• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2 Urânio: motor do envolvimento português no nuclear, 1947-1954 75

2.3 Salazar e o urânio português 97

2.3.1 A relutância de Salazar em abrir as negociações 97

O pedido britânico de negociações ocorreu a 25 de Junho de 1947, através de um memorando entregue em mão ao ministro dos Negócios Estrangeiros por Nigel Ronald, embaixador britânico em Lisboa de 1947 a 1955. Neste memorando o embaixador informava sobre as companhias britânicas, detentoras de concessões sobre minas de urânio nas suas propriedades, interessadas em instalar uma oficina de concentração de óxido de urânio destinado à exportação. Seria imprudente que estas companhias, antes de investirem neste empreendimento, não procurassem a aprovação do governo português e a sua garantia de que lhes seriam concedidas licenças de exportação para o minério extraído. O embaixador sublinhava que o governo britânico seguia com muito cuidado a produção e o controlo do urânio e por isso supervisionava, com grande afinco, as actividades destas empresas. Parecia ao embaixador que os interesses de Portugal e do Reino Unido coincidiam no plano estratégico, porque ambos queriam impedir que o urânio passasse para o controlo dos inimigos da aliança luso-britânica e, no plano comercial, porque a exploração das minas seria um factor de desenvolvimento económico e os técnicos britânicos estavam qualificados, como poucos, para tratar do urânio. O memorando terminava colocando à consideração do governo

português a discussão de um acordo sobre o assunto exposto, presumindo que teria vantagens mútuas67.

O governo português demorou algum tempo a responder ao embaixador porque foi necessário recolher informações internamente. A 12 de Agosto de 1947, Luiz de Castro e Solla, director-geral de Minas e Serviços Geológicos, informava sobre as concessões britânicas das minas de urânio. Previa “o esgotamento, relativamente próximo, da mina inglesa da Urgeiriça”; os proprietários desta mina tinham encomendado trabalhos de prospecção a “estrangeiros” que utilizavam aparelhos que não identificou mas caracterizou como sendo “de reduzido volume, transportáveis” que não precisando nem de “furar, nem usar explosivos, passa[va]m quase despercebidos”. Segundo os informadores de Castro e Solla, “do lado inglês h[avia] instruções para prosseguir muito activamente nesses trabalhos de prospecção mas não as h[avia] contudo para realizar trabalhos mineiros (sondagens, galerias, poços, etc.) com a mesma actividade”68. Por um lado, a intensa actividade de prospecção “do lado inglês” é reveladora da urgência do embaixador britânico em conseguir a abertura de negociações com o governo português. Por outro lado, o desconhecimento de Castro e Solla do equipamento usado na prospecção de urânio revela que não dispunha de técnicos qualificados na sua Direcção-Geral e que o negócio do urânio não tinha, até então, interessado o governo português.

A 10 de Outubro de 1947, o Ministério dos Negócios Estrangeiros recebia do Ministro da Economia uma relação das concessões e registos de urânio pertencentes a empresas britânicas. Para cada concessão e para cada registo juntava-se uma indicação detalhada dos respectivos distrito, concelho e freguesia, superfície/data do registo e a empresa proprietária. Destas, a Companhia Portuguesa de Rádio, Ldª. (CPR) era a empresa mais importante,

                                                                                                                         

67 MNE-AHD, Relações com a Inglaterra respeitantes aos acordos relativos ao Urânio, 2º P., Arm. 52, M. 128, pasta I-1, Memorando entregue em mão pelo embaixador de Inglaterra ao ministro dos Negócios Estrangeiros, 25 Junho 1947.

68 Idem, Informação da Direcção Geral de Minas e Serviços Geológicos, (Castro e Solla), 12 Agosto 1947.

detendo 13 concessões e 43 registos, sendo a totalidade das concessões e registos, respectivamente, 20 e 53. Numa “Nota” acrescentava-se que “além dos Registos acima discriminados, a CPR t[inha] uma opção sobre 15 propriedades no concelho de Aguiar da Beira, sendo estas – propriedades ou registos ou pedidos de concessão ou manifestos mineiros”69.

Entretanto o memorando do embaixador de 25 de Junho de 1947 continuava sem resposta, não obstante várias insistências. Porquê a demora na resposta ao pedido de negociações do embaixador? Aparentemente, Salazar não dominava o dossié urânio sendo necessário tempo para reunir informações que o habilitassem a enfrentar as pretensões britânicas sobre um recurso nacional que aparentava possuir grande valor. Esta hipótese é sugerida pelo processo de informação desencadeado internamente, acima referido, mas esta pode não ter sido a única razão. Por um lado, Salazar poderia querer demonstrar não ter pressa em negociar uma riqueza tão importante, impondo assim as suas condições. Por outro lado, interessar-lhe-ia conhecer os contornos do controlo monopolista anglo-americano sobre as aquisições de urânio em países fora da zona de influência da União Soviética. Com efeito, um recorte do New York Herald Tribune, de 5 de Agosto de 1947, “Congo sent us 1,648 tons of Uranium Ore”, no Arquivo Histórico e Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, informava sobre as exportações congolesas para os Estados Unidos desde o final da guerra, envoltas em secretismo.

Não tendo obtido resposta satisfatória, a 17 de Dezembro, o embaixador decidiu entregar novo memorando sobre a sequência de acontecimentos, de 25 de Junho a 10 de Novembro, lembrando que a embaixada continuava à espera da sugestão de uma data para

                                                                                                                         

69 ANTT, AOS, NE-2E2, Cx 432, pt. 12, Relação de Concessões e Registos de Urânio pertencentes à Companhia Portuguesa de Rádio, Lda, Senepil-Sociedade de Exportação de Novos Empreendimentos e Processos Industriais, Ldª, e Empreza Mineira de Rádio, Lda, 10 Outubro 1947, fls. 77-80.

prosseguir a discussão70. Além do memorando, o embaixador entregou um projecto de acordo, datado de 18 de Dezembro, que o seu governo lhe havia encomendado. Em primeiro lugar, as três empresas britânicas, Companhia Portuguesa de Rádio, Lda., Empresa Mineira de Rádio, Lda., e Sociedade de Empreendimentos Novos e Industriais, Lda., deveriam dar início, o mais rapidamente possível, à produção de minérios de urânio ou concentrados à escala comercial nas concessões que tivessem viabilidade económica. Em segundo lugar, o governo português comprometia-se a autorizar, por um período a determinar, que a produção nas minas acima referidas tivesse como destino a exportação, que ficaria sujeita ao imposto habitualmente estabelecido para minerais exportados com fins comerciais. Em terceiro lugar, ficariam cobertas pelo acordo estabelecido neste projecto as concessões constantes duma lista anexa ao projecto do acordo e para as quais já havia sido requisitado o registo na Direcção Geral de Minas. A aquisição de mais concessões seria regulada por acordo entre os dois governos. Finalmente, ficaria acordado que as quantidades de concentrado de urânio necessárias ao governo português para fins industriais ou de investigação científica seriam retiradas, até onde fosse possível, das minas na posse britânica desde que não pudessem ser asseguradas por outras minas portuguesas71.

O projecto de acordo foi submetido à apreciação do presidente do Conselho que apenas fez reparos pontuais pois lhe parecia que os ingleses pretendiam escapar ao controlo da lei portuguesa de minas. Ao terminar as anotações na tradução da proposta, Salazar rematou “[p]orque não dizer-lhes: cumpra-se as leis de minas e mais nada”72.

                                                                                                                         

70 MNE-AHD (ref. 67), pasta I-1, Memorando entregue pelo embaixador de Inglaterra, 17 Dezembro 1947.

71 Idem, Proposta da embaixada britânica, 18 Dezembro 1947.

72 ANTT, AOS (ref. 69), tradução da proposta da embaixada britânica de 18 Dezembro 1947, anotada por Salazar, fls. 95-96.

A 27 de Fevereiro de 1948, o embaixador voltava a entregar uma carta “secreta e pessoal” dirigida ao ministro e entregue a António de Faria73, secretário geral do Ministério.

Reclamava do impasse em que se encontravam as conversações, apesar de toda a informação prestada e de, no início de Fevereiro, um representante das empresas ter fornecido ao director geral de Minas informação suplementar para completar os pontos de vista do ministro da Economia74. No mesmo dia, o embaixador foi recebido por Faria com quem conversou sobre o assunto da carta. Faria reafirmou a posição portuguesa, anteriormente transmitida pelo ministro, de que, a seu ver, “o governo português não poderia ir além do compromisso já tomado relativamente à não exportação do urânio para destinos inimigos da aliança luso- britânica”. Na eventualidade do urânio ser um minério tão valioso, o governo português não poderia ceder uma “tão grande riqueza nacional” a um governo estrangeiro, ainda que amigo. Faria reconheceu as posições divergentes dos dois governos. O governo britânico pretendia dar ao minério o destino que julgasse mais conveniente, apenas pelo facto de deter a propriedade sobre a exploração das minas. O governo português, por seu lado, reconhecia a propriedade britânica das minas, mas elas eram, antes de tudo, uma parte integrante do território nacional e da sua economia, pelo que o governo português tinha o direito de comprar o minério sempre que julgasse necessário e de escolher o destino “mais conveniente aos interesses do país”.O embaixador repetiu os argumentos já apresentados em conversas anteriores. Julgava que um entendimento entre os dois governos nesta matéria teria vantagens mútuas. O urânio tal como se encontrava, ou como saía das minas, não servia para nada. Só havia dois países que o podiam tratar convenientemente –o Reino Unido e os EUA. O que propunha era um entendimento segundo o qual o Reino Unido se comprometia a ceder ao governo português uma percentagem que fosse acordada para as suas necessidades. Os

                                                                                                                         

73 Pereira, A diplomacia de Salazar (ref. 4), p. 456, descreve Faria como “[s]ocialmente ambicioso e inteiramente devotado à carreira”. Além disso “era um diplomata hábil e calculista, atento a todos os pormenores, de fácil relacionamento e raciocínio frio”.

britânicos seriam, deste modo, uma espécie de agentes de Portugal encarregados da “transformação do urânio em qualquer coisa de útil”75.

 

No decurso da conversa o embaixador apresentou duas informações que aparentemente Faria desconhecia. Os governos britânico e americano tinham acordado que os EUA adquiriam o urânio ao Canadá e ao Congo Belga e a Inglaterra a Portugal e às suas colónias. As três companhias britânicas, detentoras das concessões dos jazigos de urânio em território português, eram “praticamente a própria Tesouraria Britânica e o Ministry of Supply” sendo o controlo do governo britânico sobre elas mais rigoroso do que o verificado com a Companhia do Canal do Suez. A primeira informação surgiu na sequência da declaração de Faria de que Portugal não se podia comprometer com a venda exclusiva para Inglaterra pois sendo o comércio com os EUA deficitário poderia surgir a necessidade de Portugal lhes vender urânio. A segunda informação respondia ao comentário de Faria de que a Direcção Geral de Minas tinha a impressão de que se tratava principalmente de um “interesse local de companhias inglesas que desejavam fossem definitivamente registadas certas concessões cujos projectos se encontravam pendentes”. O embaixador esclareceu, então, que a impressão da Direcção Geral era conveniente, mas o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o presidente do Conselho deveriam ter conhecimento da real situação: as companhias referidas eram praticamente o próprio governo britânico. Além disso não se tratava de um monopólio pois havia outras minas pertencentes a outras entidades. Os EUA também tinham interesse em resolver este caso rapidamente. A respectiva embaixada já se tinha oferecido para apoiar as pretensões britânicas mas ele, embaixador, considerava que o assunto deveria ficar em família, “sem intervenção de terceiros”76. Esta observação fazia referência, sem

dúvida, à velha aliança luso-britânica e a informação do embaixador referia-se, evidentemente ao Combined Development Trust, sem o nomear.

                                                                                                                         

75 Idem, Conversa com o Embaixador de Inglaterra, 28 Fevereiro 1948. 76 Idem.

As revelações do embaixador relativamente à propriedade do governo britânico sobre as minas portuguesas podem não ter surpreendido Salazar, pois o seu comportamento manteve-se inalterado. A 22 de Abril, passados dois meses sobre a conversa do embaixador com Faria, o embaixador entregava nova carta dirigida ao ministro, lembrando a promessa de agendar uma entrevista com o presidente do Conselho. O seu governo aguardava com ansiedade o início dos trabalhos nas minas mas não podia arriscar o investimento sem a aprovação e a colaboração das autoridades portuguesas. Além disso, o governo britânico não compreendia como é que ele, embaixador, ainda “não tinha sido capaz de lhe fazer compreender os modos de ver do governo português relativamente às propostas de 18 de Dezembro”77.

Neste processo diplomático os governos dos dois países tinham objectivos bem definidos difíceis de conciliar. A posição portuguesa resumia-se, simplesmente, a recusar a assinatura de um acordo que poderia colocar em mãos estrangeiras uma riqueza nacional, na altura de desconhecido valor e extensão. Quanto aos britânicos e norte-americanos, tinham urdido uma poderosa estratégia traduzida no Combined Development Trust, já no final da guerra, em 1944, para a compra do urânio, destinado a alimentar, principalmente, a máquina de guerra nuclear e estavam determinados a não abdicar dela. Graças à persistência do embaixador britânico, o primeiro resultado palpável surgiu pouco antes de completar um ano sobre a entrega do primeiro memorando de 25 de Junho de 1947.