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Relativismo Cosmológico, Racionalidade e Anything Goes (AG)

3. CAPÍTULO 3 RACIONALIDADE ANARQUISTA E ESCLARECIMENTO

3.2. RELATIVISMO COSMOLÓGICO

3.2.2. Relativismo Cosmológico, Racionalidade e Anything Goes (AG)

Procedendo assim, parece ser possível salvaguardar as diversidades das formas de vida, de abordagens da realidade e da emancipação. Com isso, uma epistemologia sensível à multiculturalidade torna-se incompatível com uma restrição educativa e com uma racionalidade em prol de uma só tradição, de uma só cultura, de uma supos- ta superioridade epistêmica global, de uma suposta maneira independente de tradições de justificar o conhecimento e, por outro lado, compatível com uma abordagem for- mativa plural e prolífera, defensora de que o centro das atenções não seja nem a Santa Igreja (e seu teocentrismo) e nem a Santa Ciência (cientificismo), mas o despertar do

criticismo (a maturidade) do “pupilo" e, logo, ter como resultado uma capacidade ana- lítica epistêmica para sopesar o valor dos argumentos das tradições, combinando com as idiossincrasias e os interesses sociais, culturais e metafísicos dos sujeitos naquilo que poderá enriquecer nossa compreensão do Ser.

Em algum sentido, defendemos uma espécie de neoantropocentrismo intelectual en- quanto harmonizado com o protoanarquismo, porém, não usamos o termo como favo- rável ao deslocamento do homem (e sua suposta melhor tradição: a ciência) para um altar central de superioridade em relação ao mundo e às outras espécies de seres e tra- dições, as quais, por sua vez, deveriam girar em torno do homem (como no antropo- centrismo típico). A intenção seria promover um descolamento a serviço de colocar a ciência em seu lugar (Feyerabend, 2007), junto com todas as outras tradições, episte- mologias e ontologias que devem estar, a saber, girando em volta do amadurecimento intelectual de um tipo de homem que se apercebe pequeno frente à riqueza do Ser e que, por essa razão, zela pela multiculturalidade e pela proliferação mais diversas (dentro do que o protoanarquismo estabeleceu).

Não ao acaso, ver o relativismo cosmológico associado ao AG, no sentido da segunda

versão da epistemologia e ontológica anarquista (“conhecimento e verdade são no-

ções relativas” [Feyerabend, 2008b, p. 108]), é um erro. No entanto, esse erro cometi- do por intérpretes não está exatamente no ataque ao AG, mas sim na natureza superfi- cial que lhe concebem ao atacá-lo.

O Tudo vale não deve ser visto, assim, como um dogma filosófico segundo o qual é preciso substituir metodologias e epistemologias velhas por novas ou mesmo como a ideia de que pesquisas científicas devem ser regidas por um relativismo epistêmico

radical que afirmaria algo parecido com "tudo é verdadeiro ou tudo é falso" e que,

semelhante ao afirmado por P. Boghossian, se traduziria num pluralismo epistêmico no formato: “Há diversos sistemas epistêmicos mutuamente incompatíveis, mas ne- nhum fato em virtude do qual algum desses seja mais correto que qualquer um dos outros” (Boghossian, 2011, p. 76, trad. nossa). Com isso, o autor defende com sutileza que um pluralismo epistêmico seria paralisante, além de ser absolutista e da noção de que só há uma forma de pluralismo epistêmico.

O motivo para rejeitar essa concepção boghossiana não é apenas um lapso de entender a ideia de pluralismo baseando-o somente em "fatos" (inclusive porque já foi mencio- nada noutro momento a complexidade dos termos ‘fato’ e ‘pluralismo’), bem como de esquecer que o pluralismo anarquista nutre-se do princípio da proliferação, e este, por sua vez, do relativismo cosmológico e do metaprincípio protoanarquista. Ou seja, Boghossian (2011) não perceberia os elementos que tornariam o pluralismo algo para além de uma fundamentação factual unidimensional materialista-fisicalista.

Outro aspecto que tornaria a definição boghossiana de pluralismo limitada é a dificul- dade filosófica que surge quando se tenta definir o que seja algo mais ou menos corre-

to, pois não é que, para um pluralista, seja impossível, sob muitos critérios e contextos

e sob certas circunstâncias, fazer uma escolha sobre algo (teoria, método, tipo de tes- temunho, empresa da bolsa a se investir, se chove ou não lá fora etc). Mas é que pare- ceria haver no sentido pretendido por Boghossian (2011), em sua definição de plura- lismo e no uso do termo “correto”, o predomínio linguístico alertado por Whorf, cha- mado de “covert" (encoberto) (Whorf apud Feyerabend 2007, p. 228) de uma tradição ou de um sistema epistêmico X, para determinar como e o que seja algo correto não somente sobre certa dimensão epistêmica (o que já seria por si discutível), mas tam- bém, por extensão, sobre diversas dimensões (teóricas, epistêmicas, normativas, cul- turais, ontológicas, educativas, etc.).

Assim, Boghossian talvez não tenha se dedicado a buscar dentro de sua definição de pluralismo um aspecto metafísico, inserido de maneira subterrânea, norteando aquilo que seria correto e errado acerca de várias dimensões.

Nesse sentido, a noção da primeira versão da epistemologia e ontologia anarquista afirma que “há uma realidade que encoraja múltiplas aproximações” (Feyerabend, 2008b, p. 108), na medida em que se argumenta em favor de uma relação com a reali- dade a partir da qual é possível acessá-la através de uma pluralidade de maneiras e, essencialmente, colocando em diálogo explícito as pressuposições tácitas (covert) que jogam, quase sempre, no time do racionalismo e do materialismo científico (a exem- plo do chamado princípio do cosmos ordenado, segundo o qual “o cosmos é uma es-

trutura ordenada e somente pode ser explorada por procedimentos ordenados” [Feye- rabend, 1999, p. 201] ). 28

Assim, também se pode vislumbrar que o propósito da escolha da primeira versão por Feyerabend foi trazer à tona um tipo de racionalidade para a qual, grosso modo, será preciso ponderar a realidade a partir de uma noção de relatividade cosmológica não porque se julgue melhor que as demais, mas sim porque seu caráter inclusivo a torna igual às demais, ampliando não apenas itens como a noção de verdade e realidade, mas também a de crenças racionais, a justificação e a noção de conhecimento.

Isso é desenvolvido mantendo-se em foco a necessidade de reflexão e sem colocar nas mãos dos tecnicismos da ciência o papel que é próprio do agente/sujeito que prioriza o livre pensar, apesar das incansáveis amarrações ideológicas (Feyerabend, 2011). Assim, antes da aplicação da proliferação, vale lembrar que há uma teleologia anar- quista unindo epistemologia e moral e que se inicia com a preocupação pelos valores de emancipação e de maturidade intelectual apenas enquanto meios para a efetivação dessa teleologia (a felicidade do sujeito).