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Capítulo 2 Urânio: motor do envolvimento português no nuclear, 1947-1954 75

2.2 O monopólio anglo-americano dos recursos uraníferos 82

2.2.1 Desentendimento entre britânicos e americanos 83

As descobertas da fissão nuclear, no início da guerra, encontraram eco nos EUA interessando os físicos nucleares, tanto americanos como de várias nacionalidades europeias que aí tinham encontrado asilo em consequência da perseguição anti-semita desencadeada pelo nazismo na Europa. O trabalho dos físicos Enrico Fermi (1901-1954)22 e Leo Szilard (1898-1964)23, investigadores da Columbia University, Nova Iorque, inspirou Albert Einstein (1879-1955) a suscitar a intervenção do presidente Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), a 2 de Agosto de 1939. Informando que o urânio prometia tornar-se uma importante fonte de energia num futuro muito próximo, destacava a hipótese de permitir a construção de bombas de novo tipo

                                                                                                                         

20 Gowing, Britain and Atomic Energy (ref. 13), Anexo 4, “The Quebec Agreement”, pp. 439-40. Ver também Philip L. Cantelon, Richard G. Hewlett, Robert C. Williams (orgs.) The American Atom: A Documentary History of Nuclear Policies from the Discovery of Fission to the Present (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1984, segunda edição, 1991), pp. 31-33.

21 Gowing, Britain and Atomic Energy (ref. 13), Anexo 7, “Declaration of Trust”, pp. 444-46; ver também, Cantellon et al., The American Atom (ref. 20), pp. 34-36.

22 Fermi, físico italiano, foi prémio Nobel da Física em 1938 por ter produzido elementos transuranianos radioactivos por irradiação com neutrões. Neste ano, emigrou para os EUA onde, na Universidade de Columbia, Nova Iorque, continuou o trabalho teórico em Física Nuclear desenvolvido em Roma. Fermi e Szilard demonstraram, ao mesmo tempo que Joliot, a emissão dos neutrões secundários da fissão.

“extremamente poderosas” – uma única bomba “transportada por barco e explodida num porto, poderia muito facilmente destruir esse porto e parte do território circundante”24.

No Outono de 1939, Roosevelt deu seguimento ao apelo de Einstein, nomeando o Advisory Committee on Uranium que, em Junho de 1940, se tornou uma subcomissão do National Defense Research Committee, presidido por Vannevar Bush25 (1890-1974). Durante os anos de 1940 e 1941, foram assinados contratos com as universidades, porém o trabalho prosseguia sem uma coordenação eficaz. No Reino Unido, uma comunidade de físicos preocupada com a construção da bomba atómica pelos nazis, avançou com o projecto M.A.U.D26, em Abril de 1940. Os dois países progrediram segundo linhas paralelas, contudo os britânicos tomaram progressivamente a dianteira. A principal explicação para esta diferença residia na urgência sentida pelos britânicos imersos na guerra e a posição de neutralidade dos americanos27. O Relatório Maud, elaborado e discutido em Junho e Julho de

1941, tinha duas secções “Utilização do Urânio para uma Bomba” e “Utilização do Urânio como Fonte de Energia”. A primeira secção, ao demonstrar sem equívoco que a bomba atómica podia ser construída, mudou a postura americana e os acontecimentos de Pearl Harbour, em 7 de Dezembro de 1941, retiraram qualquer dúvida sobre a mobilização dos recursos americanos28.

                                                                                                                         

24 “Albert Einstein to Franklin D. Roosevelt, August 2, 1939”, in Cantellon et al., The American Atom (ref 20), pp. 9-11, na p.10.

25 Bush, que se notabilizou em matemática enquanto estudante, doutorou-se em engenharia por Harvard e pelo MIT, em 1916. Em 1919, iniciou a carreira no departamento de engenharia electrotécnica do MIT, sendo nomeado reitor da MIT School of Engineering e vice-reitor do MIT, em 1932. No início da II Guerra Mundial já tinha ligações à investigação no campo da defesa e, em 1940, foi nomeado presidente do recém formado National Defense Research Committee. Um apontamento mais completo sobre Bush encontra-se em Kevles, The Physicists, (ref. 18), pp. 293-98.

26 A designação M.A.U.D., que não corresponde a uma sigla, foi escolhida por razões de segurança. Maud que poderia significar “Military Application of Uranium Desintegration” era o nome da ama inglesa dos filhos de Niels Bohr. A escolha teve origem num telegrama enviado por Bohr a Frisch, investigador do grupo de Bohr na Dinamarca e entretanto a trabalhar com os físicos nucleares britânicos, em que perguntava se Maud estava bem.

27 Gowing, Britain and Atomic Energy (ref. 13), pp. 63-65, 45 e 83. 28 Idem, pp.76-77 e 121-122.

No Outono de 1941, os britânicos procederam a uma reorganização do seu projecto que passou a designar-se Tube Alloys, um código para urânio29. Enquanto detiveram uma

posição de superioridade os britânicos recusaram a proposta americana de fusão dos dois projectos. Contudo, em meados de 1942, quando os britânicos mudaram de opinião, os dois projectos já avançavam a ritmos diferentes, os americanos distanciando-se e ficando auto- suficientes e por isso demonstrando pouco empenho na junção dos dois programas30.

Em 1942, o projecto americano da bomba atómica sofreu também uma reorganização. Em Junho, um novo Manhattan District of the Army Engineers foi encarregado do processo de desenvolvimento, projecto de engenharia, aquisição de equipamento e selecção dos locais de construção. Em Setembro, o comando do projecto foi entregue ao brigadeiro general Groves, “o construtor do pentágono, expedito, eficiente, com grande autoconfiança, e decididamente competente” 31. A direcção da investigação física e química da bomba atómica

pelos cientistas mantinha-se, mas agora na dependência de Groves. Os cientistas receavam que a dependência do exército significasse a imposição de regras de secretismo e a compartimentação rigorosa da informação. Para a colaboração anglo-americana significaria entraves consideráveis.

No final de 1942, teve início a construção de três cidades nucleares altamente secretas. Em Oak Ridge, no Tenessee Valley, foram instaladas duas fábricas de separação isotópica pelos processos electromagnético e de difusão gasosa, assim como a primeira pilha experimental de grafite arrefecida por circulação do ar. Em Hanford, Washington, foram instaladas três grandes centrais de produção de plutónio. Em Los Alamos, no Novo México, ficou situado o centro onde se concentraram os prémios Nobel para projectarem e construírem a bomba, sob a direcção de Julius Robert Oppenheimer (1904-1967). Físico brilhante formado em Harvard e doutorado em Göttingen, Alemanha, foi professor da University of California,

                                                                                                                          29 Idem, pp. 108-09.

30 Idem, p.123.

Berkeley, e do California Institute of Technology. Oppenheimer convenceu Groves que o melhor ambiente de trabalho para cientistas civis empenhados na produção da bomba atómica seria um local isolado militarmente, como Los Alamos, onde pudesse haver ampla troca de ideias. Assim, o Manhattan District of the Army Engineers, dirigido por Groves, não estava sediado em Nova Iorque, mas disperso através do país, em três novas cidades nucleares32.

Em Julho de 1942, o governo britânico decidiu que um dos grupos do Tube Alloys chefiado por Hans Heinrich von Halban33 (1908-1964), físico de ascendência austríaca

judaica membro do grupo parisiense liderado por Joliot, se devia instalar em Montreal, no Canadá, para prosseguir as investigações sobre a pilha atómica com água pesada. O Canadá, que manteve até à década de 1950 laços estreitos com o Reino Unido, sendo designado por Domínio do Canadá34, oferecia a vantagem da proximidade dos recursos teóricos e materiais dos EUA. No final de Outubro de 1942, o governo do Canadá aceitou uma proposta de colaboração com o governo do Reino Unido, o que conduziu ao estabelecimento de um projecto anglo-canadiano cuja execução passou a envolver o Canadian National Research Council35.

O ano de 1943 trouxe más notícias para a colaboração anglo-americana. A equipa de Halban passou a ter dificuldades no acesso à água pesada, produzida por uma fábrica instalada na British Columbia com investimento americano. O problema surgiu porque, entretanto, a direcção do Projecto Manhattan resolveu instalar, além do sistema da pilha atómica com grafite, um outro sistema com água pesada para produzir plutónio que deveria ficar instalado em Chicago. Em Janeiro, chegou outra notícia sob a forma de um memorando – o “Connant

                                                                                                                         

32 Ver Cantelon, et al., The American Atom (ref. 20), p. 21; Kevles, The Physicists (ref. 18), pp. 327-31; Goldschmidt, Le complexe atomique (ref. 13), pp. 63-64.

33 Halban, anteriormente integrado no grupo de Joliot,encontrava-se em Cambridge na Inglaterra, desde 1940, após a ocupação de Paris pelos alemães. Seguindo as instruções de Joliot, tinha levado consigo a água pesada fornecida por uma empresa norueguesa para a utilizar nas suas pesquisas sobre a pilha atómica.

34 O Canadá é uma democracia parlamentar e uma monarquia constitucional tendo como chefe do Estado o monarca do Reino Unido.

35 Gowing, Britain and Atomic Energy (ref. 13), pp. 187-190 e pp. 190-92 sobre a instalação do grupo em Montreal; Ver também Goldschmidt, Le complexe atomique (ref. 13), pp. 57-58.

Memorandum” – que estabelecia não só os princípios da colaboração americana com canadianos e britânicos como também definia para cada secção do seu projecto os termos precisos dessa colaboração. Doravante, grande parte do projecto Tube Alloys ficava excluído desta colaboração, contudo, os americanos esperavam, aparentemente, que os britânicos continuassem a fornecer toda a informação útil que fossem adquirindo. Foi um choque tremendo para os britânicos que se recusaram a aceitar as condições impostas pelos americanos36.

A reaproximação dos dois projectos foi um processo penoso e demorado para os britânicos, mas venceu finalmente a negociação que permitiu aplanar mal-entendidos37. O resultado foi o Quebec Agreement, assinado por Roosevelt e Churchill, em 19 de Agosto de 1943. Para assegurar a implementação deste acordo foi criada a Combined Policy Committee sediada em Washington, com três representantes do governo dos Estados Unidos, dois do Reino Unido e um do Canadá.O Canadá, embora não fosse signatário do acordo, era uma parte interessada por dois motivos. Possuía jazigos de urânio importantes e tinha entrado no acordo anglo-canadiano de colaboração, em Outubro de 1942. O Quebec Agreement definia as funções daquele Committee que incluíam, no domínio do urânio a “atribuição de matérias primas, equipamentos e instalações industriais, em quantidades limitadas, em conformidade com as necessidades do programa acordado pelo Committee” (alínea 3); e, no da colaboração anglo-americana, a troca de informações relativamente ao desenvolvimento e investigação e à construção e operação de instalações industriais (alíneas 4b, 4c e 4d)38.

Após o acordo de 1943, uma vintena de cientistas e engenheiros britânicos, incluindo refugiados naturalizados, migrou para os Estados Unidos para participar na fase final dos trabalhos das bombas, em Los Alamos. Foi uma contribuição valiosa para o pequeno número

                                                                                                                         

36 Gowing, Britain and Atomic Energy (ref. 13), pp. 155-57. 37 Idem, pp. 157-71.

38 Idem, Anexo 4, “The Quebec Agreement”, pp. 439-40; Cantellon et al., The American Atom (ref. 20), pp. 31-33.

de participantes, entre os quais se encontravam um especialista inglês em explosivos, William Penney, e um teórico brilhante de origem alemã, Klaus Fuchs. Após a guerra, ambos participaram nos programas nucleares dos respectivos países, o Reino Unido e a Alemanha de Leste. Antes disso, Fuchs expiou uma pena de dez anos de prisão no Reino Unido, devido a espionagem a favor da União Soviética. O tempo ganho com a colaboração britânica é difícil de avaliar, porém não restam dúvidas que os britânicos contribuíram decisivamente para o cumprimento dos prazos previstos do lançamento das bombas39.

Os problemas relativos à pilha atómica a instalar em Montreal, no Canadá, também começavam a ser resolvidos. Na primavera de 1944, foi tomada a decisão de construir uma grande pilha a água pesada, fruto do esforço comum dos três signatários do Quebec Agreement. Contendo uma dezena de toneladas de água pesada e igual peso de urânio metálico, levou dois anos a construir, desde o seu início em 1945. Ficou instalada em Chalk River, nas margens do rio Ottawa40.

Apesar do Acordo de Quebec, as dificuldades de acesso do Reino Unido ao urânio mantiveram-se porque os Estados Unidos, no auge do desenvolvimento do seu projecto, podiam reclamar o estatuto de prioridade devido ao esforço de guerra.