• Nenhum resultado encontrado

4.2 Casos de reflexividade

4.2.4 Oscar Pistorius e o esporte como reconhecimento das diferenças

Oscar Leonard Carl Pistorius foi responsável por um dos momentos mais emblemáticos da história recente do esporte. Pistorius é um velocista sul-africano biamputado nos membros inferiores, medalhista de bronze na prova dos 100 metros em Atenas/2004, prata nos 200 metros em Londres/2012 e ouro nos 100 metros em Pequim 2008, nos 200 metros em Atenas/2004 e Pequim/2008, e outro nos 400 metros em Pequim/2008. Porém, para além do sucesso esportivo na seara paraolímpica, Oscar Pistorius se tornou, em 04 de agosto de 2012337, o primeiro atleta amputado a disputar, em igualdade de condições, uma prova para atletas sem deficiências e obteve desempenho razoável, alcançando uma das semifinais na prova dos 400 metros

336 TEUBNER, Gunther. Autopoiesis and steering: how politics profits from the normative surplus of capital. In:

VELD, Roeland In’t; SCHAAP, Linze; TERMEER, Catrien; VAN TWIST, Mark (eds.). Autopoiesis and

configuration theory: new approaches to social steering. Kluwer: Boston, 1991, p. 136.

337 Oscar Pistorius, o primeiro corredor sem pernas a participar de uma Olímpiada. Galileu. Versão Online.

Disponível na internet em: <http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI312694-17770,00- OSCAR+PISTORIUS+O+PRIMEIRO+CORREDOR+SEM+PERNAS+A+PARTICIPAR+DE+UMA+OLIMPI AD.html>. Acesso em 15 out. 2016.

individuais e a final do revezamento 4x400 metros338. Assim, ao competir nas Paraolimpíadas de Londres/2012, em setembro do mesmo ano, Pistorius se tornou o primeiro indivíduo a competir nos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Verão em uma mesma edição, fato que se tornou notório na história do esporte, alçando o mesmo ao patamar de celebridade mundial. Entretanto, para que Pistorius pudesse disputar as Olímpiadas de 2012, através de uma autorização do Tribunal Arbitral do Esporte, houve um longo caminho a ser percorrido, e mais de quatro anos de espera para que uma decisão paradigmática como essa tivesse efeito.

Oscar Pistorius nasceu com uma condição física única, já que ausentes os ossos da fíbula, que fazem a sustentação da parte inferior das pernas nos humanos. Com isso, aos onze meses de idade foi submetido a procedimento cirúrgico para amputação de seus membros inferiores, logo abaixo dos joelhos, o que o obrigou, desde a infância, a utilizar-se de próteses. A despeito de sua condição genética, Pistorius sempre disputou provas esportivas, desde a escola, iniciando suas nas competições de atletismo em 2004, com sucesso praticamente instantâneo e medalhas de bronze e ouro nos Jogos Paraolímpicos de Atenas/2004, fazendo uso das próteses profissionais Cheetah Flex-Foot339.

A partir desse sucesso, Pistorius passou a ser convidado para participar de eventos internacionais e disputas com atletas não amputados, obtendo alguns resultados expressivos, como um sexto lugar nos 400 metros do Campeonato Sul-Africano de Atletismo, em 2005; e um segundo lugar, no início de 2007, na mesma prova. O atleta recebera convite para participar do Grande Prêmio de Glasgow de Atletismo, programado para junho de 2007, porém, a Associação Internacional das Federações de Atletismo (IAAF, na sigla em inglês) interveio e vedou a participação, tendo em vista uma alteração nas regras da Federação, acontecida em março de 2007, incorporando a alínea ‘e’ ao artigo 144.2 das Regras de Competição da IAAF, proibindo o “uso de qualquer dispositivo tecnológico que incorpore molas, rodas ou qualquer outro elemento que proporcione, àquele que utiliza, vantagem sobre outro atleta que não faça uso de tal dispositivo”340.

Após a referida alteração nas regras da IAAF, foi garantido o direito de Pistorius de competir até que houvessem comprovações científicas sobre as próteses lhe garantirem, ou não,

338 Biamputado, Oscar Pistorius faz história e avança à semifinal dos 400m. UOL. Disponível na internet em:

<http://olimpiadas.uol.com.br/noticias/redacao/2012/08/04/oscar-pistorius-faz-historia-e-avanca-a-semifinal-dos- 400-m.htm>. Acesso em 15 out. 2016.

339 Maiores informações disponíveis na página da Össur HF, empresa islandesa responsável pela fabricação.

Disponível na internet em: <https://www.ossur.com/prosthetic-solutions/products/sport-solutions/cheetah>. Acesso em 15 out. 2016.

340 TAS. Pistorius v. IAAF, 2008, p. 3. Disponível na internet em: <http://jurisprudence.tas-

vantagem sobre outros atletas não amputados. Assim, a partir de julho de 2007, em uma série de eventos que o atleta participou, passaram a ser realizados testes de velocidade, aceleração, consumo de energia, com a finalidade de obter resultados conclusivos.

A IAAF determinou uma série estudos científicos, realizados pelo Professor Peter Brüggemann, responsável pelo Instituto de Biomecânica e Ortopedia da Universidade Alemã do Esporte, em Colônia. Os estudos, com participação do próprio Oscar Pistorius e outros atletas amputados, foram condensados no “Relatório de Colônia”, com a seguinte conclusão:

A hipótese de que a capacidade metabólica do amputado transtibial é maior do que a dos homólogos saudáveis foi rejeitada. Os testes metabólicos indicaram uma capacidade aeróbia inferior do amputado em relação aos demais. Na corrida de 400 metros, a média de VO2 (consumo máximo de oxigênio) do atleta deficiente foi de 25% menor do que o consumo de oxigênio dos demais, que alcançaram aproximadamente o mesmo tempo final. O conjunto cinético das articulações do tornozelo das pernas e da “articulação do tornozelo” artificial da prótese são significativamente diferentes. O retorno de energia foi claramente mais elevado nas próteses do que nas articulações do tornozelo humano. A cinética das articulações do joelho e do quadril também foram afetados pelas próteses durante a postura [posição de arrancada]. A fase de balanço não demonstrou quaisquer vantagens para as pernas naturais em relação aos membros artificiais. No geral, o biamputado transtibial recebeu vantagens biomecânicas significativas pelas próteses em comparação com corridas com as pernas humanas naturais. A hipótese de que as próteses levam a desvantagens biomecânicas foi rejeitada. Finalmente, foi demonstrado que uma corrida de velocidade com a prótese Cheetah é uma forma diferente de locomoção do que correr com as pernas humanas naturais. A locomoção “saltando” se relaciona com um menor custo metabólico341.

A parti do Relatório de Colônia, em janeiro de 2008, o Conselho da IAAF decidiu que uma corrida de velocidade com próteses necessitava de um menor esforço mecânico para levantar o corpo e a perda de energia resultante da utilização das mesmas era significativamente inferior em relação ao tornozelo humano, levando a consideração que as próteses Cheetah Flex- Foot se enquadram como dispositivo técnico que proporciona, àquele que as utilizar, vantagens sobre outros atletas, contrário ao novo teor do artigo 144.2, alínea “e” das Regras de

341 TAS. Pistorius v. IAAF, 2008, p. 4. Tradução nossa: Texto original: “The hypothesis that the transtibial

amputee’s metabolic capacity is higher than that of the healthy counterparts was rejected. The metabolic tests indicated a lower aerobic capacity of the amputee than of the controls. In the 400 m race the handicapped athlete’s VO2 uptake was 25% lower than the oxygen consumption of the sound controls, which achieved about the same final time. The joint kinetics of the ankle joints of the sound legs and the “artificial ankle joint” of the prosthesis were found to be significantly different. Energy return was clearly higher in the prostheses than in the human ankle joints. The kinetics of knee and hip joints were also affected by the prostheses during stance. The swing phase did not demonstrate any advantages for the natural legs in relation with artificial limbs. In total the double transtibial amputee received significant biomechanical advantages by the prosthesis in comparison to sprinting with natural human legs. The hypothesis that the prostheses lead to biomechanical disadvantages was rejected. Finally it was shown that fast running with the dedicated Cheetah prosthesis is a different kind of locomotion than sprinting with natural human legs. The “bouncing” locomotion is related to lower metabolic cost”. Disponível na internet em: <http://jurisprudence.tas- cas.org/Shared%20Documents/1480.pdf>. Acesso em 15 out. 2016.

Competição da IAAF, o que, por conseguinte, inabilitou Pistorius a competir em qualquer evento regulado pela IAAF.

A partir dessa decisão, o atleta apelou ao TAS, postulando a reforma da decisão da IAAF, determinando que ele poderia participar de competições reguladas pela Federação, utilizando-se de suas próteses, enviando sua manifestação no dia 25 de março de 2008, o que iniciou sua disputa judicial por reconhecimento contra o órgão máximo do atletismo em nível global. O TAS, como é comum em sua atuação, categorizou as manifestações da Apelação de Pistorius em quesitos, a serem respondidos ao final do recurso: 1. O Conselho da IAAF excedeu seus poderes na tomada da decisão recorrida? 2. O processo que conduziu à decisão da IAAF foi processualmente viciado? 3. A IAAF foi ilegalmente discriminatória? 4. A Decisão da IAAF, determinando que o uso das próteses Cheetah Flex-Foot fere o artigo 144.2, alínea “e” das Regras de Competição, foi equivocada? Posteriormente, o representante de Pistorius abandonou o primeiro quesito, sobre os poderes da IAAF, restando os demais três a serem analisados pela Turma de Apelação.

Sobre o primeiro quesito, com respeito à possível vício no processo que conduziu a IAAF ao banimento de Pistorius, a Câmara de Apelação do TAS compreendeu que, sim, em alguns momentos o processo perante a IAAF esteve “fora dos trilhos”, destacando que a maioria dos testes aconteceram enquanto Pistorius corria em linha reta, após a fase de aceleração, momento da corrida em que o mesmo tem seu melhor desempenho. Ademais, o responsável pelo Relatório de Colônia, Professor Peter Brüggemann, quando ouvido em audiência realizada pelo TAS, não reconheceu o material que lhe fora mostrado na solenidade, dizendo não ser o relatório final. Entretanto, foi esse o documento remetido aos membros do Conselho da IAAF, responsável por decidir pela inelegibilidade de Pistorius. Outro ponto negativo destacado pela Câmara de Apelação foi o procedimento de voto, onde as abstenções foram consideradas como votos positivos para a inelegibilidade do atleta. Assim, na opinião da Câmara de Apelação, a forma como a IAAF lidou com a situação de Pistorius ficou aquém dos altos padrões que a comunidade desportiva internacional espera dos órgãos máximos do esporte, o que poderia ter viciado o processo de inelegibilidade do atleta. Todavia, tal conclusão não se apresenta como um diferencial para o recurso perante o TAS, já que o grau recursal se mostra como um novo momento processual, distinto das fases anteriores.

Quanto ao quesito sobre possível discriminação na atuação da IAAF, a tese de Pistorius foi de que a Federação não cumpriu sua obrigação de não-discriminação ao, simplesmente, lhe declarar inelegível para competir, não buscando qualquer solução alternativa, como modificação ou ajuste de regramentos, para lhe permitir, e aos demais amputados com tempos

classificatórios, competir em igualdade com os atletas sem limitações. Com isso, Pistorius sustenta que lhe foram negados seus direitos fundamentais, entre eles a igualdade de acesso aos princípios e valores olímpicos. Porém, a Câmara de Apelação compreendeu que, ainda que Pistorius tenha sido considerado inelegível para disputar provas regidas pela IAAF, tal decisão não se deu com base em discriminação ilegal, tese levantada pelo atleta.

O último quesito, sobre a decisão da IAAF ter sido tomada de forma equivocada, foi o que obrigou o TAS a maiores considerações. O uso de próteses passou a ser vedado pela IAAF com a adição da alínea ‘e’ ao artigo 144.2, proibindo o uso de qualquer dispositivo tecnológico que incorpore molas, rodas ou outro elemento capaz de proporcionar vantagem sobre outros atletas, a partir da análise dessa alínea, a Câmara de Apelação do TAS criticou a ambiguidade do referido texto, já que não há descrição sobre o que se considera dispositivo tecnológico ou, ainda, o que significar “incorporar molas”, já que uma perna humana é, ela mesma, uma mola. Outro ponto fulcral do texto da alínea ‘e’ diz respeito sobre o significado de “vantagem sobre outros atletas”, porque, durante audiência no TAS, um dos advogados da IAAF levantou que o termo vantagem tem um sentido absoluto, sendo que um dispositivo, se utilizado, será para fornecer vantagem, mesmo que pequena, àquele que o utiliza, sendo, por conseguinte, inelegível para disputar com outros que não utilizem. Tal alegação foi refutada pelo TAS, já que é cristalino que atletas não devem competir contra outros que utilizem motores, rodas ou outros dispositivos de propulsão, porém, considerar um dispositivo passivo como as próteses de Pistorius como contrário ao texto da alínea ‘e’, sem toda uma comprovação científica exaustiva sobre vantagens proporcionadas, vai contra o princípio legal e, também, o senso comum. As próteses usadas por Pistorius não lhe provem vantagem sobre outros atletas, mas, sim, tenta relativizar a desvantagem natural que a deficiência lhe impõe. Além disso, o profissional responsável pelo Relatório de Colônia, Professor Peter Brüggerman informou que a IAAF não lhe pediu para responder se o uso de próteses por atletas lhes dava vantagem em sentido lato, contra qualquer atleta, objeto básico da Apelação.

Assim, a Câmara de Apelação do TAS decidiu que: 1. A IAAF não conseguiu demonstrar, satisfatoriamente, suas razões, ônus que lhe cabia, razão pela qual a Apelação de Pistorius deveria ser mantida; 2. A Decisão tomada pelo Conselho da IAAF foi revogada, imediatamente, tornando o atleta elegível para disputar eventos regulados pela IAAF, enquanto utilizar as próteses Cheetah Flex-Foot, usadas nos testes do Relatório de Colônia; 3. O âmbito de aplicação da decisão ficou limitado à elegibilidade de Pistorius e apenas para seu uso das próteses em análise no recurso; 4. A decisão não tem aplicação outros atletas amputados, ou para qualquer outro modelo de prótese, não gerando efeitos vinculantes erga omnes, sendo

responsabilidade da IAAF avaliar caso a caso, imparcialmente, atualizando os conhecimentos científicos em cada reexame; 5. Não foi imposto pagamento de custas processuais a nenhuma das partes, ficando retido o valor de CHF$ 500,00 (quinhentos francos suíços) pagos pelo Apelante como taxa inicial342.

Após a decisão do TAS, tomada em maio de 2008, Oscar Pistorius não conseguiu classificar-se para a disputa dos Jogos Olímpicos de Pequim/2008, em razão do curto lapso de tempo e do númeor exíguo de classificatórias ainda em disputa. Porém, como já relatado, foi o primeiro indivíduo a disputar a mesma edição dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos em Londres/2012, entrando, asism, para a história do esporte.

A decisão tomada pelo TAS, especialmente o embasamento da decisão, quando justifica que as próteses não davam uma vantagem sobre outros atletas, mas, sim, tentavam relativizar a natural desvantagem de Pistorius, em razão de sua deficiência, demonstra como direitos considerados humanos são discutidos e garantidos no âmbito de uma ordem não estatal, quando, usualmente, esses são direitos garantidos pelos textos constitucionais estatais. A decisão do TAS remete a uma concepção geral de justiça, nos moldes propostos por John Rawls, quando afirma que “todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima – devem ser distribuídos igualitariamente a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagem para todos”343. Ou seja, tratar os diferentes com base nas suas diferenças, sem que tal situação seja considerada uma injustiça, não se mostra garantir privilégios ao atleta Pistorius, tão somente lhe proporcionar igualdade de oportunidades, já que, sem o uso das próteses, lhe é impossível caminhar, quiçá correr. Trata- se, portanto, de igualar os pontos de partida344, garantindo, assim, uma potencial igualdade dos pontos de chegada, um reconhecimento das diferenças e a tentativa de garantir uma igualdade de acesso, relativizando as diferenças entre os competidores, o que, em absoluto, deve ser confundido com favorecimento ao atleta com próteses, senão uma prática de inclusão baseada nos direitos humanos.

O presente ponto serve como declaração da autonomia da Lex Sportiva, mas, principalmente, para demonstrar como direitos humanos estão sendo discutidos e garantidos no

342 TAS. Pistorius v. IAAF, 2008, p. 14. Disponível na internet em: <http://jurisprudence.tas-

cas.org/Shared%20Documents/1480.pdf>. Acesso em 15 out. 2016.

343 RAWLS, John. Uma teoria de justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins

Fontes, 2000, p. 66.

344 Para mais informações sobre a teoria da igualdade dos pontos de partida ver, além da obra de John Rawls, acima

mencionada, o seguinte artigo: VALLE, Lílian do. Perda do tropeço: a igualdade como ponto de partida. Educ.

Soc. Vol. 24. N. 82, p. 2003, 259-266. Disponível na internet em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302003000100016&lng=en&nrm=iso&tlng= pt>. Acesso em 18 out. 2016.

âmbito da Lex Sportiva, com observações e comunicações jurídicas que são comuns a todo o sistema do Direito e servem de pontes de transição de sentido e diálogo com outras ordens jurídicas, de diferentes níveis, mostrando um entrelaçamento transordinal interno ao sistema jurídico, comprovando os encontros e desencontros entre o esporte e dos direitos humanos.