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1. CAPÍTULO 1 O DEBATE ACERCA DO OBJETIVO DO ENSINO DAS CI-

2.2. O ANARQUISMO: CONCEPÇÃO INGÊNUA E ALTERNATIVAS

2.2.1. A Versão Ingênua

A perspectiva ingênua de descrever a filosofia feyerabendiana atribui a seu autor uma concepção anarquista sob moldes muito facilmente equiparáveis, no tocante a seus resultados e suas bases, aos de um cético radical e/ou mesmo aos de um relativista radical/absolutista. Por razões distintas, tanto num caso como em outro, no fim das contas, nenhum conhecimento seria possível.

Consequentemente, a interpretação ingênua (por ter se disseminado mais entre docentes e discentes) conduz o leitor à posição de que a filosofia de Feyerabend ataca toda a racionalidade, assim como todos os métodos e todo o progresso do conhecimento. Esse relativismo radical não deixaria que qualquer lastro de razão restasse para a formulação de um conhecimento. Por tal motivo, foi destacado, no seu anarquismo, um aspecto caótico e relativista absoluto, como o seguinte trecho de

Contra o Método, que indica o tipo de leitura feita em geral por críticos: “a) [os

Nesse caso, a tradução da forma “tudo vale” em vez de “vale tudo” é utilizada tanto porque, em parte

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dos textos em português do Brasil, se convencionou essa forma e ela é interessante (ex.: tradução da Unesp de Against Method), em razão de destacar o aspecto cosmológico (tudo) antes do item epistêmi- co (vale), e isso parece ser realmente relevante para Feyerabend, além do fato de que, no Brasil, “vale tudo” é usada para inúmeras situações, sendo, assim, importante fazer um destaque do termo quanto ao âmbito filosófico.

No livro Adeus à Razão (2010), Feyerabend expõe 11 teses relativistas e até onde ele concordaria

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com um relativismo. Ademais, também em Pós-escrito sobre o relativismo, dentro de Contra o Método (2007), ele explica que rejeita um tipo de relativismo (doutrina filosófica) para aceitar outro mais práti- co, no sentido de cosmológico. Portanto, antecipamos que Feyerabend se afasta de um certo tipo de

críticos assumem] que tanto regras absolutas quanto regras dependentes de contexto têm seus limites e infere[m] b) que todas as regras e todos os padrões são desprovidos de valor e deveriam ser abandonados” (Feyerabend, 2007, p. 310).

Essa noção ingênua da racionalidade anarquista se funda na equivocada leitura das características de alguns princípios que Feyerabend de fato traz (mas que fora de contexto provocam engano), como a defesa de que a ciência adota e deve continuar adotando o princípio Anything goes, e também em más interpretações de que ele ataca a ciência ou o progresso do conhecimento, quando, na verdade, desde o início da década de 60, ele já defende o oposto quando afirma que a ciência é penetrada por inovações e ideias surpreendentes (Feyerabend, 1967, p. 249).

Dentro da noção ingênua, por exemplo, o caso do Tudo Vale é considerado como um princípio violador de qualquer razão e tão abrangente que seria capaz de envolver todas as respostas para qualquer pergunta. O Tudo Vale seria uma suposta recomendação teórica e metodológica de Feyerabend, a fim de que a ciência eliminasse sua objetividade em troca da total idiossincrasia e da relatividade epistêmica. Há muitas passagens que, numa primeira leitura e distanciada do restante do corpo da obra da filosofia anarquista, alimentam essa confusão hermenêutica, a exemplo da seguinte passagem de Contra o Método (2007):

Para os que examinam o rico material fornecido pela história e não têm a intenção de empobrecê-lo a fim de agradar a seus baixos instintos, a seu anseio por segurança intelectual na forma de clareza, precisão, “objetividade” e “verdade”, ficará claro que há apenas um princípio que pode ser defendido em todas as circunstâncias e em todos os estágios do desenvolvimento humano. É o princípio de que

tudo vale (Feyerabend, 2007, 42-3).

Noutros termos, para a versão ingênua, o princípio feyerabendiano do Anything

goes (Tudo Vale ou AG) se julga, por um lado, suficiente para explicar o passado da

ciência acerca tanto de seus elementos internos (lógica, coerência teórico e empírica, objetividade, etc.) quanto externos (influências econômicas, político-sociais, culturais, interesses do[s] pesquisador[es] e da tradição epistêmica vigente, etc.) e, por outro lado, necessário para os contextos de descoberta e de justificação, eliminando a racionalidade e a objetividade percebidas enquanto barreiras para o progresso do conhecimento.

Simplificando, o AG inseminaria a desconstrução de qualquer proposta epistêmica que tenha se lançado à edificação e se mantém, assim, exclusivamente desconstrucionista, sem colocar nada no lugar daquilo que destruiu. Na versão ingênua, Feyerabend atacaria o racionalismo e a ciência, mas não ofereceria uma forma de racionalidade no seu lugar e nem seria capaz de distinguir o valor epistêmico de teorias rivais de uma mesma tradição ou de tradições distintas.

Para elucidar essa ideia, basta evocar a maneira como é interpretada sucintamente a filosofia anarquista em seus aspectos epistemológicos e metodológicos através de um texto de Chalmers (1986, p. 2, tradução nossa), no qual ele diz que Feyerabend rejeita “todos os métodos e todos os padrões” e, assim, quem se filiar a esse autor se verá em algum momento sem um solo firme para fincar a construção do conhecimento e, consequentemente, sem abrigo epistêmico, pois não lhe restariam nem a racionalidade, nem a objetividade, nem mesmo qualquer parâmetro, ainda que momentâneo, para a ele se agarrar. Sobraria, pois, o próprio caos enquanto ameaça (Feyerabend, 2007, p. 36).

De acordo com a versão ingênua, a anulação de todos os métodos em razão do reconhecimento de seus limites e a abertura ao caos levariam Feyerabend a uma condição tamanha de absurdidade epistemológica e metodológica, com a principal preocupação para a ciência, que não restaria outra saída senão a de considerá-lo um favorecedor de paralisia filosófica e científica, na medida em que ocorreria uma rejeição de todos os métodos e padrões, pois que qualquer opção seria válida (Cobern

apud El-Hani e Mortimer, 2007a, p. 664).

Assim, o “anything goes”, por exemplo, poderia ser acusado de incapacidade pragmática para decidir sobre a eficácia de alguma ideia dentro de uma circunstância específica. Logo, um sujeito S que fosse anarquista (sob essa versão ingênua) seria incapaz de decidir entre a teoria darwinista ou a lamarckista quando perguntado em sala sobre qual teoria possui maior capacidade explicativa, preditiva, ou maior apoio empírico, teórico e observacional, etc.

Com efeito, a versão ingênua faz com que o pesquisador se torne cada vez mais sem solo, céu ou ferramentas, chegando tal rejeição de teorias e padrões ao seu pináculo quando não restar uma única coluna epistêmica de pé. Seria algo como o

cumprimento absoluto da proposta baconiana concernente à eliminação dos ídolos, a qual é, por assim dizer, a parte destrutiva do seu método indutivo (Bacon, 1620, aforismo 36), desconsiderando que há a parte heurística na filosofia anárquica de Feyerabend e não menos na de Bacon.

Para uma linha ingênua, tal ápice de rejeição seria proposto por Feyerabend precisamente para estimular o nascimento de uma noção de conhecimento que fosse mais adequada à história e aos objetivos epistêmicos da ciência (os quais seriam caóticos e irracionais), pois, ao fazer isso, se romperia com uma suposta obrigatoriedade que uma perspectiva filosófica aparentemente precisa manter com a razoabilidade.

Destarte, a vantagem para essa filosofia anarquista ingênua seria que o anarquismo faz progredir porque liberta sem limites (ao menos é o que se diria). Para aqueles que rejeitam Feyerabend (baseados nessa versão ingênua), o anarquismo não traz o progresso e ainda elimina qualquer caminho, mapa e instrumento de que se possa lançar mão para trilhar algum progresso.

Tendo isso em mente, fica agora mais claro o porquê de o AG ter papel importante e de destaque, i. e., não se trata simplesmente de afirmar um princípio, mas o princípio substancial que uma leitura ingênua do anarquismo feyerabendiano fixa para o Tudo Vale. Consequentemente, o AG poderia ser lido como um modelo epistêmico de natureza arquimediana, ao tempo em que se criticam os princípios rivais e se autopromovem.

Porém, segundo os críticos de Feyerabend adotantes da leitura ingênua (ex.: McMullin 1971; Chalmers 1986; Cobern, 2000; Siegel, 1989 etc.), um tal princípio seria apenas aparentemente saudável porque ele seria automutilante, na proporção em que é tão exageradamente tolerante que favorece a criação de uma norma paradoxal:

tudo vale. O resultado da norma é que, se tudo vale, todas as críticas contra o tudo vale também valem e, logo, nem o próprio tudo vale sobreviveria ao debate

epistêmico que ele abriu. Noutros termos, o relativismo absoluto anarquista seria uma aberração tanto epistêmica quanto lógica (Siegel, 1989).

Em decorrência dessa discussão, embora um dos pontos básicos de destaque do anarquismo feyerabendiano seja o Anything Goes, e isso pelas razões

supramencionadas, os intérpretes e os críticos da versão ingênua costumam vê-lo como básico e também fraco, o calcanhar de Aquiles, pois, uma vez mais, ao passo em que se estabelece um princípio que possa substituir todos os outros como uma promessa de salvação e apoio, tal coisa aterroriza, na outra mão, o conhecimento e o inviabiliza teórica e praticamente.

Assim, o fato é que o anarquismo ingênuo é uma possibilidade de compreensão da filosofia feyerabendiana que se tornou, a despeito de qualquer esforço contrário dos especialistas, numericamente elevada frente a qualquer outra interpretação sobre essa filosofia e, por assim dizer, foi a vertente que aprofundou raízes no pensamento da comunidade filosófica, causando um estranhamento dos estudantes e uma baixa tolerância por parte dos docentes quanto ao filósofo anarquista em pauta (Lloyd, 2000, p. 115). A professora Anna Carolina Regner, estudiosa da obra de Feyerabend, sintetiza esse cenário:

Paul Karl Feyerabend, pensador austríaco (1924-1994), é um dos críticos mais perspicazes das análises usualmente propostas, chamado em rodas mais fechadas de “terrorista epistemológico” e por alguns físicos, mais recentemente, de “o pior inimigo da ciência” [...] (Regner, 1996, p. 231).

Sem dúvidas, até hoje Feyerabend pode causar esse sentimento e distanciamento (Lloyd, 2000; Suppe, 1991; Munévar, 2000 e 2002; Svozil, 2006; Gilles, 2011). Porém, muito dessa rejeição poderia ser minimizado se alguma chance de defesa fosse oferecida à obra do autor (embora Feyerabend possa se defender sozinho), isto é, se o famoso princípio da caridade davidsoniano e as próprias recomendações epistêmicas anarquistas (proliferação, oportunismo, tenacidade, condições de desenvolvimento igualitário de visões) lhe fossem viabilizados e os princípios reguladores de uma sociedade livre fossem aplicados (Feyerabend, 2011).

Porém, adjetivos pejorativos como os citados e outros tantos são alimentados ainda mais pelos desdobramentos dessa versão ingênua, e. g., a maneira usada para falar de racionalidade, ou seja, claramente na versão ingênua, o anarquismo feyerabendiano supostamente renunciaria a uma racionalidade de princípios rígidos, universais, que se considere ou mesmo busque ser objetiva. Sobre isso, Robert P.

Farrell inicia seu livro Feyerabend and Scientific Values (2003) avultando esse tipo comum de concepção sobre uma suposta filosofia anarquista. Assim Farrell diz:

A concepção popular da filosofia tardia de Feyerabend tem sido atribuída ao completo anarquismo, ao relativismo radical, à negação de que há qualquer coisa que poderia ser chamada racionalidade ou razão e, consequentemente, à contenção de que o mundo do conhecimento é completamente dominado por poder, propaganda, sentimentos subjetivos e preconceitos (2003, p. 1, tradução nossa). Na prática, de acordo com quem criticar Feyerabend baseando-se para isso na linha ingênua, sua teoria da racionalidade pretenderia demarcar o que, em relação a normas avaliativas fixas anarquistas, é aceitável ou não, aparentemente fadada ao fracasso ou não, adotante da subjetividade ou não, sendo, com efeito, uma racionalidade paralisante do progresso e do conhecimento (Feyerabend, 1977, p. 319), além de ser uma proposta de incoerência lógica e inviabilizadora de qualquer crítica que se possa formular contra ela.

Essa interpretação ingênua é aquela que até os dias atuais manteve maior número de interpretações. Independentemente dos motivos para isso, o fato é que destacar essa posição e expor suas fraquezas ajuda não apenas no próprio esclarecimento do tema, como também no desenvolvimento de pesquisas e de relações que estabelecemos, na medida em que as possibilidades são ampliadas.

2.2.2. Base para a Abordagem Alternativa à Versão Ingênua do Anarquismo de Feye-