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O autoritarismo pseudoargumentativo da ciência e a concepção de natureza da

4. CAPÍTULO 4 AUTONOMIA NO ANARQUISMO, NA EDUCAÇÃO E NO

4.2. UMA ABORDAGEM ANARQUISTA DA RELAÇÃO ENTRE CIÊNCIA, SO-

4.2.1. O autoritarismo pseudoargumentativo da ciência e a concepção de natureza da

A ciência, como sabemos, tem uma estima social elevada, e há inúmeros bons motivos para que a humanidade agradeça pela sua existência e pelo seu desenvolvi- mento. Como modo de reconhecimento desses logros, a sociedade ocidental permitiu que a ciência ocupasse alguns de seus espaços, inclusive espaços educacionais.

Rapidamente, porém, pelo uso de meios diversificados e até pseudoargumenta- tivos e multiculturais, a ciência ocidental obteve um prestígio e uma influência cada vez maiores dentro de inúmeras esferas sociais e, como não poderia ser diferente, também nas escolas. Um exemplo de argumento comum usado para permitir essa ocupação foi o da recorrência às “vitórias” passadas. Feyerabend, em diversas passa- gens, chama-o de argumento do congelamento do processo histórico (2007, p. 33-34), em função do modo como tais vitórias foram contadas, somando-o ao argumento de

recorrência ao sucesso, isto é, mostrando as vitórias principalmente como resultados

certos, uma “retórica de conclusões” (Cobern, 2000), e não enquanto processos. Um exemplo claro é visto no modo como o caso Galileu é ensinado e em geral lido, ou

seja, como um herói injustiçado pela Igreja ou mesmo o caso do médico Semmelweis via a narrativa positivista de Carl Hempel para explicar tanto a vitória de Semmelweis na pesquisa sobre a febre puerperal quanto as injustiças sofridas por ele no caminho do êxito indubitável (Hempel, 1974) que todo cientista e a ciência em si acabam al- cançando.

Com esta observação, é cabível dizer que não pretendemos levantar suspeitas sobre o fato de que há logros na ciência. Queremos apenas recorrer a uma abordagem anarquista para afirmar que a maneira de utilizar tais logros na argumentação para ca- sos futuros e presentes, a fim de garantir uma certa imagem da ciência, interfere não só no modo como a ciência vai ser refletida pela sociedade, isto é, ocupando o centro gravitacional do consciente social (Weinert, 2005, p. 5; Feyerabend, 2011, p. 100), como também limita as condições para refletir autonomamente sobre seus argumen- tos, suas hipóteses e suas teorias.

Dessa maneira, essa abordagem inadequada tende a influir na própria concepção da natureza da ciência e na capacidade intelectual individual que temos para a autodi- reção. Dito isso, vale a pena olhar a maneira como, em geral, tal argumento de recor-

rência ao sucesso é construído pelos autores contemporâneos e como associam a con-

cordância necessária com a ciência a um exemplo de racionalidade (o que limita des- de o princípio as possibilidades de autodireção em sentido oposto ao da ciência):

Mas o que Cobern mostrou não foi que um caso, para os méritos epistêmicos da ciência, não possa ser convincentemente produzido. Em vez disso, o que ele mostrou foi que o “empirismo radical” não pode construir um tal caso. Uma vez que quase ninguém é um empi- rista radical nestes nossos dias, essa conclusão é de interesse limita- do. Há, porém, muitas considerações dos méritos racionais da ciên- cia que não procedem de pressuposições empiristas radicais. Al- guém poderia defender, por exemplo, que é racional adotar as “pri- meiras premissas” da ciência porque as descobertas de tal ciência têm sido confiáveis [trustworthy] e frutíferas (levando a curas de doenças, viagens no espaço, etc.) (Smith e Siegel, 2004, p. 571-2, colchetes e trad. nossa).

De modo refinado, Smith e Siegel (2004) defendem o que alguém poderia defi- nir como os motivos lógicos e racionais para se adotar, por princípio, a confiabilidade das afirmações científicas, a saber, a confiabilidade e a frutificação que a ciência de- tém, para além de qualquer outra tradição. A justificativa deles é a de que até hoje a

como exemplos as curas de doenças, o sucesso de viagens espaciais e outros. Note-se que tal argumento é muito similar ao petitio principii, mas a ideia de congelamento do processo histórico e de sucesso vai além do âmbito lógico (área do petitio), porque, para a noção anarquista de congelamento e sucesso, além do aspecto lógico, tais con- temporâneos se esqueceram de uma análise mais próxima e completa dos casos histó- ricos utilizados como argumento, tendo esses contemporâneos utilizado critérios ava- liativos de teorias não tão universais como supunham. Assim, é dito por Feyerabend que:

Uma teoria empírica como a mecânica quântica ou uma prática pseudo-empírica como a medicina científica moderna com seus an- tecedentes materialistas podem, é claro, indicar numerosas conquis- tas, mas qualquer concepção, qualquer prática que tenha existido por algum tempo tem conquistas. A questão é de quem são as me- lhores ou mais importantes conquistas, e essa questão não pode ser respondida, pois não há alternativas realísticas que possam fornecer um ponto de comparação. Uma invenção maravilhosa transformou- se em um fóssil (Feyerabend, 2007, p. 59).

A ideia expressa de que não há alternativas realísticas capazes de fornecer um

ponto de comparação não deve ser lida como a adoção de ausência total de critérios

avaliativos sobre o sucesso ou o fracasso ou ainda de ausência de fundamentação epistêmica para fornecer algum critério avaliativo acerca das teorias, sobretudo por- que Feyerabend assume que, na ciência, também há conquistas justificadas epistemi- camente (mesmo que num sentido distinto de justificação racionalista).

Em vez disso, a supramencionada expressão cobra tanto a nossa necessária atenção para teorias e seus pressupostos epistêmicos utilizados diante da coletividade a que diretamente afetam (exigindo o escrutínio daquelas que consideramos ter maior impacto em nossas vidas) quanto uma conscientização de que teorias e seus pressu- postos epistêmicos possuem uma metafísica e compromissos próprios (como interes- ses e entes de uma cosmologia específica). Tais compromissos podem inviabilizar que indivíduos não-participantes de sua prática (no caso, observadores) ganhem igual es- paço no diálogo e, com isso, limitem a presença de outras cosmologias antes mesmo que estas ingressem no debate. Um exemplo disso é dado no Ciência em uma socie-

dade livre (2011), no qual Feyerabend pergunta a Kuhn se, para ele atacar a feitiçaria,

mente, “repete boatos racionalistas sem ter examinado sua validade” (2011, p. 240). Dito de outro modo, teria Kuhn sido intelectualmente heterônomo nesta questão? Para Feyerabend, sim.

Com isso, seria aceitável que surgisse a crítica de que Feyerabend abriu espaço para validar a astrologia, o curandeirismo ou a feitiçaria? De fato, esta é uma implica- ção. Contudo, isso tampouco significaria dizer que tudo o que se diga nessas tradições é epistemicamente válido ou que elas devam ser estendidas para todas as sociedades e nem por toda a sociedade em que se encontram. Do mesmo modo, deve-se cuidar com a ciência, de maneira a evitar o desenvolvimento de uma heteronomia intelectual via uma disfarçada coerção apoiada pela ideia de empiria e racionalidade.

A fim de legitimarem suas propostas, todas as tradições devem estar submetidas ao mesmo rigor e alimentadas com as mesmas condições de desenvolvimento para serem submetidas ao debate aberto por pessoas educadas em prol de autonomia inte- lectual, pessoas não submissas a hierarquias epistêmicas e capazes de avaliar crenças herdadas e, se for preciso, contrariá-las (Feyerabend, 1999), enfim, pessoas capazes de se autodirigir (Zagzebski, 2013) frente ao seu lugar no coletivo (Code, 1984).

Mas não é isso que vem ocorrendo, e a citação acima o afirma. A ideia que não se deve perder de vista está em relembrar que os pressupostos basilares da ciência (e.g.: ceticismo não-seletivo, não-autoritarismo, responsabilismo cultural e epistêmi- co, etc.) por natureza não recomendariam, enquanto um princípio epistêmico, metafí- sico e nem moral, a explícita adoção das “primeiras premissas” de uma tradição, como foi sugerido por Smith e Siegel (2004). Menos ainda, os pressupostos basilares diriam que tal recomendação é racional ou razoável, pois que com isso se perde desde o início um dos mais caros pressupostos científicos notados já com Descartes, a saber, a necessidade de ceticismo na construção de qualquer proposta epistêmica e que só se alcança via o exercício de autogoverno (Zagzebski, 2013). Como modelo, lembremos que certamente não havia e não há na ciência uma afirmação sobre a qual possa pairar uma dúvida que seja mais exótica do que foi a dúvida lançada por Descartes quanto à existência do mundo e do próprio corpo (lembremos a expressão dos discentes quan- do estamos lecionando a dúvida hiperbólica cartesiana). Porém, obviamente, Descar- tes lança tal dúvida por necessidade de evitar, tanto quanto pudesse, interferências ex-

ternas sobre sua “capacidade ou exercício de auto-direção” (Zagzebski, 2013), ou seja, pela necessidade de se livrar de qualquer meio que pudesse tornar-lhe intelectu- almente heterônomo.

Quando tal necessidade é esquecida ou precocemente superada, o efeito social e epistêmico dessas curas quase “mágicas” e dessa aderência a priori na ciência, como em Psillos (1999), é uma violação desta e de seus próprios pressupostos basilares. O mais agravante, assim, é que isso tenha se sucedido por meio dos resultados que um aplicado “ceticismo” seletivo realizado sob o nome de científico trouxe (Feyerabend, 1999, p. 69) e que, como fruto, atropela as premissas epistêmicas que o próprio racio- nalismo científico estabeleceu, concretizando uma precoce superação de certos valo- res oriundos de tradições, como o ceticismo, os quais nos servem, quando pouco, de estimuladores da desconfiança intelectual própria de alguém autônomo.

Não obstante, a ciência segue mais que nunca exercendo enorme autoridade e desfrutando de prestígio social e individual, promovendo, também, a partir de seus marcos, uma cisão entre o que é ou não legítimo para a sociedade acreditar, investir ou depositar energias, alimentando ainda mais uma circularidade, uma dependência e um condicionamento da sociedade em relação a ela e gerando, ao fim, uma heterono- mia intelectual, seja em sentido kantiano, nozickiano ou zagzebskiano.

Em função disso, outras áreas (não-científicas), por receberem pouco ou ne- nhum apoio e nem condições para desenvolvimento de teorias e testabilidade (desde o início tendo sido limitadas), não conseguem alcançar o mesmo nível de competitivi- dade da ciência, sendo eliminadas do saudável jogo de oposições antes mesmo de ele ser iniciado (Feyerabend, 2011). Isso, no entanto, não é recente. O próprio Galileu percebeu esse problema de desenvolvimento desigual de teorias e tradições quando tentava inserir o heliocentrismo no diálogo com o geocentrismo, sendo este último o vitorioso antes mesmo de iniciar o debate e o desenvolvimento das propostas daquele, não só por razões religiosas, mas também científicas (Feyerabend, 2007). Some-se a

isso uma forte interferência nas disposições dos agentes da ciência para realizarem autorreflexões que sejam, por assim dizer: autorais . 36

Outro corolário, alertado por Feyerabend no Ciência em uma sociedade livre (2011), argumenta que uma área antes só epistêmica (a ciência) tornou-se não apenas um forte grupo de pesquisa, bem como um instrumento de pressão política a favor de certos princípios e ontologias (Feyerabend, 2011, p. 91-96) destoantes de propósitos científicos mais gerais (como o caso do esclarecimento tardio destacado por Waldron [2005]), ou ainda como o caso do oportunismo epistêmico defendido por Einstein (Einstein apud Feyerabend, 2007, p. 33).

Assim, criar um processo circular em que a ciência alimenta a sociedade com logros e estes logros, por sua vez, aumentam a capacidade da ciência de nutrir a cren- ça da sociedade na própria ciência em vez de nutrir a autonomia intelectual das pesso- as tornou-se indispensável para ela se firmar como um grupo de pressão política cheio de supostas garantias e virtudes epistêmicas para suas teorias (verdade, racionalidade, objetividade, justificação, etc.). Este é um ponto combatido na proposta de revisão do objetivo do ensino das ciências.

Porém, quando certo tipo de concepção científica se infiltra na educação, sendo que a última deveria ter por dever basilar enfraquecer qualquer heteronomia sobre os paradigmas vigentes sem se aliar ao status quo, a pergunta é: como tal é possível se o

status quo for defendido pela ciência? Não será!

De maneira diferente da empreendida por aqueles que desejam fazer da ciência o guia para nossos compromissos ontológicos, como deseja Psillos (1999), é bom lembrar que, em sua origem, a ciência sempre foi uma “força libertadora [por limitar] a influência de outras ideologias” (Feyerabend, 2011, p. 94) e não esse instrumento 37 O termo autor se modificou ao longo da história e, não ao acaso, atualmente remete a uma espécie de

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dono de algo e, portanto, possuidor de autoridade e responsável sobre este algo. Mais que isso, porém, na relação obra e autor também se estabelece por natureza uma espécie de direito do autor sobre os frutos de sua autoria (Cf. De Teresa Ochoa, Adriana. La función del autor en la circulación literaria, In Circulaciones: trayectorias del texto literario, Adriana de Teresa Ochoa (coord.), México: UNAM / Bonilla Artigas Editores, 2010. Cf. também https://es.wikipedia.org/wiki/Autor#cite_note-16). Ade- mais, o termo autor em latim remete tanto a auctor (fonte, origem) quanto à soma entre o verbo augere (aumentar ou melhorar) com o sufixo -tor (agente, aquele que faz a ação), ou seja, a fonte da ação e, portanto, o único responsável por ela, um agente (Acessado em 19 de dezembro de 2016: http://etimo- logias.dechile.net/?autor.) Em grego, o termo autor (Αíτιος) também remete à causa, responsável, cul- pável (cf. ISIDRO PEREIRA S. J. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. Editora: APOSTO- LADO DA IMPRENSA, BRAGA, 1976).

de pressão política que se tornou com o advento do racionalismo científico. Sobre isso, August Strindberg escreveu, no Antibarbarus (1894), algo quase profético:

Uma geração que teve a coragem de livrar-se de deus, de esmagar o Estado e a Igreja e de subverter a sociedade e a moralidade continu- ava todavia a curvar-se diante da Ciência. E na Ciência, onde deve- ria reinar a liberdade, a ordem do dia era “acredite nas autoridades ou terá sua cabeça cortada” (Strindberg apud Feyerabend, 2007, p. 36).

Noutros termos, ainda que seja viável e coerente defender a ciência (tanto quan- to outras tradições), por outro lado, parece haver, nas comunidades, nas tradições, nas sociedades e nas instituições sociais, precisamente, a criação de dependência e obedi- ência do sujeito à ciência e, logo, um modelo de educação científica heterônoma sob 38

o qual as argumentações científicas, a realidade e o racionalismo científico sejam con- fundidos com a verdade única, os axiomas confundidos com dogmas e a ontologia da ciência com tudo o que há para se dizer sobre a riqueza do Ser/realidade (Feyerabend, 2006).

4.2.2. A natureza da ciência, o universalismo epistêmico e o multiculturalismo para