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A Reforma Agrária após a Constituição Federal de 1988 ganhou novos e amplos contornos com o desiderato de exigir mais efetivamente o cumprimento da função social da propriedade, ao condicioná-lo ao cumprimento simultâneo das dimensões econômica, ambiental, social e bem-estar da propriedade.

Contudo, não se resume à mera redistribuição de terras, por meio de política de aquisição ou desapropriação de terras por interesse social para a constituição de projetos de assentamento. É esperado que a propriedade redistribuída também cumpra a sua função social nas dimensões já assinaladas. Nisso reside o princípio da dicotomia do Direito Agrário, não havendo dissociação entre a reforma agrária e a política de desenvolvimento correlata. Nesse

sentido, a Lei nº 8.629, de 199387, prevê que “as ações de reforma agrária devem ser compatíveis

com as ações da política agrícola, das políticas sociais e das constantes no Plano Plurianual da União” (art. 24).

Nas palavras de Graziano da Silva88, o acesso à terra seria parte de um conjunto mais

amplo de medidas para o campo, que deve incluir o acesso a recursos naturais, como a água, aos mercados, à capacitação, ao financiamento e à infraestrutura básica89.

Logo, o projeto deve ser efetivo e capaz de atender aos objetivos de reforma agrária eleitos pelo Estado. O início do processo é, portanto, o acesso à terra. Em seguida, deverá o Estado propiciar os instrumentos administrativos, econômicos e financeiros para o desenvolvimento rural, com foco no pleno emprego, produção e produtividade rural, fixação do homem na terra, educação rural, implantação de infraestrutura de transporte e de comercialização da produção.

A justa distribuição da terra e a existência de incentivos para a permanência e trabalho na terra deve ser vista como a efetivação de um direito social em expressa consonância com os fins e objetivos do Estado Brasileiro.

Repise-se: constituído o assentamento, deve o Estado prover meios para que os beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária se fixem de maneira digna no campo, de modo que possam ter um nível de vida adequado para si próprio e sua família, bem como uma melhoria contínua dessa condição de vida.

Mas quem são os destinatários dessa política? Trata-se de pessoas cujo perfil é expressamente definido na Lei nº 8.629, de 199390 e minudenciado no Decreto nº 9.311, de

201891, e que podem ser identificados pelos critérios de seleção e de classificação do Programa

Nacional de Reforma Agrária.

As normas que tratam dos critérios de seleção e classificação dispõem sobre proibições e ordem de preferência.

87 BRASIL. Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos

constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8629.htm. Acesso em: 13 fev. 2020.

88 Ex-diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), no período de 1º

de janeiro de 2012 a 31 de julho de 2019.

89 SILVA, José Francisco Graziano da. Fome, o grande paradoxo na América Latina e Caribe. Revista Fórum.

Entrevista em 9 fev. 2012. Disponível em: https://revistaforum.com.br/revista/89/fome-o-grande-paradoxo-na- america-latina-e-caribe/. Acesso em: 9 maio 2020.

90 BRASIL. Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos

constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal.

91 BRASIL. Decreto nº 9.311, de 15 de março de 2018. Regulamenta a Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993,

e a Lei nº 13.001, de 20 de junho de 2014, para dispor sobre o processo de seleção, permanência e titulação das famílias beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária.

Acerca das proibições92, aponta-se a de auferir renda proveniente de atividade não

agrícola superior a três salários mínimos mensais ou a um salário mínimo per capita; a proibição de ser ocupante de cargo, emprego ou função pública remunerada93; proprietário,

quotista ou acionista de sociedade empresária em atividade; o proprietário rural, exceto o desapropriado do imóvel e o agricultor cuja propriedade seja insuficiente para o sustento próprio e o de sua família.

Dentre os critérios de classificação, uma das preferências se dá ao trabalhador rural sem-terra em situação de vulnerabilidade social inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico)94, e ao trabalhador rural vítima de trabalho análogo à

escravidão, identificado pelo Ministério do Trabalho, e ao ocupante de área inferior à fração mínima do parcelamento (minifúndio)95.

No mais, dentre essas preferências, maior pontuação caberá àqueles cuja unidade familiar seja mais numerosa, cujos membros se proponham a exercer a atividade agrícola na área a ser assentada, conforme o tamanho da família e sua força de trabalho; a unidade familiar que há mais tempo resida no Município em que se localize o projeto de assentamento ou em Município limítrofe; unidade familiar chefiada por mulher; tempo comprovado de exercício de atividades agrárias pela unidade familiar96.

Interessante os números colhidos e sistematizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) por ocasião do Censo Agropecuário 201797, ao analisar o nível

de instrução do produtor. Do total de produtores, 15% nunca frequentaram a escolar, 14% até o nível de alfabetização e 43% atingiram, no máximo, o nível fundamental, ou seja, 72% dos produtores têm, no máximo, o nível fundamental. Do total que declarou ter cursado o nível fundamental, 66% declarou não ter terminado o curso. Declararam não saber ler e escrever, 23% do total de produtores, o que equivale a 1.164.710 indivíduos.

92 Art. 20 da própria Lei nº 8.629, de 1993.

93 Interessa observar que a própria Lei nº 8.629, de 1993, excepciona a regra quando ao enunciar que essa vedação

não se aplica ao candidato que “preste serviços de interesse comunitário à comunidade rural ou à vizinhança da área objeto do projeto de assentamento, desde que o exercício do cargo, do emprego ou da função pública seja compatível com a exploração da parcela pelo indivíduo ou pelo núcleo familiar beneficiado”, conforme §2º do art. 20.

94 Nos termos do art. 2º do Decreto nº 6.135, de 2007, “é o instrumento de identificação e caracterização sócio-

econômica das famílias brasileiras de baixa renda, a ser obrigatoriamente utilizado para seleção de beneficiários e integração de programas sociais do Governo Federal voltados ao atendimento desse público”.

95 Art. 9º do Decreto nº 9.311, de 2018. 96 Art. 12 do Decreto nº 9.311, de 2018.

Na análise por gênero do produtor, 81% dos produtores são do sexo masculino e 19% do sexo feminino98.

Portanto, os clientes da Reforma Agrária constituem um público peculiar, de baixa renda, baixo grau de instrução e em situação de vulnerabilidade, e que não tem condições sequer de acessar a terra, quanto mais condições materiais, técnicas e financeiras para promover a produção do imóvel rural sem que haja incentivos para tanto.

Assim, relevantes as políticas públicas que os ajudem a superar as adversidades e lhes possibilitem se tornarem agentes de suas próprias vidas, afinal, o que as pessoas podem realizar depende das oportunidades econômicas, liberdades, poderes sociais e condições habilitadoras (saúde, educação, incentivos, aperfeiçoamento de iniciativas)99.

Verifica-se que essa concepção de desenvolvimento como liberdade, encontrada em Sen, muito se amolda à concepção de dignidade da pessoa humana desenvolvida por Sarlet, que a tem por uma “qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito por parte do Estado e da comunidade”100, o que lhe garante um estatuto contra

qualquer tratamento desumano e degradante e que venha a lhe garantir o mínimo existencial para uma vida saudável e que lhe propicie “participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos”101.

O público da Reforma Agrária é uma classe que pode ser emancipada por meio do Direito. Para isso, necessita-se de novas abordagens, interpretações e práticas jurídicas que estejam mais ligadas ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos fins colimados pelo próprio Estado. Deve-se ter uma visão do Direito como “instrumento de mudanças sociais, radicalização da democracia e valorização dos diversos atores sociais no processo”102.

Compete ao intérprete do Direito o exercício do poder emancipatório que consta da mensagem constitucional, notadamente a atualização do texto por meio das cláusulas abertas e outros mecanismos que a Constituição possibilita103.

98 Muito embora a participação feminina que no Censo Agropecuário 2006 era de 13% do total de produtores tenha

aumentado.

99 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

100 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2001. p. 60.

101 Ibidem.

102 COELHO, Paulo Magalhães da Costa. É possível a construção de uma hermenêutica constitucional

emancipadora na pós-modernidade? Revista de Direito Constitucional e Internacional: RDCI, [s.l.], v. 13, n. 53, p. 7-19, out./dez. 2005. p. 16.

103 OLIVEIRA, Frederico Antonio Lima de; LEITE, George Salomão. Constituições Vivas e Moralmente

Reflexivas como Fatores de Importância para uma Interpretação Constitucional Legítima: Jurisdição e Hermenêutica Constitucional em Homenagem a Lênio Streck. 1. ed. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2017. p. 8.

Essa nova forma de abordagem da Reforma Agrária deve se valer do paradigma pós- positivista, com o primado da Constituição Federal sobre toda e qualquer legislação, por meio do reconhecimento da força normativa da Constituição, a qual é fonte formal e material de direitos e, portanto, de obrigações jurídicas, expressas em suas regras e princípios.

Ao se reconhecer a força normativa da Constituição, seus enunciados deverão ser interpretados como normas jurídicas que obrigam seus destinatários, perdendo força a categoria de normas programáticas enquanto meras recomendações políticas que não poderiam ser jurisdicionalmente garantidas104. É dizer que os cidadãos têm acesso direto à normativa

constitucional105.

Trata-se de uma verdadeira hermenêutica emancipadora, a exigir esforço, criatividade, crítica e pluralismo, cujo vetor fundamental é o homem concreto, histórico106.

Do pós-Positivismo decorrem efeitos práticos aos poderes estatais. Em face do Legislativo, limita-se sua discricionariedade ou liberdade na elaboração das leis. Em face do Judiciário, serve de parâmetro para o controle de constitucionalidade e condiciona a interpretação do sistema jurídico. Em face do Executivo (Administração Pública), impõe-lhe deveres de atuação e fornece fundamento de validade para a prática de atos de aplicação direta e imediata da Constituição, a despeito do legislador ordinário107.

Com efeito, a República Federativa do Brasil enquanto Estado Democrático de Direito deve necessariamente perseguir os fins e objetivos colimados em sua lei máxima, não importa o grau de abstração deles, devendo empreender as políticas públicas necessárias para a promoção do comando constitucional, já que elas são instrumentais e finalísticas à consolidação dos comandos jurídico-políticos da Constituição108.

No que diz respeito à Reforma Agrária, esses objetivos, explícitos ou implícitos, estão concatenados à principiologia própria dessa política (justiça social, função social da terra, acesso à propriedade da terra, permanência na terra daquele que a torna produtiva com o seu trabalho e de sua família, preservação dos recursos naturais renováveis, aumento de produção,

104 REGLA, Josep Aguiló. Do Império da Lei ao Estado Constitucional: dois paradigmas jurídicos em poucas

palavras. Revista Jurídica da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, Rio de Janeiro, v. 1, n. 4, p. 18-19, maio 2010.

105 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A teoria constitucional e o direito alternativo (para uma dogmática constitucional

emancipatória): Homenagem a Carlos Henrique de Carvalho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 39.

106 COELHO, Paulo Magalhães da Costa. É possível a construção de uma hermenêutica constitucional

emancipadora na pós-modernidade? Revista de Direito Constitucional e Internacional: RDCI, [s.l.], v. 13, n. 53, p. 7-19, out./dez. 2005. p. 19

107 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do Direito

Constitucional no Brasil. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. ISSN 1518-4862. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7547. Acesso em: 19 abr. 2018.

condições de progresso social e econômico àqueles que exercem a atividade agrária109), que

merece detida análise, a fim de se viabilizar outros instrumentos legais aptos à produção dos resultados almejados, ainda que não estejam expressamente previstos na legislação.

No Direito Agrário, os princípios relacionam-se à política agrária e assumem papel central na formulação das políticas, modelagem das decisões e na interpretação do direito110,

que, repise-se, deve assumir o papel emancipador das classes menos favorecidas.

Vai além do acesso à terra, devendo prever ações para que os trabalhadores rurais possam produzir, gerar renda, nutrir-se, e ter acesso aos demais direitos fundamentais, saúde, educação, energia e saneamento.

Nesse sentido, a Reforma Agrária deve ser reconhecida como direito social apto a emancipar os menos favorecidos mediante a desconcentração e democratização da estrutura fundiária, fomento da produção de alimentos, geração de ocupação e de renda, combate à fome e à miséria, interiorização de serviços básicos, fixação do homem no campo, promoção da cidadania e da justiça social, diversificação do comércio e dos serviços no meio rural e democratização das estruturas de poder. O modelo de assentamento buscado almeja a viabilidade econômica, sustentabilidade ambiental e o desenvolvimento territorial111.