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Relativismo cosmológico, racionalidade anarquista e autonomia

3. CAPÍTULO 3 RACIONALIDADE ANARQUISTA E ESCLARECIMENTO

3.2. RELATIVISMO COSMOLÓGICO

3.2.3. Relativismo cosmológico, racionalidade anarquista e autonomia

Por conseguinte, os valores epistêmicos anarquistas, como proliferação, contraindu- ção, tenacidade, etc., são meios que partem do que foi denominado protoanarquismo em direção última àquilo chamado e definido como felicidade, a qual denota a abun- dância do Ser, no sentido de enriquecimento das qualidades inerentes da relação do homem, o qual se encontra inexoravelmente posto no mundo e no outro e que os têm em si e está neles. Em suma, αυτόνοµη (auto-nomos) é, em certo sentido, uma palavra que, quando concretizada, resumiria a síntese dos termos presentes em Feyerabend: independência mental, emancipação (liberate) e maturidade intelectual-cognitiva. Não ao acaso, Feyerabend diz que é preciso:

fortalecer as mentes dos jovens e ‘fortalecer as mentes de jovens’ significa fortalecê-las contra qualquer aceitação fácil de perspecti- vas compreensíveis. O que precisamos aqui é de uma educação que

Galileu, assim como outros nomes na história da ciência, tais como o médico Ignaz Semmelweis ou

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Darwin, teve sua pesquisa, seus procedimentos e seus argumentos rejeitados antes de terem sido reco- nhecidos e mesmo antes de terem tido a chance de serem analisados, simplesmente porque, de igual maneira, havia pressupostos tácitos (por Galileu chamados de interpretações naturais e por Whorf, de

torne as pessoas relutantes, contrassugestivas sem torná-las incapa- zes de se dedicarem à elaboração de uma só proposta que seja (Feyerabend, 1999, p. 188, trad. nossa).

Feyerabend é direto ao dizer que se faz preciso cumprir um certo objetivo quanto à formação do homem, e o meio de fazê-lo é através de uma certa forma de educação geral. Mais que isso, uma educação que não sirva ao status quo, uma educação que não proponha a exclusividade da ciência normal, que não busque formar nas escolas precoces-futuros cientistas e, sim, sujeitos emancipados e intelectualmente maduros para escolherem por conta própria, enfim, uma educação plural (Terra, 2002) e protoanarquista.

A racionalidade anarquista está de tal modo ligada ao protoanarquismo e aos seus valores – tornando necessária a associação entre moral e epistemologia – que uma filosofia e/ou uma educação concebidas sob os moldes ontológicos anarquistas produzirão uma alternância de perspectivas e de semântica (entre outras, como se depreende de Whorf [1956] sobre a linguagem que modela o mundo), a qual acabará por oportunizar o inevitável nascimento e a manutenção de outras culturas e realidades. Assim, Feyerabend nos lembra de que:

Os conceitos, especialmente os “que estão na base” das concepções do mundo, não são jamais fixados solidamente como se estivessem encravados; são mal definidos, ambíguos, oscilam entre interpretações “incomensuráveis” e devem sê-lo, se é que as mudanças (conceituais) devam ser possíveis (2008b, p. 104).

Para ser mais direto: um viés multiculturalista educacional, epistêmico e moral só tem espaço sobre uma ontologia em que não há nem prévias limitações idiossincráticas nem que, na Natureza, se permita alguma restrição, ainda que infiltrada subterraneamente, pois é preciso tanto escancarar a forte influência da semântica (e dos processos que a formam) na formação de conceitos e na sua influência na formação e na própria percepção do mundo, como também as consequências e os problemas que o esforço de eliminar a pluralidade conceitual pode trazer para as nossas percepções do mundo (porque, ainda que inegavelmente a padronização conceitual traga algumas respostas, é fundamental perceber que há também uma gama de problemas em volta e que padronizar não é só o paraíso que apresentam).

Em caso contrário, não será possível admitir uma visão multiculturalista para a qual outras visões de mundo e aproximações, fontes e formas de conhecimento possuam o mesmo valor (epistêmico e prático), ao menos em certos estágios do desenvolvimento e ainda que seja como recurso de enriquecimento de possibilidades de inúmeros itens (epistêmicos, práticos, ontológicos, etc.). Contra uma proposta multiculturalista e protoanarquista, baseada nos elementos metodológicos, epistêmicos (verdade como coerência e/ou como correspondência) e metafísicos racionalistas, Feyerabend lembra o que um “leitor moderno” diria:

“O que se está descrevendo é um período anterior ao surgimento da ciência moderna. Mas esta [a ciência] é (1) baseada em uma abordagem uniforme, (2) tem levado a um corpo coerente de resultados que (3) nos forçam a tornar a ciência não apenas uma medida, mas a medida da realidade”. Nem (1), nem (2), nem (3) é correto (Feyerabend, 2006, p. 255, colchetes nossos).

É inegável que tal suposição de afirmação sobre a ciência, proposta por Feyerabend como representando a visão de pesquisadores, parece muito forte e até supondo um leitor sério irreal nos dias atuais, mas, com um pouco de paciência, talvez seja possível saber se ela é comum, inexistente, rara ou mesmo tecnicamente desqualificada quanto ao emissor. Contrariamente a isso, o relativismo cosmológico nos incita ao apoio contido na atitude cética frente a qualquer visão que se julgue exclusiva e defenda possuir os melhores compromissos ontológicos de todas as tradições.

Não admitir isso é pressupor que seja válido reduzir todo o nosso mundo a uma visão unidimensional, como recentemente fez Psillos (1999) acerca da pergunta sobre a racionalidade de crenças dirigidas a um tal Mundo que, nas palavras de Feyerabend, é: “A Natureza Tal Como Ela é Em Si Mesma” (2007, p. 361). O texto de Psillos abaixo dialoga, precisamente (por coincidência escrito após A Conquista da

Abundância), com o item 3 da citação logo acima, de Feyerabend, e também com a

segunda citação abaixo (Feyerabend, 2006, p. 259). Assim, conforme Psillos (1999): A resposta parece ter certas implicações para questões epistemoló- gicas. […]. Na medida em que teorias científicas são bem confir- madas, é racional acreditar na existência de entidades que elas as- sumiram como fatos. Pois, que outra coisa, que não nossas melhores teorias, deveríamos considerar a fim de decidir o que é razoável acreditar sobre o mundo? Se nossa melhor ciência não é nosso me-

lhor guia para nossos compromissos ontológicos, então nada é (1999, p. 68, trad. nossa).

É compreensível pensar numa interpretação amena para essa proposta epistêmica, moral e ontológica tão feroz de Psillos (ex.: foi uma afirmação não- literal). Porém, se essa citação for, ao contrário, tomada de maneira direta e não- metafórica, restará apenas discordar, ao mesmo tempo em que se faça a defesa da ideia da necessidade de abandonar de uma vez a noção de que, ao nos dirigirmos ao conhecimento científico, estamos nos dirigindo a uma realidade clara e melhor para nossas escolhas práticas, ontológicas e epistêmicas, principalmente porque tal noção se baseia no equívoco da “impressão de uma realidade científica única e coerente” (Feyerabend, 2006, p. 259) e de uma ciência que é A medida da Realidade. Essa ideia de realismo científico e de racionalidade contida na citação é, para dizer o mínimo, preocupante, no que se refere tanto aos próprios elementos epistêmicos quanto aos seus corolários culturais.

Dessa forma, as noções de clareza, de objetividade e de racionalidade, as quais estão carregadas de uma longa história iniciada com Platão, fortalecida por Descartes e consolidada pelo positivismo lógico, são tão ilusórias e impraticáveis quanto bem- sucedidas em convencer as pessoas de sua necessidade (e elas são muito bem- sucedidas no ocidente) . 29

Assim, Feyerabend nos diz, sobre os motivos para descrever as bases do relativismo cosmológico, que “As pessoas intervieram no mundo de múltiplos modos diversos, em parte fisicamente, interferindo de fato nele, em parte conceitualmente, inventando as linguagens e criando no interior delas inferências” (2008b, p. 104) que produziam inúmeras perspectivas, abordagens, epistemologias, etc. No entanto, de que maneira ocorreram aquelas interferências? Certamente, não se deram da maneira como os racionalistas propunham ou esperavam por meio de seus critérios (objetivismo, coerentismo, transparência e clareza epistêmica fazem parte deles ). 30

Para ocorrerem, essas interferências fizeram uso de grande variedade de recursos e ferramentas, bem como de fontes e formas de conhecimento variadas e não-

Cf. sobre esse tópico o livro: Silva Filho, Waldomiro. Sem ideias claras e distintas. Edufba, 2013.

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O sentido de transparência aqui se remete ao de autoridade epistêmica, não ao de autoridade de pri

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meira pessoa no sentido dado por Richard Moran (2001). Cf. o texto Transparência, Reflexão e vicissi- tude de Silva Filho, 2011, p. 232.

tradicionais (racionalistas). Num viés protoanarquista que abraça a enorme diversidade e relatividade cosmológica, segue que os modos de racionalidade e justificação predominantes precisam considerar sempre a situação concreta, na qual há um problema a ser resolvido (recorrendo aos valores anarquistas citados), pois, somente assim, será possível de maneira não-dogmática progredir o conhecimento sem assassinar outras alternativas epistêmicas e suas cosmologias (Feyerabend, 2006, p. 247). Sobre esse aspecto ontológico concreto, Brown (2016) diz:

Feyerabend baseia o sucesso da ciência não em uma correspondência (mirroring) bem-sucedida de uma mente- independente, de uma estrutura única de realidade, mas sim na ideia de a Natureza “responder” a nossas ações cognitivas ou “atividades epistêmicas” (Chang, 2009), i.e., a nossas atividades de modelagem, previsão, observação e experimentação na tentativa de conhecer o mundo e agir sobre esse conhecimento (Brown, 2016, p. 150, trad. nossa).

Para o relativismo cosmológico de Feyerabend, o qual mescla razão e prática (relação dada por uma análise dinâmica e simultânea dos contextos de descoberta e justificação sem separá-los, constituindo um só processo [Feyerabend, 2010]), as suprarreferidas interferências permitiram, ainda que não realizadas por meio dos aspectos da transparência ou da objetividade e da clareza, o nascimento e a manutenção de inúmeras formas de vida e de conhecimento:

Na minha opinião, isso sugere que há uma realidade e que ela é muito mais útil do que tudo quanto presume a maior parte dos objetivistas. Diversas formas de vida e de conhecimento são possíveis porque a realidade permite isso e até encoraja, e não porque “verdade” e “realidade” sejam noções relativas. (Feyerabend, 2008b, p. 104).

Em resumo, a proposta protoanarquista e o relativismo cosmológico defendem não uma relatividade radical/absoluta, mas o reconhecimento de uma realidade que possui uma natureza anárquica, no sentido feyerabendiano de inclusiva, ontologicamente rica e prolífera, pois, do mesmo modo que é possível “dizer que as estruturas que precederam o surgimento do racionalismo eram abertas” (Feyerabend, 2006, p. 247), também é possível dizer que são legítimas as diversas maneiras inimagináveis de conhecer o Ser e como tal abertura das estruturas pré-racionalistas contribui para essa defesa, pois…

há espécies diferentes de realidade definidas por modos diferentes de pesquisas bem-sucedidas, as quais por sua vez apóiam-se, mais ou menos conscientemente, em idéias diferentes sobre a relação entre os humanos e as coisas que os rodeiam: as suposições (1) [a ciência é baseada em uma abordagem uniforme] e (2) [isso tem levado a formação de um corpo coerente de resultados na ciência] são falsas. No que se refere à suposição (3) [a ciência não é apenas

uma medida, mas a medida da realidade], basta notar que os

resultados práticos, tomados em si, nunca forçaram ninguém a aceitar um ponto de vista da realidade, de preferência a outros (Feyerabend, 2006, p. 259, colchetes nossos).

Dessa forma, dado como certo que qualquer ontologia implica simultaneamente uma teoria do conhecimento (Feyerabend, 2006, p. 252) e que, para Feyerabend, há uma relatividade de cosmologias, há também vários modos de abordar a realidade e produzir uma pluralidade de epistemologias.

Há, assim, por um lado, um encontro do anarquismo com parte da resposta cética aos empiristas sobre o tema do mundo em si; e, por outro, uma proposta intermediária preocupada com as necessidades que surgem da inevitável peculiar situação humana de estar no mundo (no sentido do Dasein heideggeriano), e que certo sujeito circunscrito a um local e com outros sujeitos e no mundo e em galáxias que são abertas a muitas aproximações (não a todas) e precisa tomar o que ele supõe ser a melhor decisão possível sempre que o mundo ou a decisão de crer em algo for o caso (ex.: sobreviver ao ataque de um tigre, convencer uma meia dúzia de pessoas a mais sobre a crença X para não precisar beber cicuta ou ainda apenas argumentar porque a proposta de racionalidade X é superior ou porque acreditar nela é racional). Como consequência, a ciência não é, tal como afirmara Psillos (1999) em citação um pouco acima, sempre nosso melhor guia para compromissos ontológicos de um mundo com problemas conhecidos e ainda por conhecer, bem como de soluções alcançadas e ainda por alcançar.

No fim das contas, a racionalidade anarquista está dirigida a uma proposta que desemboca tanto em questões epistêmicas quanto em questões morais e, portanto, para finalizar esse quadro sobre a união da parte epistêmica com a parte moral, é preciso estabelecer a noção que parece corporificar a preocupação filosófica mencionada com o protoanarquismo, i.e., a noção de esclarecimento (enlightenment) desenvolvida a partir de dentro da filosofia anarquista, embora pouco explorada e assistematizada, mas que acreditamos poder ser muito utilizada como pressuposição

para a filosofia anárquica e sua relação com uma educação anarquista a respeito de seus objetivos e de sua natureza.

3.3. ESCLARECIMENTO (“E"NLIGHTENMENT) ANARQUISTA E PERCURSO