotidiano da ciência, antes mesmo de saber qual será o problema, e, assim, limitando as pessoas a uma só cosmologia, metodologia, epistemologia, bem como a uma só definição de felicidade, ao contrário, “minha preocupação não é nem a

racionalidade, nem a ciência […] e sim a qualidade das vidas dos indivíduos” (Feyerabend, 2010, p. 25). Consequentemente, um elemento aditivo para compreender uma razão anarquista surge nas motivações originadoras dos escritos de Feyerabend, como explicitamos com a noção de protoanarquismo. Adicionalmente, em Adeus à Razão (2010), Feyerabend tenta mostrar que sua busca não é pela monotonia metodológica, epistêmica, de formas de vida e de mundo, sendo esse o motivo para abandonar a “R”azão tradicional da filosofia que acabou influenciando cientistas (afinal, eles também passam por universidades e por seus intelectuais. Cientistas não brotam do chão e nem descem do céu!):

Alguns pensadores [...] disseram adeus à razão e substituíram-na por uma caricatura; sendo incapazes de esquecer a tradição (e não sendo contrários a um pouco de relações públicas), continuaram a chamar essa caricatura de razão (ou Razão, com ‘R’ maiúsculo, para usar minha própria terminologia) (Feyerabend, 2010, p. 25).

Tudo que ele [o Racionalismo] faz agora é emprestar categoria ao impulso geral na direção da monotonia. É hora de desprender a Razão desse impulso e, como ela já ficou totalmente comprometida pela associação, dar-lhe adeus (Feyerabend, 2010, p. 20-1).

Dessa maneira, uma racionalidade com fins de universalização e que se baseia no

princípio do cosmos ordenado (entre outros princípios) estaria assumindo uma

posição que, para Feyerabend, limitaria desnecessariamente toda a potencialidade/ riqueza do Ser, pois “descobrimos que não há nada na natureza da ciência [ou da

racionalidade] que exclua a variedade cultural” (Feyerabend, 2010, p. 20, colchetes

nossos) e, menos ainda, um empobrecimento (reducionismo) ontológico.

Se uma lupa é colocada sobre a ciência ou sobre a razão (Feyerabend, 2007), é compreensível como, para seu progresso, a adoção de uma atitude protoanarquista surge de forma natural, visto que engendra uma violação da concepção de universalidade de uns parcos princípios e de objetividade que, por si só, já garante um terreno para o plantio da variedade, da pluralidade e do multiculturalismo de elementos e de perspectivas tão favoráveis ao florescimento da árvore da ciência e, principalmente, da vida das culturas e dos indivíduos.

Desse modo, uma concepção não-única de história confirma como “desenvolvimentos [a exemplo dos] que precederam a descoberta da estrutura do DNA” são úteis, pois "mostram que a ideia de uma ciência que caminha graças à

argumentação logicamente rigorosa nada mais é que um sonho” (2010, p. 17), dado que “[a]s condições externas que são postas para [cientistas] pelos fatos da experiência não permitem deixá-lo restringir demasiado na construção de seu mundo conceitual” (Einstein apud Feyerabend, 1993, p. 10, trad. nossa).