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O Estado manteve, durante a Modernidade, papel central nas comunicações sociais, desde a formação de sentimentos de pertencimento e identidade, passando pela economia e a política, até a regulação da vida particular dos cidadãos. É possível garantir que o sistema jurídico foi aquele mais influenciado pelas comunicações centralizadas na figura estatal, já que, ainda que se possam pontuar algumas ordens jurídicas desligadas da figura do Estado – caso da antiga Lex Mercatoria, que será analisada a frente –, este deteve o monopólio na produção de sentido referente ao Direito.

Essa centralização do Direito na figura do Estado, como visto anteriormente, tem vez em razão da moderna soberania estatal, com a inexistência de comunicações jurídicas fora dessa figura, o que se consolidou com a Paz de Westfália – série de tratados, firmados em 1648 na cidade alemã, responsáveis pelo encerramento de alguns conflitos envolvendo as potências à época, dando início ao que designa como Modernidade, retirando proeminência da Igreja e sobrelevando o poder dos Estados, estabelecendo sua soberania114.

Com o enfraquecimento do monopólio estatal de produção de sentidos, pela paulatina relativização da soberania dos Estados, e a evolução das sociedades para uma forma

112 ROCHA, Leonel Severo; DA LUZ, Cícero Krupp. Lex mercatoria and governance: the polycontexturality

between law and state. Revista da Faculdade de Direito Sul de Minas, v. 28, Pouso Alegre, p. 105-126, jan./jun. 2009, p. 108, tradução nossa. Texto original: “Thus, in globalization, decisions must be taken in an urgent way, faster than before, rendering difficult the idea of questioning, which has to bind the past, and, at the same time, disconnect the past, to bind the future and at the same time disconnect the future, still trying to make law play this role”.

113 ROCHA, Leonel Severo. Observações sobre a observação Luhmanniana. In: ROCHA, Leonel Severo; KING,

MICHAEL; SCHWARTZ, Germano. A verdade sobre a autopoiese no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 30.

114 HELDT, David. La democracia y el orden global: del estado moderno al gobierno cosmopolita. Editorial

funcionalmente diferenciada, para apreensão da hipercomplexidade, as comunicações foram afastando a ideia de um centro único para cada sistema comunicativo, sendo reconhecida a multiplicidade de centros emissores e receptores de sentido.

A crescente complexidade social oferece tantas possibilidades de escolha, que não se pode falar em unicidade na racionalização de sentido. Ou seja, não pode o Estado estabilizar todas as expectativas, cognitivas e normativas, e forma satisfatória, sob pena de incorrer naquela lógica cartesiana, colocada no primeiro item do presente trabalho, de simplificação dos fenômenos sociais, o que seria um retrocesso, já que essa lógica castra, de forma violenta, a complexidade e, por consequência, reduz, de maneira fictícia, a seletividade.

De forma gradual, o Direito, cognitivamente aberto, passou a observar fenômenos jurídicos para além do Estado. A policontexturalidade, a pluralidade de autodescrições oriundas de diversas racionalidades parciais, é visualizada no sistema jurídico, passando a um reconhecimento do Direito como um sistema com multiplicidade de centros emissores de juridicidade, sendo que as pesquisas contemporâneas dão conta da existência de um pluralismo jurídico na sociedade complexa, desde paradigmas localistas até uma transnacionalização do Direito.

A hipercomplexidade e a dupla contingência demandam que o Direito, enquanto sistema social comunicativo funcionalmente diferenciado, evolua, conjuntamente com a sociedade, a fim de apreender e compreender essa complexidade, através de uma sofisticada observação de segunda ordem, reconhecendo, assim, a autopoiese do sistema jurídico como categoria necessária para essa evolução.

Se na Modernidade, a centralização do Direito na figura do Estado identificava o fenômeno jurídico com os atos estatais, negando juridicidade às manifestações desligadas desse modelo, na esteira da globalização (difusão espacial das comunicações), a multiplicidade de centros de racionalização de sentido faz com que não seja possível atribuir uma existência unitária aos acontecimentos sociais115.

Esta racionalidade monocontextural foi importante e imprescindível para a história do pensamento – em verdade, segue sendo possível e necessária –, visto os avanços alcançados pelo método cartesiano e pelo positivismo, mas demonstra ser insuficiente para a descrição do cenário hipercomplexo atual, com variadas formas de comunicação e pluralidade de centros

115 FORNASIER, Mateus de Oliveira; FERREIRA, Luciano Vaz. Complexidade, globalização e regulação

jurídica: a conduta das empresas transnacionais e suas possibilidades de normatização. Scientia Iuris, v. 19, Londrina, p. 73-100, 2015, p. 76.

emissores de sentido. “O Estado-nação soberano da modernidade entra em colapso, ou, ao menos, esse conceito é transformado”116.

Para compreensão do fenômeno da produção plural de sentidos é necessária uma reflexão autopoiética da globalização, que passa por um aprofundamento da questão da policontexturalidade, noção desenvolvida por Gotthard Günther. Para o autor, a lógica aristotélica seria monocontextural, ou seja, algo é “conforme a norma” ou “não conforme a norma”, impossibilitando uma terceira opção, racionalidade insuficiente para o atual estágio de hipercomplexidade, onde variadas lógicas são possíveis, formando várias contexturalidades ordenadas pelo binômio “conforme/não conforme”, que se retro-observam em uma estrutura de extrema complexidade.

Günther define que uma contexturalidade é um domínio lógico de uma estrutura valorada estritamente em dois valores, sendo que seu alcance é determinado pelo uso do TND (lógica Tertium non Datur, a lei do terceiro excluído ou sem terceiro elemento possível) como operador, de tal modo que a generalização das alternativas que a lógica TND produz não possa ser ultrapassada. Ou seja, se o Universo for considerado como uma contextura composta de um número infinito de estruturas “bivaloradas” que são intrinsicamente paralelas e interpenetradas umas nas outras, cada entidade observável nesse Universo pode ser considerada uma intersecção de um número ilimitado de contexturas duplamente valoradas117. Nesse cenário, há uma pluralidade de contexturalidades, uma situação de policontexturalidade, usada por Luhmann para definir a sociedade como “um sistema policontextural que permite um número infindável de descrições sobre sua complexidade”118.

A policontexturalide se torna, em um cenário onde o Direito é fragmentado em um pluralismo onde o Estado é apenas mais uma de suas organizações, um referente decisivo para a configuração do sentido. O incremento gradual de complexidade social levou a um

116 ROCHA, Leonel Severo; DA LUZ, Cícero Krupp. Lex mercatoria and governance: the polycontexturality

between law and state. Revista da Faculdade de Direito Sul de Minas, v. 28, Pouso Alegre, p. 105-126, jan./jun. 2009, p. 117, tradução nossa. Texto original: “The sovereign State-nation of modernity starts to collapse, or at the least its concept is transformed”.

117 GÜNTHER, Gotthard. Life as poly-contexturality. Vorkender, [S. 1.], fev. 2004. Disponível em:

<http://www.vordenker.de/ggphilosophy/gg_life_as_polycontexturality.pdf>. Acesso em: 27 out. 2016, p. 6, tradução nossa. Texto original: “contexturality is a logical domain of a strictly two-valued structure and its range is determined by using the tnd as an operator such that the generality of an alternative which tnd produces cannot be surpassed. In other words: if we consider the Universe as a compound-contexture it must be composed of an innumerable number of two-valued structural regions which partly parallel each other or partly penetrate each other since, as we pointed out, each observable entity in this Universe must be considered an intersection of an unlimited number of two-valued contextures”.

118 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate, México: Herder, 2007,

p. 21-22, tradução nossa. Texto original: “un sistema policontextural que permite un sin numero de descripciones acerca de su complejidad”.

desintrincamento de lei, poder e saber da figura estatal, bem como ofereceu ao homem a liberdade religiosa e econômica, passando por um amplo processo de diferenciação sistêmico- funcional, onde a sociedade se torna multicêntrica e policontextural, processo repetido nos sistemas funcionais.

Dita policontexturalidade e multicentrismo da sociedade implica que a diferença entre sistema e ambiente se desenvolve em diversos âmbitos de comunicação, ou seja, se afirmam distintas pretensões contrapostas de autonomia sistêmica. Além disso, no momento em toda diferença se transforma em um “centro do mundo”, há uma pluralidade de autodescrições da sociedade, a partir de cada um desses múltiplos centros, levando à formação de inúmeras racionalidades conflitantes119.

A unidade de contexto dos discursos é quebrada pela policontexturalidade. Não há mais uma única contextura, que na modernidade fora legada ao soberano, ao Estado, mas, sim, policontexturalidades. Ou seja, deixa de haver um centro da sociedade que possa impor-se contra as diferenças, ocupando uma posição privilegiada para observação e descrição social, a partir do qual todos os demais sistemas possam ser compreendidos.

Essa pluralidade de descrições da sociedade, em razão da policontexturalidade fruto da diferenciação funcional, nos leva a uma pluralidade de códigos-diferença orientadores da comunicação nos diversos campos sociais:

A diferença “ter/não ter” prevalece no sistema econômico, o código “poder/não poder” tem o primado no político e a distinção “lícito/ilícito” predomina no jurídico. Na ciência, arte, educação, religião e no amor, têm o primado, respectivamente, os códigos “verdadeiro/falso”, “belo/feio” (“afinado versus desafinado esteticamente”), “aprovação/reprovação” (enquanto código-limite da diferença gradual “aprender/não aprender”, expressa nas notas e predicados”, “transcendente/imanente” e o código amoroso (“prazer/amor” ou “amor/desamor”), que serve de base à formação da família nuclear moderna120.

A despeito das possíveis tensões entre diversas racionalidades parciais que declaram universalidade, a inexistência de um centro único privilegiado de observação da sociedade não pode significar, no sentido contrário, autismo de alguma dessas esferas. O processo de diferenciação não se confunde com isolamento, absolutamente, o que se pretende descrever é uma intensa capacidade cognitiva perante o entorno (abertura cognitiva) com fim de uma integração social e sistêmica da sociedade complexa.

119 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. 1. ed. São Paulo: WNF Martins Fontes, 2009, p. 23. 120 Ibid., p. 24.

A teoria luhmanniana pressupõe a autopoiese dos sistemas funcionalmente diferenciados, processo que imprescinde da comunicação. A sociedade multicêntrica, formada de uma pluralidade de esferas comunicativas, autônomas e conflitantes entre si, precisa construir mecanismos possíveis de estabelecerem vínculos de aprendizado e influência entre essas esferas sociais.

Para compreensão desse fenômeno de vínculos construtivos entre diferentes esferas de racionalização de sentidos, Luhmann desenvolveu, a partir da teoria biológica de Humberto Maturana e Francisco Varela, o conceito sociológico de acoplamento estrutural121, permitindo que os sistemas funcionalmente diferenciados realizem trocas comunicativas, visto que, através dos “acoplamentos estruturais, um sistema pode se ligar a condições altamente complexas do entorno sem a necessidade de absorver ou reconstruir sua complexidade”122.

A figura do acoplamento estrutural é usada para explicar o processo de promoção e filtragem de influências e instigações de reciprocidade entre diversos sistemas, funcionalmente diferenciados, de maneira duradoura, estável e concentrada, excluindo certas influências e facilitando outras, sendo que essa vinculação no plano estrutural permite que os sistemas acoplados mantenham sua autonomia (fechamento operativo). A relação entre os sistemas acoplados estruturalmente passa a ser, simultaneamente, de independência e de dependência, ou seja, as estruturas de um sistema passam a ser relevantes, e mesmo indispensáveis, à reprodução das estruturas de outro sistema e vice-versa123.

Pode-se afirmar, segundo Luhmann, que os acoplamentos estruturais digitalizam relações analógicas, transformam situações analógicas em digitais sem que o ambiente influencie o sistema através delas124. Na relação externa entre sociedade (sistemas comunicativos) e consciência a linguagem atua como acoplamento estrutural, permitindo “transformar a simples justaposição contínua em sucessão descontinua”125. A linguagem torna possível a influência recíproca entre comunicações e representações mentais, excluindo e

121 Categoria que supera os acoplamentos operativos, meios que possibilitam relações pontuais e momentâneas no

plano das operações sistêmicas, contudo, são eventos não estáveis assentados em certa ambiguidade de identificação, já que a identidade desses acontecimentos individuais é sempre gerada pela ação recursiva do sistema. LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Tradução para o espanhol de Javier Torres Nafarrate, com colaboração de Brunhilde Erker, Silvia Pappe e Luis Felipe Segura. 2ª edição. Cidade do México: Herder, Universidad Iberoamericana, 2005, p. 316.

122 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução para o espanhol de Javier Torres Nafarrate.

México: Ed. Herder, Universidad Iberoamericana, 2007, p. 78, tradução nossa. Texto original: “los acoplamientos estructurales un sistema puede empalmarse a condiciones altamente complejas del entorno sin necesidad de absorber o reconstruir su complejidad”.

123 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. 1. ed. São Paulo: WNF Martins Fontes, 2009, p. 35. 124 LUHMANN, Niklas. Op. cit, p. 73.

125 Ibid., p. 78, tradução nossa. Texto original: “transformar la simple yuxtaposición continua en sucesión

selecionando fluxos de sentido entre os sistemas acoplados, com isso, os conteúdos das comunicações – entendidas como unidades elementares formadas pela síntese de mensagem, informação e compreensão – são percebidos no interior da consciência, contudo, com uma comutação interna de sentido (autopoiese)126.

A partir dessa compreensão, é possível visualizar uma série de acoplamentos estruturais nas relações dos subsistemas da sociedade, responsáveis por vincular, de forma estável, esses processos sociais de sistemas autônomos. A despeito da impossibilidade de imaginar todos os acoplamentos estruturais havidos entre todos os sistemas sociais – Luhmann, sequer, estabeleceu um número limite de sistemas sociais, importou em apontar e trabalhar sobre alguns durante sua vida acadêmica, o que não importa dizer que exista um rol fechado de sistemas na sociedade, o que seria, inclusive, um contrassenso, já que restaria por simplificar a realidade da sociedade, justamente o que a teoria dos sistemas sociais autopoiéticos desconstrói com a categoria da complexidade -, Luhmann assinalou alguns exemplos que imaginou serem importantes para a compreensão da função dessa categoria.

O acoplamento entre política e economia se dá, primeiramente, através dos impostos e taxas. Ainda que toda disposição de valores (dinheiro) seja realizado como uma comunicação do sistema econômico, tal disposição pode ser condicionada politicamente e, com isso, deixe de orientar-se para o lucro, como o uso do orçamento do Estado. Entretanto, o uso de dinheiro continua obedecendo às leis do mercado, já que não distinção se algo foi comprado com dinheiro público ou privado. Há de ser lembrado, também, que a atuação do Estado não se restringe à cobrança de tributos, senão, que é o próprio Estado (que comunica a partir do sistema político) o responsável pela impressão das cédulas da moeda, por isso, a relação entre o sistema político e o Banco Central deve ser considerada um acoplamento estrutural, principalmente quando há uma maior autonomia do último127.

Na relação entre Direito e Economia, os contratos e a propriedade são momentos de acoplamento estrutural entre esses sistemas. Em sua qualidade jurídica, tais dispositivos fornecem as racionalidades de direitos e deveres, no sentido de obrigações constituídas. Para as comunicações econômicas, formam o código próprio desse sistema, “ter/não-ter”, e são condições das operações sistêmicas, “pagamentos no âmbito de transações”. O acoplamento entre Direito e Economia mostra um alto grau de irritação intersistêmica, já que pode ser sentida em diversos contextos, já que uma mesma situação pode ter o sentido de pagamento, para a

126 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. 1. ed. São Paulo: WNF Martins Fontes, 2009. p. 36.

127 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução para o espanhol de Javier Torres Nafarrate.

economia, e de validade jurídica de uma demanda por descumprimento de um contra, para o direito, ou seja, o sentido econômico e o sentido jurídico de um contrato permanecem específicos para cada sistema. Ainda assim, a economia não pode prescindir de institutos jurídicos para seu desenvolvimento, bem como o direito observa a dinâmica veloz das trocas econômicas para manter e inovar os institutos da propriedade e do contrato128.

Luhmann considera, também, que a Ciência e o sistema educativo se acoplam estruturalmente como forma de organização das universidades. A Política se acopla com a Ciência com as assessorias prestadas pelos experts, egressos das universidades, acoplamento há pouco mencionado. Na relação entre educação e economia, especificamente no sistema de empregos e contratações, Luhmann destaca os diplomas e certificados como acoplamentos estruturais129. É possível citar, ainda, que as galerias de arte são resultado da relação entre os sistemas da economia e das artes; a opinião pública como interação entre política e o sistemas dos meios de comunicação em massa.

Por fim, como último exemplo de acoplamento estrutural, cabe destacar aquele que demonstra ter um peso diferenciado na sociedade complexa, qual seja, a relação entre Política e Direito, que se dá através da Constituição. O sistema político é vinculado ao direito, quando se estabelece que ações contrárias à lei envolvam o fracasso político. No outro lado, a Constituição permite que o sistema jurídico seja inovado mediante legislações politicamente induzidas. A política é administrada de acordo com aquilo que é legal e economicamente (acoplamento política/economia) possível, enquanto o direito abre espaço para que se modele aquilo que, politicamente, fará possível a vontade democrática. A forma de atuar do Estado se vincula às regras juridicamente idôneas. Por exemplo, os direitos fundamentais se generalizam como programas de valor da atividade estatal. Nota-se, portanto, que a importância política de uma lei é algo distinto de sua validade jurídica130.

A categoria do acoplamento estrutural, entendida como mecanismos de interpenetrações concentradas e duradouras entre diferentes sistemas sociais, é fundamental para garantir a evolução da sociedade funcionalmente diferenciada, permitindo a autopoiese dos sistemas parciais. Ao sistema jurídico, principal objeto do presente trabalho, essa categoria possibilita a observação de segunda ordem, no sentido de desparadoxalizar o paradoxo da problemática da decisão.

128 LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Tradução para o espanhol de Javier Torres Nafarrate.

México: Ed. Herder, Universidad Iberoamericana, 2007, p. 620.

129 Ibid., p. 622-623. 130 Ibid., p. 620-621.

A relação entre o sistema do Direito e demais sistemas funcionais da sociedade é responsável por possibilitar uma maior apreensão e compreensão da complexidade do ambiente e, paradoxalmente, incrementa a complexidade estruturada no interior do sistema jurídico, sendo que, dentro da estrutura do Direito é possível uma observação plural das comunicações jurídicas.

Não apenas a sociedade mundial é multicêntrica, mas também o Direito apresenta tal característica, com a ascensão de diversas ordens (centros) emissoras de juridicidade, de tal maneira que, na perspectiva de um centro (juízes e tribunais), o centro de uma outra ordem jurídica constitui uma periferia131.

O Direito também é afetado por esta descrita fragmentação, de tal modo que seu funcionamento efetivo dependa das suas relações para com as outras instâncias sociais. Ou seja, o (sub)sistema jurídico (co)evolui com racionalidades diferentes (de outros sistemas sociais), num cenário em que o Estado não mais detém a univocidade de emanação normativa social. Uma pluralidade de atores sociais diferenciados em papéis e culturas emerge, redundando numa pluralidade de fontes normativas e de sujeitos de direito merecedores de proteção especial (consumidores, refugiados, hipossuficientes, etc.)132.

O Direito policontextural é formado pela introdução de uma ruptura histórica da sociedade hipercomplexa e sua reorganização espaço-temporal pela globalização, a policontexturalidade se mostra como o lado operativo da própria observação hipercomplexa133. Daí a possibilidade de se falar em pluralismo jurídico; não apenas uma pluralidade de ordens jurídicas estatais, mas, sim, uma pluralidade de centros emissores de normatividade e juridicidade, já que o sistema do Direito não é formado somente pelo direito positivo estatal. Esse pluralismo de centros comunicativos dentro do sistema jurídico contrapõe-se a concepção unitária, homogênea e centralizadora do “monismo”, com isso, designa a existência de variadas realidades, uma multiplicidade de formas de ação prática e diversidade de campos sociais com particularidade própria134.

131 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. 1. ed. São Paulo: WNF Martins Fontes, 2009, p. 117.

132 FORNASIER, Mateus de Oliveira; FERREIRA, Luciano Vaz. Complexidade, globalização e regulação

jurídica: a conduta das empresas transnacionais e suas possibilidades de normatização. Scientia Iuris, v. 19, Londrina, p. 73-100, 2015, p. 77.

133 ROCHA, Leonel Severo; DA LUZ, Cícero Krupp. Lex mercatoria and governance: the polycontexturality

between law and state. Revista da Faculdade de Direito Sul de Minas, v. 28, Pouso Alegre, p. 105-126, jan./jun. 2009, p. 115, tradução nossa. Texto original: “The polycontextural law is formed by the introduction of a historical rupture of the hypercomplex society and its spatio-temporal reorganization by the globalization. Polycontexturality shows itself as the operative side of the own hypercomplex Observation”.

134 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura do Direito. 3. ed. São

O que se observa, a partir desse direito multicêntrico, é uma proliferação de diferentes ordens jurídicas dentro do sistema do Direito:

[...] dentro de um mesmo sistema funcional da sociedade mundial moderna, o direito, proliferam ordens jurídicas diferenciadas, subordinadas ao mesmo código binário, isto é, “lícito/ilícito”, mas com diversos programas e critérios. Verifica-se, dessa maneira,