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Base para a Abordagem Alternativa à Versão Ingênua do Anarquismo de Feye-

1. CAPÍTULO 1 O DEBATE ACERCA DO OBJETIVO DO ENSINO DAS CI-

2.2. O ANARQUISMO: CONCEPÇÃO INGÊNUA E ALTERNATIVAS

2.2.2. Base para a Abordagem Alternativa à Versão Ingênua do Anarquismo de Feye-

Contrariamente ao que defendeu a versão ingênua do anarquismo, nem sempre a objeção àquilo que pode ser chamado “senso comum” da racionalidade científica trará como resultado, na sua prática diária, um caos ou uma paralisia (Whorf apud Feyerabend, 2007, p. 36). Isso porque, essa paralisia só ocorre se se advoga em prol de um anarquismo que defende uma posição de que tudo é verdade ou de que tudo é mentira, uma vez que tudo é igualmente válido.

Diferentemente disso, há vezes em que se precisaria escolher entre ser epistemicamente racional (no sentido tradicional racionalista da escola platônica e cartesiana) ou então seguir em frente, mesmo com todas as limitações do que seria ser racional, ou seja, na prática, é necessário escolher entre ter a ciência (e não ser

racionalista em sentido filosófico tradicional) ou ter a Razão (e deixar o progresso do conhecimento científico para segunda importância depois do progresso da Razão), porém não podemos mais ter "ambas" (Feyerabend, 2011, p. 22).

O motivo é que, durante um processo investigativo qualquer, a razão prática não se separa da razão teórica e, com isso, não é possível estabelecer uma Razão forte que ignore a necessidade de aumento qualitativo e quantitativo de empiria ou tampouco a adição de empiria e a consequente ampliação preditiva-explicativa teórica. Ainda menos possível que isso é que se separe, para um entendimento/domínio epistêmico de X, o contexto de descoberta (a história, os condicionantes, os contextos nos quais X surgiu e foram desenvolvidos certos conceitos) do contexto de justificação (os motivos para manter X) (Feyerabend, 2007).

Assim e contrário à versão ingênua, Feyerabend não rejeita todos os métodos e padrões e tampouco poderia ser genericamente visto como irracional, pois basta tomar ciência se antes o que se coloca como medida de razoabilidade é a própria tradição racionalista. E, ainda, se tomarmos tal tradição, seria melhor ser irracional a ter que pagar o preço de ser racional vivendo preso aos critérios limitadores do progresso estabelecidos pelo racionalismo. Nesse sentido, diz-se que:

O caráter limitado de todas as regras e padrões são reconhecidos pelo anarquismo ingênuo. Um anarquista ingênuo diz a) que tanto regras absolutas quanto regras dependentes de contexto têm seus limites e infere b) que todas as regras e todos os padrões são des- providos de valor e deveriam ser abandonados. A maioria dos co- mentadores considera-me um anarquista ingênuo nesse sentido, não se dando conta das muitas passagens em que mostro como certos procedimentos auxiliaram os cientistas em sua pesquisa. Com efei- to, em meus estudos sobre Galileu, sobre o movimento browniano, sobre os pré-socráticos, não apenas demonstro as falhas de padrões familiares, mas também tento mostrar que procedimentos não tão familiares realmente tiveram êxito. Assim, embora esteja de acordo com a), não concordo com b) (Feyerabend, 2007, p. 310).

Dito de outro modo: que haja problemas, dificuldades e obscuridades em métodos e teorias é aceitável por qualquer um, a diferença é que a ciência continua usando um padrão em apuros, quer os filósofos como Popper ou as divisórias da evolução da ciência de Kuhn aceitem, quer não. Não somente isso, é recomendável que a ciência, mesmo que “ocasionalmente" (Couvalis et al, 1999, p. 218), continue a fazê-lo enquanto tais procedimentos não tão familiares estiverem tendo êxito.

Portanto, a prática científica é bem mais dinâmica e contextual do que as teses racionalistas supõem e não se segue do reconhecimento de limites nos padrões a rejeição deles e nem mesmo o descarte definitivo de alguma teoria que tenha sido refutada.

Feyerabend não defende uma pesquisa sem o uso de métodos e padrões, ao contrário, defende que regras metodológicas são “imanentes à pesquisa” (Preston, 1997, p. 172, trad. nossa) e que tais métodos, padrões, teorias e epistemologias determinam, entre outros itens, a relação com a observação até certo ponto, do mesmo modo que a linguagem que é estabelecida para tornar essa observação compartilhável está submetida por uma ontologia muito mais antiga que teorias e linguagem sistematizadas.

Uma outra consequência da versão ingênua que é preciso desfazer é a assimilação entre o anarquismo político não-feyerabendiano com o filosófico feyerabendiano. Sobre a distinção entre o seu anarquismo e o anarquismo político, e também as diferenças entre o ceticismo e o relativismo, afirmou Feyerabend:

O anarquismo epistemológico difere tanto do ceticismo quanto do anarquismo político (religioso). Enquanto o cético vê tudo como igualmente bom ou igualmente mau ou desiste completamente de formular juízos dessa espécie, o anarquista epistemológico não sente escrúpulo em defender o mais banal ou mais afrontoso enunciado. Enquanto o anarquista político ou religioso pretende afastar certa forma de vida, o anarquista epistemológico desejará, talvez, defendê-la, pois não tem lealdade permanente para com qualquer instituição, nem permanente aversão contra ela (Feyerabend, 1977, p. 292-3).

Com efeito, deixando de lado a generalização duvidosa sobre o ceticismo (já que há um cético que não desiste da verdade), a citação expõe a preocupação do autor com uma radicalização de seu pensamento, contrariando a ideia imediata de que sua proposta seja simplesmente irracional e contra todos os métodos ou então inimiga da(s) ciência(s), ou ainda que se poderia traçar um simples paralelo entre a epistemologia anarquista e o anarquismo político. Obviamente, isso é uma confusão já anunciada na década de 60 (Feyerabend, 1967, p. 258) e permaneceu assim na fase tardia do autor (Feyerabend, 2007).

Para essa vertente que podemos considerar mais recente e relativamente melhor aceita pela comunidade “feyerabendiana”, o distinto austríaco tem sido estudado e

apresentado de uma forma diferente daquela de quando surgiu na comunidade filosófica e, portanto, não mais visto como um relativista absoluto.

A partir dessa perspectiva, pode-se dizer que, em geral, Feyerabend não é posto como um anarquista radical, defensor de um irracionalismo epistemológico ou metodológico, mas, sim, sob uma perspectiva mais branda que o retira de uma posição relativista radical e que, ao fim, realoca, na prática, a sua filosofia anarquista numa posição epistêmica e metodológica mais em acordo com uma linha pluralista (ainda que marcando, retoricamente, a dificuldade de se categorizar a filosofia de Feyerabend) (Farrell, 2003, p. 151).