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O termo agrário, para a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), revela uma aproximação multidisciplinar da agricultura, cobrindo, simultaneamente, aspectos técnicos, econômicos e sociológicos, correspondendo a formas de acesso à propriedade da terra e à maneira de explorá-la62.

Historicamente, o termo “reforma agrária” esteve associado ao processo de alteração da estrutura fundiária, mediante ações patrocinadas e dirigidas pelo Estado, seja a partir de revoluções agrárias, seja de ações conduzidas pelo Estado capitalista.

57 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 797. 58 “Um regime de justiça social será aquele em que cada um deve poder dispor dos meios materiais para viver

confortavelmente segundo as exigências de sua natureza física, espiritual e política. Não aceita as profundas desigualdades, a pobreza absoluta e a miséria”. In: SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 767.

59 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 13. 60 Grau conceitua a ordem econômica como o “conjunto de princípios jurídicos de conformação do processo

econômico, desde uma visão macrojurídica, conformação que se opera mediante o condicionamento da atividade econômica a determinados fins políticos do Estado”. In: GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 68.

61 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 274. 62 IBGE. Censo Agropecuário 2017: resultados definitivos. Brasília: IBGE, 2019. p. 60.

Nos países onde realizada, alterou-se não só a estrutura fundiária, mas também as relações econômicas, políticas e sociais (distribuição de renda, políticas agrícolas, regime de uso de posse da terra, comércio, e relações de trabalho e poder)63.

O conceito legal de Reforma Agrária consta do Estatuto da Terra64, o qual considera

Reforma Agrária: “o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”65.

O mesmo diploma elenca como objetivo da Reforma Agrária o estabelecimento de um “sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio”66.

Contudo, tal conceito, fundado quase que exclusivamente em um processo de redistribuição de terras, não se revela suficiente em um paradigma pós-Constituição de 1988. É que a Carta Política de 1988 se apresenta como um marco histórico de uma virada democrática, tendo reordenado as prioridades do Estado ao erigir como principal fundamento (e princípio) da República a dignidade da pessoa humana, valor supremo em que se assenta toda a ordem jurídica, e por isso deve ser respeitado, protegido e promovido67. É esse princípio

que justifica todo o elenco de direitos fundamentais destinados a assegurar juridicamente a autonomia, a liberdade e uma vida condigna a todos os cidadãos (direitos de liberdade, de igualdade e direitos sociais) 68.

De fato, o constitucionalismo pós-moderno tem o compromisso de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana, em suas dimensões espiritual, cultural, política e material da vida do homem69.

A carta fundante do Estado elenca, também em razão do princípio da dignidade, dentre seus objetivos, a erradicação da pobreza e marginalização, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos. Assim, qualquer medida de reforma agrária deve se revelar

63 FIDELES, Junior Divino. A Justa Indenização na Desapropriação Agrária: como se formam as

superindenizações. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

64 BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras providências. 65 Trata-se do §1º do art. 1º do Estatuto da Terra.

66 Art. 16 do Estatuto da Terra.

67 NOVAIS, Jorge Reis. A Dignidade da Pessoa Humana: Dignidade e direitos fundamentais. Coimbra: Almedina,

2015. v. 1. p. 18.

68 Ibidem. p. 69.

69 COELHO, Paulo Magalhães da Costa. É possível a construção de uma hermenêutica constitucional

emancipadora na pós-modernidade? Revista de Direito Constitucional e Internacional: RDCI, São Paulo, v. 13, n. 53, p. 7-19, out./dez. 2005. p. 13.

compatível com os fundamentos e objetivos do Estado, sob pena de não se revelar constitucional70.

Não é a mera distribuição de terras que irá tornar satisfatória a execução da reforma agrária no Brasil. Deve o Estado fornecer as condições econômicas e financeiras para a garantia de plena ocupação e produtividade, ou seja, a redistribuição de terras deve ser acompanhada de políticas de desenvolvimento rural que propiciem o desenvolvimento do trabalho e da produtividade, armazenamento, transporte, e comercialização da produção, e incentive a fixação do homem no campo, sob pena da nova propriedade (já redistribuída) não cumprir a função social, em verdadeiro círculo pernicioso71.

Com efeito, não se pode limitar os objetivos da Reforma Agrária, muito menos reduzi- los ao atendimento do princípio da justiça social, à promoção do aumento da produtividade e ao estabelecimento de uma classe rural média estável e próspera. Os objetivos são muito mais amplos e a reforma se presta a aumentar o número de proprietários rurais, reduzindo o nível de concentração fundiária, estancar ou inibir o êxodo rural, aumentar o nível de emprego, e saciar parte das necessidades vitais básicas de milhões de brasileiros que vivem em situação de vulnerabilidade social72.

Além da transformação da realidade agrária (intervenção na estrutura fundiária concentrada e disfuncional), a Reforma Agrária visa democratizar a estrutura fundiária, fomentar produção de alimentos, a geração de ocupação e renda, o combate à fome e à miséria, a interiorização de serviços básicos, a fixação do homem no campo, a promoção da cidadania e da justiça social, a diversificação do comércio e dos serviços no meio rural e democratização das estruturas de poder73. Esse é o sentido amplo de Reforma Agrária que mais se coaduna com

os fundamentos e objetivos do texto constitucional.

Uma Reforma Agrária efetiva possibilita o crescimento econômico com distribuição de renda e a construção de uma nação moderna e soberana, transformando o meio rural em meio

70 CARVALHO, Josué Tomazi; FIDELIS, Junior Divino; MACIEL, Marcela Albuquerque. Direito agrário. 2. ed.

Salvador: Jus Podium, 2018. p. 158.

71 ROCHA, Ibrahim; TRECCANI, Girolamo Domenico; BENATTI, José Heder; HABER, Lilian Mendes;

CHAVES, Rogério Arthur Friza. Manual de Direito Agrário Constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 373.

72 MARQUES, Benedito Ferreira; MARQUES, Carla Regina Silva. Direito Agrário Brasileiro. 12. ed. São Paulo:

Atlas, 2017. p. 132.

73 Objetivos da Reforma Agrária segundo o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Disponível em:

ambiente economicamente próspero, socialmente justo, ecologicamente sustentável e democrático74.

A Reforma Agraria já foi defendida por muitos como solução para os problemas urbanos das décadas de 1990 e 2000, por seu potencial para resolver o “desemprego, a falta de moradia, a violência, dentre outros, por ter o potencial de retirar das cidades o excesso populacional empregando-o no campo”75.

A Reforma Agrária, como já revelado anteriormente, ocorre em todo o mundo, em atendimento às vicissitudes e interesses locais. Por tal razão está expressamente prevista no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas em 19 de dezembro de 196676, devendo os Estados

reconhecerem “o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida” e “melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários”. Trata-se de direito fundamental de segunda geração.

Outro aspecto relevante a ser considerado é a principiologia própria desse microssistema jurídico.

Os princípios são normas gerais de maior grau de abstração e menor densidade normativa, que sintetizam, fundamentam e estruturam um sistema. Dispõem de importante funcionalidade e prestam-se ao processo de interpretação e integração do Direito77.

Na doutrina de Direito Agrário apresentam-se muitos princípios, que serão expostos abaixo.

O princípio da realização da justiça social encontra-se em vários artigos ao longo do texto constitucional, seja em seus objetivos (art. 3º), seja como fundamento da ordem econômica (art. 170) e social (art. 193). Em um regime de justiça social, os indivíduos dispõem dos meios necessários para viver uma vida digna, tendo assegurado um padrão de vida

74 BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. II Plano Nacional de Reforma Agrária: Paz, Produção e

Qualidade de Vida no Meio Rural. 2005. Disponível em:

http://www.incra.gov.br/servicos/publicacoes/pnra/file/482-ii-pnra. Acesso em: 30 jul. 2019.

75 FIDELIS, Junior Divino. A Justa Indenização da Desapropriação Agrária: como se formam as

superindenizações. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. p. 60-61.

76 BRASIL. Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação.

77 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A teoria constitucional e o direito alternativo (para uma dogmática constitucional

suficiente para o sustento próprio e da família, a saúde e o bem-estar. Combatem-se a desigualdade, a fome e a miséria. Trata-se de um princípio geral, que tem como consectários uma melhor distribuição de terras, a função social da propriedade, o pleno emprego e a justa remuneração no campo78.

A função social da propriedade ocupa lugar de destaque na Reforma Agrária, uma vez que seu descumprimento é passível de desapropriação-sanção, por interesse social. A propriedade, por influência sobretudo das ideias de Leon Duguit e da doutrina social da Igreja Católica (encíclica Rerum Novarum), outrora considerada direito individual e absoluto pela doutrina liberal, deve observar sua função social de cultivo e produção a bem da coletividade. A legitimação da propriedade do bem viria pelo atendimento de sua função social, conforme as necessidades do momento histórico, e não pelo mero título de propriedade.

Segundo a moderna doutrina, a função social é elemento intrínseco da propriedade (não é princípio programático ou limite exterior ao direito), pressuposto do conceito de propriedade (que deve ser aberto, atemporal, axiológico, que se densifica, adquirindo concretização), elemento estrutural do instituto, de forma que a sua ausência identifica a situação apontada como outra forma de apropriação, que não o direito de propriedade79.

Embora possa ser considerado implícito na Constituição de 1934, esse princípio é expresso no Estatuto da Terra, de 1964, e na Constituição de 1967 (art. 157), e ganha novos contornos e abrangência com a Constituição Federal de 1988 ao estabelecer que a função social será atendida com o cumprimento simultâneo do aproveitamento racional e adequado, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei; a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; a observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Portanto, a funcionalização da propriedade, para o direito brasileiro, somente será atendida mediante o cumprimento das dimensões econômica, ambiental, social e de bem- estar80.

No mais, há o princípio da proteção à propriedade e posse familiar. A primeira definida

78 CARVALHO, Josué Tomazi; FIDELIS, Junior Divino; MACIEL, Marcela Albuquerque. Direito Agrário. 2.

ed. Salvador: Jus Podium, 2018. p. 39.

79 TORRES, Marcos Alcino. Impacto das novas ideias na dogmática do Direito de Propriedade: A multiplicidade

dominial. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 275-328, 2011. p. 306.

80 Registre-se que, nos termos do art. 185 da Constituição Federal, são insuscetíveis de desapropriação para fins

de reforma agrária, a propriedade produtiva, e a pequena e média propriedade rural, desde que seu proprietário não possua outra, o que termina por restringir o alcance do princípio da função social da propriedade e dar ensejo a interpretações que negam, em qualquer caso, a possibilidade de desapropriação da propriedade produtiva, ainda que descumpridos os demais requisitos da função social.

como o imóvel rural explorado diretamente e pessoalmente pelo agricultor e sua família, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, podendo, eventualmente, contar com o trabalho de terceiros81.

A própria Constituição Federal proíbe a penhora da pequena propriedade rural, desde que trabalhada pela família, ainda que para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, devendo a lei incentivar o seu desenvolvimento82.

Trata-se de evidente proteção à agricultura familiar, a qual desempenha relevante papel na produção de alimentos (abastecimento interno, evitando a importação de alimentos), na criação de empregos no meio rural, na sustentabilidade (em razão de sua forma de vida e produção, adaptadas aos recursos naturais e à biodiversidade dos biomas nacionais) e no desenvolvimento do país. São cerca de 5,4 milhões de famílias (20 milhões de pessoas), que ocupam 85% das unidades produtivas agrícolas do país (menos de 25% da área agrícola total), e responsáveis por 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros83.

Ao lado desses princípios, Marques84 cita outros, como o monopólio legislativo da

União; a utilização da terra sobrepõe-se à titulação dominial; a dicotomia do Direito Agrário, uma vez que a reforma agrária não pode ser pensada sem a política de desenvolvimento correspondente; a constante necessidade da reformulação da estrutura fundiária, o fortalecimento do espírito comunitário, por meio de cooperativas e associações; o combate ao latifúndio, ao minifúndio, ao êxodo rural, à exploração predatória e aos mercenários da terra; a privatização dos imóveis rurais públicos, o fortalecimento da empresa agrária, o dimensionamento eficaz das áreas exploráveis; a proteção ao trabalhador rural; a conservação dos recursos naturais e a proteção do meio ambiente.

Por fim, vale destacar o documento intitulado Declaração Final da Conferência Internacional sobre a Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural85, ocorrida em março de 2006,

em Porto Alegre/RS, na qual Estados soberanos ali reunidos acordaram acreditar no papel essencial da reforma agrária e do desenvolvimento rural para a promoção do desenvolvimento sustentável, o que inclui a concretização dos direitos humanos, segurança alimentar, erradicação

81 Art. 4º, II, do Estatuto da Terra. 82 Art. 5º, XXVI, da Constituição Federal.

83 SILVA, Hur Ben Corrêa da. Políticas para a Agricultura Familiar no Brasil. In: ORGANIZAÇÃO DAS

NAÇÕES UNIDAS PARA A ALIMENTAÇÃO E AGRICULTURA. Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável na CPLP. [S.l.: s.n.], 2018. p. 48-53. Disponível em: https://www.gpp.pt/images/MaisGPP/Publicacoes/Agricultura-Familiar.pdf. Acesso em: 13 fev. 2020.

84 MARQUES, Benedito Ferreira; MARQUES, Carla Regina Silva. Direito Agrário Brasileiro. 12. ed. São Paulo:

Atlas, 2017. p. 19.

85 Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/consea/eventos/plenarias/documentos/2006/declaracao-final-da-

da pobreza e fortalecimento da justiça social, e concordaram com uma série de princípios, dentre os quais: diálogo nacional e inclusivo, como mecanismo dominante para se assegurar progresso significativo com relação à reforma agrária e ao desenvolvimento rural; estabelecimento de apropriada reforma agrária, especialmente nas áreas com fortes disparidades sociais, pobreza e insegurança alimentar, como forma a ampliar o acesso sustentável e o controle da terra e recursos relacionados; sustentar uma abordagem participativa baseada em direitos econômicos, sociais e culturais e na boa governança para a gestão igualitária da terra, água, florestas e recursos naturais dentro do contexto das legislações nacionais, enfocando o desenvolvimento sustentável e a superação das desigualdades para erradicar a pobreza e a fome; adoção de políticas e programas para o desenvolvimento rural que promovam a descentralização por intermédio do empoderamento local, com especial atenção aos pobres, a fim de superar a exclusão e a desigualdade social e de promover o desenvolvimento sustentável, a igualdade de gênero e novas oportunidades econômicas e de emprego, dentre outros.

O protagonismo do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) é do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a quem compete promovê-lo em articulação com os demais órgãos e entidades da administração pública, direta e indireta, federal, distrital, estadual e municipal, responsáveis pelas políticas públicas complementares e necessárias à efetivação do Programa86.

2.5 A REFORMA AGRÁRIA ENQUANTO DIREITO EMANCIPADOR DAS CLASSES