• Nenhum resultado encontrado

Viagens e luz verde à Comissão Provisória de Estudos de Energia Nuclear 123

Capítulo 2 Urânio: motor do envolvimento português no nuclear, 1947-1954 75

2.4 Lançamento do programa nuclear português 116

2.4.3 Viagens e luz verde à Comissão Provisória de Estudos de Energia Nuclear 123

A 20 de Maio de 1952, Leite Pinto apresentou um relatório à direcção do IAC sobre a legislação mundial relativamente à energia atómica; comissões de energia atómica, suas atribuições e composição em diversos países tal como Reino Unido, União Sul-Africana, Canadá e França. Citou as medidas propostas por Herculano de Carvalho e apresentou um programa em oito pontos sobre a “futura Comissão Nacional de Energia Atómica”. Os dois primeiros referiam-se à exploração dos jazigos de urânio e ao controlo da produção, preparação e exportação destes minerais. O terceiro previa o controlo da produção, importação e exportação de todos os minérios, matérias primas e produtos necessários aos

                                                                                                                         

125 Rollo et al., Ciência, Cultura e Língua (ref. 114), p. 210. 126 Diário do Governo, I Série, 17 Março 1952, Decreto-Lei 38 680.

127 O estudo aprofundado desta reforma encontra-se em Rollo et al., Ciência, Cultura e Língua em Portugal (ref. 114), pp. 210-18.

estudos da energia atómica. O quarto e o quinto destinavam-se a promover e fiscalizar a investigação científica no domínio da Física Nuclear e suas aplicações bem como a produção dos radioisótopos e das matérias radioactivas. O sexto pretendia divulgar as aplicações da energia atómica, na guerra, na medicina e na produção da energia para fins pacíficos. Em sétimo e oitavo lugar encontravam-se a divulgação dos meios de protecção e defesa das populações e colaboração com os organismos congéneres estrangeiros. Além disso, uma comissão do IAC deveria encarregar-se dos trabalhos preparatórios ao lançamento da futura Comissão Nacional colhendo toda a informação e procurando aproveitar a experiência dos organismos congéneres estrangeiros128.

O relatório de Leite Pinto merece três comentários. O primeiro refere-se ao plano de lançamento do programa nuclear português que seria concretizado a curto prazo. A Comissão Nacional referida no relatório de Leite Pinto veio de facto a ser criada, em 1954, sob a designação de Junta de Energia Nuclear, a mesma da sua congénere espanhola – com atribuições decalcadas dos oito pontos do programa de Leite Pinto – e precedida de uma comissão preparatória, criada no final de 1952. O segundo comentário incide sobre o protagonismo de Leite Pinto na criação da Junta de Energia Nuclear, confirmado pelo próprio num depoimento de 21 de Junho de 1990,

No Instituto para a Alta Cultura, eu fui director durante muitos anos e posso dizer que estive preso à investigação científica desde o ano de 1929 até ao ano de 1972.

A certa altura ‘criei’ – eu repito ‘criei’ – a Junta de Energia Nuclear (…) Para quê? Para se

formar uma elite portuguesa de homens de ciência129.

                                                                                                                         

128 ANTT, AOS/CO/PC – 32, pasta 2, 2ª Subdivisão, Informação apresentada à direcção do IAC, por Leite Pinto, 20 Maio 1952, fls. 94-98.

129 António Jorge Coelho de Carvalho, Maria do Rosário Toré Romão Sequeira Gil, LNETI. Génese e situação ao fim de 12 anos, vol. 1 (Lisboa: LNETI, 1992), p. 109.

O terceiro e último comentário é ter-se partido praticamente do zero no campo da prospecção e exploração do jazigos uraníferos e da formação de cientistas e técnicos em todos os domínios da investigação e das aplicações em energia nuclear.

Acontecimentos à margem da rotina oficial são reveladores das manobras de bastidores para acelerar o lançamento do programa nuclear português. A 3 de Julho de 1952, foi instalada uma comissão de estudos de energia nuclear na Sociedade de Geografia de Lisboa, sob a presidência de António Pereira Forjaz, professor de Química e director da FCUL. Esta comissão resultou de uma proposta aprovada a 21 de Abril130. O tumulto gerado por esta comissão permite suspeitar tratar-se de uma manobra de pressão sobre o governo.

Com efeito a instalação da comissão foi noticiada nos jornais e levantou protestos de ordem diferente. Com data do dia da sua instalação, 3 de Julho, encontra-se no arquivo de Salazar na Torre do Tombo, uma carta anónima mostrando incredulidade pela falta de iniciativa do IAC no lançamento dos trabalhos sobre a energia nuclear, pois segundo a carta, bastava “mandar educar gente ao estrangeiro” e “constituir um pequeno núcleo de professores dos que já tenham algum conhecimento da matéria”. Também criticava a situação de sermos, na Europa, o único país que não tinha ainda enveredado pela investigação neste sector e no das respectivas aplicações práticas. Em relação à exportação de concentrados de urânio, declarava que por mais que se esforçasse a “Presidência e os Estrangeiros para obter favores directos ou indirectos da exportação do nosso urânio para Inglaterra ou para França”, a sua saída não representava benefícios para o país e muito menos se iniciavam os portugueses nos mistérios nucleares. Terminava: “Não poderia Vexa. chamar a si o caso e em duas horas de conferências produtivas dar um empurrão ao assunto?”131 O autor da carta anónima revela

grande lucidez ao fazer recair as responsabilidades do atraso do lançamento dos trabalhos de energia nuclear sobre o IAC e solicitar abertamente a esclarecida intervenção de Salazar. A

                                                                                                                         

130 ANTT, AOS/CO/PC – 32, pasta 2, 3ª Subdivisão, Mendes Correia, presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa ao Ministro da Educação Nacional, 15 Julho 1952, fls. 105-108.

forma dissimulada da sua reclamação em relação ao IAC revela a face escondida da crítica ao governo.

A primeira medida de Pires de Lima foi notificar os membros da comissão de estudos de energia nuclear da Sociedade de Geografia, dependentes do Ministério da Educação Nacional, que estavam proibidos de participar nos seus trabalhos132. António da Silveira foi um desses membros133. O ministro também escreveu a Salazar, a 4 de Julho, informando-o que tinha lido a notícia nos jornais. Rotulando de despeito e deslealdade o aproveitamento da morosidade do IAC, declarava que a comissão de estudos de energia nuclear instalada na Sociedade de Geografia necessitava da sua autorização e por isso morria à nascença. Além disso, anunciava que iria discutir com os directores do IAC algumas medidas incluindo o envio de Leite Pinto em missão a alguns países europeus para estudar as soluções para o problema dos bolseiros; conceder seis bolsas fora do país em Outubro; extinguir o Centro de Estudos de Física da Faculdade de Ciências (CEF), criando em sua substituição dois novos centros um deles de estudos de Física Nuclear, dirigido por Palacios, e outro de estudos de Metalurgia dos metais radioactivos e, finalmente, dar posse à comissão já escolhida para orientar os trabalhos134. Nem todas as medidas preconizadas por Pires de Lima se concretizaram. A extinção do CEF foi uma das que não se concretizou. No entanto, é possível que o governo continuasse a olhar este centro com desconfiança, após as demissões de 1947, temendo interferências de natureza política de Valadares que se encontrava no exílio em Paris e continuava a colaborar com alguns dos seus membros (subsecção 1.3.2).

De acordo com o plano do ministro, Leite Pinto efectuou uma viagem pela Europa tendo visitado Espanha, Suécia, Dinamarca, Bélgica, Suíça, Itália e França, de 4 de Agosto a

                                                                                                                         

132 Idem, Mendes Correia, presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa ao Ministro da Educação Nacional, 15 Julho 1952, fls. 105-108.

133 António da Silveira, “Comentários imperfeitos com elementos para uma história dos Estabelecimentos Científicos em Portugal”, Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, classe de ciências, XV (1984): 143-205, na p.155

134 ANTT, AOS/CO/PC – 32, pasta 2, 3ª Subdivisão, Ministério da Educação Nacional, 4 Julho 1952, fls. 99-100.

22 de Outubro de 1952. Os relatórios de Leite Pinto são longos e minuciosos, muitas vezes em termos quantitativos, sobre matérias muito variadas, revelando até um deslumbramento sobre um mundo desconhecido. Interessou-lhe em cada país, o sistema de apoio a bolseiros e à investigação, o funcionamento detalhado das comissões nacionais de energia nuclear, o acolhimento à formação de técnicos portugueses, a cedência de tecnologia no domínio do urânio, o interesse pelo urânio português. A informação sobre cada país captou os aspectos essenciais. Por exemplo, referiu em relação à Bélgica o contrato de venda do urânio congolês aos EUA, referiu os avanços do programa nuclear francês e a polémica sobre os dirigentes comunistas do Commissariat à l’Énergie Atomique, e mencionou a história da Junta de Energia Nuclear espanhola e o interesse deste país por uma pilha atómica e pela mineração do urânio135. Além dos relatórios sobre as visitas, Leite Pinto incluiu um apontamento intitulado “Notas para uma informação sobre os conhecimentos que os franceses dizem ter acerca das reservas dos minérios radíferos”. Estas notas, retiradas de um livro do geólogo francês Edmond Bruet cujo título não indica e de publicação “recente”, constituem uma fonte rica de informação sobre os principais produtores de urânio136. O grande volume de informação teve como objectivo principal a formulação de propostas relativamente à formação de especialistas, criação de laboratórios e tratamento do urânio.

Herculano de Carvalho foi encarregado dos contactos com a Inglaterra que visitou de 5 a 11 de Novembro. Em Kensington, no Museu Geológico, avistou-se com o cientista Davidson, dirigente da investigação na concessão da Urgeiriça, com quem tratou da prospecção do urânio e da formação de geólogos e auxiliares especializados. A sua opinião em relação à detecção aérea foi desfavorável e em relação à especialização dos técnicos portugueses aconselhou o deslocamento dos seus técnicos a Portugal. Herculano de Carvalho

                                                                                                                         

135 ANTT, AOS/CO/PC – 52, pasta 6, 1ª a 6ª Subdivisões. Ver Também Maria Amélia Simões da Mota Capitão Taveira, “Génese e instalação da Junta de Energia Nuclear”, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa, 2003, pp. 54-57.

136 ANTT, AOS/CO/PC – 52, pasta 6, 9ª Subdivisão, “Notas para uma informação sobre os conhecimentos que os franceses dizem ter acerca das reservas dos minérios radíferos”, fls. 261-66.

considerou esta uma boa opção mas não descartou a hipótese da formação de alguns especialistas em França. Em Harwell, foi acompanhado por Henry Seligman, chefe da Isotope Division do British Atomic Energy Research Establishment (AERE) e tratou da preparação de especialistas em Física Nuclear (teoria), isótopos (incluindo a separação por meios químicos e físicos), estudo, pela ultra-microquímica dos produtos de fissão do urânio, reacções nucleares e tratamento dos minérios de urânio. Mais tarde interessaria a produção de isótopos. Não obstante todos estes assuntos poderem ser estudados em Inglaterra, Harwell estava vedado até aos próprios americanos. A “Escola de Isótopos” era o único lugar onde estrangeiros podiam especializar-se na “técnica das medidas e nos métodos de protecção dos isótopos”. Harwell era um centro de investigação embora a secção de isótopos se ocupasse ainda da sua separação para venda. Esta função seria transferida para Amersham, num futuro próximo137.

A medida mais importante de Pires de Lima foi o seu despacho de 10 de Outubro de 1952, ao abrigo do qual foi constituída a Comissão Provisória de Estudos de Energia Nuclear do IAC, presidida por Leite Pinto, para iniciar estudos e preparar pessoal científico e técnico especializado, destinado ao organismo nacional que deveria superintender todos os sectores da energia nuclear, desde o urânio a centrais nucleares138. Eram membros da Comissão Provisória, os professores Carlos Braga de Física, Herculano de Carvalho de Química, e João Carrington da Costa de Mineralogia e Geologia, sendo os restantes Vítor Hugo Franco, médico do Instituto Português de Oncologia e ainda Kaúlza Oliveira de Arriaga (1915-2004), Major do Corpo de Estado Maior e Castro e Solla da Direcção-Geral de Minas e Serviços Geológicos139.

                                                                                                                         

137 ANTT, AOS/CO/PC – 52, pasta 9, Relatório da Missão a Inglaterra, Herculano de Carvalho, 26 Novembro 1952, fls. 281-88. Ver também Néstor Herran, “Spreading nucleonics: The Isotope School at the Atomic Energy Research Establishment, 1951-67”, BJHS, 39 (4) (2006): 569-86.

138 Amândio Tavares, O Instituto de Alta Cultura e a Investigação Científica em Portugal (1951-1960), vol. II (Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1961), pp. 21-22.

139 Rollo et al, Ciência, Cultura e Língua (ref. 114), p. 222, indica a constituição da Comissão Provisória.

Em seguida no mesmo mês, foram criados os “Centros de Estudos de Energia Nuclear” que compreendiam quatro secções: Física, Química, Electrónica, e Mineralogia e Geologia”. A secção de Física era dirigida por Carlos Braga sendo constituída por três pólos: a Secção de Física Nuclear anexa ao Pavilhão D do  Instituto Português de Oncologia, dirigido por Palacios; a Secção de Física Nuclear anexa ao Laboratório de Física da Universidade de Coimbra, orientada por João Rodrigues de Almeida Santos; a Secção de Física Nuclear anexa ao Laboratório de Física da Universidade do Porto, orientada por Carlos Braga. A secção de Química sob a direcção de Herculano de Carvalho, tinha também três pólos. O do IST era constituído pelo Laboratório de Radioquímica e pela Metalurgia do Urânio, ambos sob a responsabilidade de Herculano de Carvalho. No pólo da FCUL ficou a secção de Química Nuclear sob a responsabilidade de Branca Edmée Marques e no Laboratório de Química da Universidade de Coimbra ficou a secção de Química Nuclear sob a direcção de Rui Couceiro da Costa. A secção de Electrónica foi entregue a Carlos Ferrer Moncada coadjuvado por Manuel José de Abreu Faro. Finalmente a secção de Mineralogia e Geologia coordenada João Carrington da Costa, tinha também três pólos: um deles anexo ao Laboratório de Geologia da Universidade de Coimbra, dirigido por Cotelo Neiva; o segundo anexo ao Laboratório de Geologia da Universidade de Lisboa, dirigido por Carlos Torre de Assunção; e o terceiro anexo ao Laboratório de Geologia da Universidade do Porto, dirigido por Domingos Rosas da Silva140.

Os primeiros pólos a serem instalados, em Outubro de 1952, foram o de Física Nuclear no IPO, os de Química Nuclear no IST, e os de Mineralogia e Geologia coordenados por Carrington da Costa. Os restantes foram instalados em 1953141. Como se pode verificar todas

as secções ficaram anexas a faculdades e ao Instituto Superior Técnico, excepto a secção de Física Nuclear de Lisboa que foi instalada no Instituto Português de Oncologia. Segundo o

                                                                                                                          140 Idem, p. 226.

director deste hospital, Francisco Gentil, coube a Leite Pinto esta decisão142, que visava especializar os investigadores daquela secção e orientar os seus trabalhos no “sentido do controlo físico das aplicações médicas e biológicas dos radioisótopos”143. Poderia ter havido, ainda, outra motivação para explicar esta situação singular que conduz ao contexto de tensão da Guerra-Fria. Valadares tinha sido demitido por motivos políticos e, em Paris, participava no Conselho Mundial da Paz, um movimento de influência soviética144. Assim, durante a Guerra Fria, o Laboratório de Física podia ser incómodo para o governo ditatorial de Salazar cujas políticas anticomunistas convinham ao governo dos EUA. O Acordo Luso-Britânico de 1949 também exigia contenção ao governo português para não haver suspeitas de ligação a comunistas num programa de energia nuclear. As actividades nos Centros de Estudos de Energia Nuclear tiveram início logo após a sua criação para abrir caminho à Junta de Energia Nuclear, em 1954. Este assunto é retomado na secção 3.2.