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Aproximações entre enlightenment tardio (esclarecimento tardio) e filosofia

3. CAPÍTULO 3 RACIONALIDADE ANARQUISTA E ESCLARECIMENTO

3.3. ESCLARECIMENTO (“E"NLIGHTENMENT) ANARQUISTA E PERCURSO

3.3.1. Pressupostos históricos do Iluminismo (Enlightenment)

3.3.1.1. Aproximações entre enlightenment tardio (esclarecimento tardio) e filosofia

A afirmação de Waldron (2005), em muitos aspectos, quando reclama de limitações ou de bloqueios prévios idiossincráticos em nome da decência, da ordem,

da moral ou da autoridade (de pessoa ou tradição), possui um forte tom

protoanarquista e, por isso, entre outras coisas, dá apoio à tarefa de incluir, na filosofia anarquista, a noção de esclarecimento para, com isso, fortalecer os argumentos e a tese sobre qual seja o objetivo do ensino das ciências e de uma educação geral desde a ótica anarquista. Obviamente, tal inclusão pode ser que acabe não tendo ampla aceitação entre todos os feyerabendianos, mas é importante ressaltar que dada a linha de esclarecimento que usamos, trata-se ao menos de uma leitura anarquista possível.

O próprio Feyerabend (1993), ao se utilizar do livro On Liberty, de Stuart Mill, nos alerta sobre como formas interessantes de debates são, com o tempo, remodeladas ou mal-interpretadas e se tornam bases para a opressão e o empobrecimento intelectual. O movimento enlightenment, nesse sentido, é passível de ser um exemplo do caso relacionado à Feyerabend em função desse termo ter sido empobrecido e ensinado basicamente sobre a linha enciclopedista.

Assim, sob a ótica do esclarecimento tardio, não somente uma porção maior de filósofos podem ser incluídos como filósofos do esclarecimento, mas também um recorte maior da e na história da filosofia passa a ser abarcado por essa concepção, principalmente quando esses filósofos estão abordando temas educacionais relacionados às suas visões filosóficas.

Kant é um desses filósofos em que é possível encontrar uma perspectiva de esclarecimento tardio (não-tradicional), segundo o qual sua maior preocupação não repousaria sobre o desejo de um mundo dominado pela perspectiva científica, tecnológica, religiosa ou qualquer outra, mas sim basicamente sobre o desejo de busca pelo desenvolvimento da própria maioridade intelectual (a qual está a priori ao alcance de todos, por ser natural ao ser humano) . 31

Cf. em: KANT, I (1784). Resposta à pergunta: que é o iluminismo? In: A paz perpétua e outros

Assim, justamente no sentido dito, embora o próprio Kant tenha se impressionado com a “nova ciência” newtoniana e com isso pudesse ter conduzido as consequências dessa noção de esclarecimento a uma identificação com a ciência ou mesmo que pudesse ter defendido uma educação inicial para crianças e jovens pautada no catolicismo (Kant apud Herman, 2005, p. 255), ele também acabou em parte sendo vitimado por algumas ideias predominantes de seu tempo, o que não elimina as contribuições feitas ao termo quando o associou à maturidade intelectual.

Dessa forma, com maior força, é preciso lembrar outros aspectos, como a lição ensinada pelo autor das Críticas acerca da oposição a qualquer pretensão de tutela, seja ela de um especialista (cientista ou outro), seja de um líder religioso ou mesmo de um livro e, logo, a lição de insurgência contra ações, filosofias ou epistemologias que distanciem o sujeito do desenvolvimento de adultez crítica e reflexiva (Kant, 1784).

Dito de outro modo, a ideia kantiana de que o homem deve se atrever a confiar no próprio entendimento (Kant, 1784) (neste caso, enquanto faculdade da mente,

understand) constitui um ponto de contato com a ideia exposta sobre um

protoanarquismo e sobre uma educação anarquista. Naturalmente, a recomendação kantiana acima tange ao “comportamento”, como destacado por Elgin (2013, p. 140), pois uma mesma pessoa tanto pode agir tanto de um modo autônomo e esclarecido quanto heterônomo e não-esclarecido (ainda que não num mesmo momento, nem na mesma circunstância e sobre um mesmo conteúdo). Com efeito, agregaremos a interpretação de Elgin (2013) sobre a sugestão de ousadia kantiana (sapere aude) direcionado ao “comportamento” à ideia de necessidade (dever) de romper com a imaturidade para formar, de fato, homens que quando agem dentro destes parâmetros são maduros. Algo mais deve ser acrescido quanto a esta condição circunstancial e comportamental, a saber, não há agentes autônomos, racionais, livres e esclarecidos cem por cento do tempo, mas sim que por diversos motivos se comportaram, numa dada ocasião, dentro destes aspectos. Obviamente, por si só tais momentos se tornam referência para os demais, porém, concordando com a leitura de Elgin (2013) sobre o esclarecimento kantiano nós também não pensamos que seja realizável a formação de uma pessoa esclarecida (incapaz de agir de modo contrário).

Deste modo, cabe antecipar que, no que concerne a uma noção de esclarecimento

tardio de viés anarquista, isso não significa que só seremos autônomos, livres e

esclarecidos quando rompermos completamente com a imaturidade. Isso conduziria não só a uma conclusão de que há raros homens emancipados e intelectualmente maduros, mas também a uma possibilidade de que de fato não haja tais homens.

A epistemologia de Feyerabend coaduna-se com os objetivos contidos na noção de esclarecimento tardio e um exemplo disso ocorre quando, cita Kant para ironizar como numa sociedade dominada por especialistas, talvez se chegue ao ponto de nem mesmo um sujeito poder fazer certas asserções sem que alguém lhe recorde de que ele só poderia dizer algo se possuísse formação acadêmica específica (Feyerabend, 2010; 1993). O motivo principal para o apoio anarquista ao esclarecimento tardio é a capacidade que uma noção assim tem de motivar uma liberdade com relação a cosmologias e tradições, ou seja, de promover uma proliferação de alternativas com o propósito (não único) de enriquecimento do Ser nas mais variadas dimensões possíveis (epistêmicas, sociais, morais, etc.).

Essa era, por exemplo, a noção subjacente de Stuart Mill acerca da liberdade abraçada por Feyerabend e aplicada na epistemologia, ou seja, a noção de uma liberdade que estimulasse a proliferação de alternativas baseada na diversidade e numa proposta educacional “multicultural” de Mill (Anderson, 2005, p. 337), sendo esse o esclarecimento da democracia almejada por esse autor, a saber, algo voltado para a prevenção contra a formação de indivíduos crédulos e potenciais vítimas de charlatões (Anderson, 2005, p. 336).

A razão, para Mill, é a raridade de programas de formação de indivíduos culturalmente abertos ou como disse El-Hani e Mortimer (2007) “culturalmente sensível”, pois que supostamente algumas culturas até podem ser menos bem sucedidas à nossa cultura ocidental se tomadas certos aspectos (seja lá o que isso signifique), mas aquelas também podem ser superiores sob outros (Anderson, 2005, p. 337. Cf. também Feyerabend, 1999, p. 224). Com isso, há muitas vantagens (epistêmicas, metodológicas, culturais e ontológicas) para qualquer tradição que busque aproximar-se de outras tradições, desde que tenha em mente o enriquecimento

das muitas dimensões que uma tal troca aberta comporta. Assim, diz Feyerabend (2007; 2011) sobre essas trocas ou esses intercâmbios, a começar pela troca guiada:

Todos os participantes adotam uma tradição bem especificada e aceitam apenas aquelas respostas que correspondem a seus padrões. Se um dos lados ainda não se tornou um participante da tradição escolhida, será atormentado, persuadido, "educado" até que o faça. […]. Uma troca aberta, em contrapartida, é guiada por uma filosofia pragmática. A tradição adotada pelas partes envolvidas não é especificada no início e desenvolve-se à medida que a troca prossegue. […]. Uma troca aberta respeita o parceiro […], ao passo que uma troca racional [guiada] promete respeito somente na estrutura conceitual de um debate racional. Uma troca aberta não dispõe de um órganon, embora possa inventar um; não há uma lógica, embora novas formas de lógica possam surgir em seu curso. Uma troca aberta estabelece ligações entre tradições diferentes e transcende o relativismo dos pontos iii e iv [protagórico]. Contudo, transcende-o de um modo que não pode ser tornado objetivo, mas que depende, de maneira imprevisível, das condições (históricas, psicológicas, materiais) em que ocorre (2007, p. 305-06; 2011, p. 38-9, colchetes nossos).

Com efeito, a mesma ideia acerca da sociedade, conforme nos alerta Feyerabend, está presente no argumento de Montaigne quanto ao “enlightenment”, segundo o qual um estudo de culturas selvagens, dentro do que Feyerabend chama troca aberta, pode fornecer para nós, tanto como espécie quanto como sociedade ocidental (Feyerabend, 1999, p. 224), um enriquecimento porque há o que aprender se houver interesse.

Obviamente, ainda que, para Montaigne, sua ideia de cultura selvagem se restrinja apenas a tradições não-europeias ocidentais e a povos indígenas (do tipo índios brasileiros e possíveis canibais) , dado o ano em que ele viveu (1533-1592) e 32

o local que tinha em mente como referência quando escreveu Dos Canibais, é possível também pensar em conceitos mais amplos de “selvagem”, identificando o termo com a ideia de “bárbaro” em sentido histórico-cultural (significando, de modo genérico, tradição diversa da "minha"). Em face disso, as preocupações de Montaigne, Feyerabend e Mill se harmonizariam em torno de uma educação plural (ou para usar um termo mais combatido multicultural) conduzida por trocas de valores importantes que cada tradição contém. Sobre essa relação tensionada entre a importância dos valores epistêmicos e das culturas diversas, Feyerabend alerta:

Cf. LESTRINGANT, Frank. O Brasil de Montaigne. Rev. Antropol. [online]. 2006. Acessado em: 01

32

Muitos debates continuam mesmo depois de os envolvidos terem recebido toda a informação disponível e terem começado a argumentar da mesma maneira. As tensões que permanecem são tensões entre valores, não entre o bem e o mal ou entre informação completa e insuficiente […] e não entre razão e irracionalidade (embora os valores defendidos sejam muitas vezes considerados

partes da razão). Existem, essencialmente, três maneiras de resolver

essas tensões: poder, teoria e um intercâmbio aberto entre os grupos em colisão (Feyerabend, 2010, p. 34, colchetes e itálico nossos). Essas relações e esses valores se enriquecem quando mediados por uma abordagem que os perceba e, por isso, esse parece ser o caso do esclarecimento tardio. Desse modo, parece ser não somente possível como também frutífero compreender a maneira com que o termo enlightenment se amplia e foge a categorias significativas unidimensionais do viés tradicional, propiciando, a partir da versão tardia, novos aportes para si e para a relação com diversos filósofos e/ou correntes que fizeram uso de seus princípios. A partir dessa expansão, finalmente, torna-se viável desenvolver o tópico do esclarecimento anarquista, relacionando-o à versão da racionalidade feyerabendiana nutrida pelo protoanarquismo e relativismo cosmológico já trabalhado.