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Capítulo 2 Urânio: motor do envolvimento português no nuclear, 1947-1954 75

2.3 Salazar e o urânio português 97

2.3.2 Uma negociação difícil e demorada 103

A 8 Maio 1948, o presidente do Conselho recebeu, finalmente, o embaixador Nigel Ronald em S. Bento para uma entrevista de que elaborou um relatório. Salazar pediu desculpa pela demora na concessão desta entrevista, que se deveu a excesso de trabalho e problemas de

                                                                                                                         

77 Idem, Nigel Ronald, British Embassy, Lisbon a Dr. José Caeiro da Mata, Ministry of Foreign Affairs, 22 Abril 1948.

saúde. Em seguida, referindo-se à carta do embaixador de 22 de Abril, manifestou surpresa perante a declaração do governo britânico em não compreender a razão de lhe não terem sido comunicados os modos de ver do governo português acerca do projecto de acordo de 18 de Dezembro. Só poderia haver um equívoco, afirmou Salazar, porque, de facto, lhe parecia claro o seu parecer, transmitido ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, de que este projecto de acordo não podia servir de base ou ponto de partida de negociações. Apesar desta posição de princípio, mostrou-se disponível para apresentar a sua interpretação dos pontos do projecto, concluindo que as propostas britânicas apenas pretendiam “pôr as empresas mineiras inglesas de urânio à margem da legislação mineira portuguesa e o Governo não via motivo para a criação desse regime especial”. Por outro lado, o acordo levaria à “alienação de facto da riqueza nacional daquele minério” e a contrapartida para a economia portuguesa resumia- se aos salários dos mineiros portugueses e à cobrança de “taxas ou direitos (moderados, segundo o projecto)” incluindo os da exportação. Recordou, então, a situação de algumas empresas britânicas, que tinham trabalhado com volfrâmio durante a guerra no contexto do regime mineiro, e sugeriu que as dificuldades então surgidas “tivessem inspirado, ao menos parcialmente”, ao governo britânico as actuais propostas. Porém, essas dificuldades e o desconhecimento sobre o real valor do urânio aconselhavam-lhe muita prudência78.

O embaixador ouviu com atenção a exposição de Salazar e admitiu que o acordo intergovernamental proposto pretendia, de facto, um regime de excepção para as minas inglesas, mas havia duas razões para este facto. Por um lado, a exploração das minas e a produção de concentrados de urânio exigiam um grande investimento e sendo o governo britânico a entidade que adiantava a maior parte do dinheiro não podia emprestá-lo sem a garantia da utilização dos concentrados. Por outro lado, desconhecia-se o valor comercial do urânio dado que as previsões técnico-científicas de utilização desta matéria prima como fonte

                                                                                                                         

78 ANTT, AOS (ref. 69), Entrevista com o embaixador de Inglaterra em S. Bento, a 8 Maio 1948, Apontamento de Salazar de 11 Maio 1948, fls. 114-17.

de energia apontavam para um horizonte longínquo. Estas dificuldades inibiam a apresentação de uma proposta ao governo português com compensações visíveis, mas talvez o governo

português pudesse indicar quanto “desejava receber por esta concessão excepcional”

.  

Havia, ainda, a possibilidade de, recorrendo à lei de minas e à lei de nacionalização de capitais79

constituir uma Agência de Vendas Anglo-Portuguesa para o minério ou os concentrados de óxido de urânio. O governo britânico não teria dificuldade em aceitar esta solução. Uma eventual exportação para os EUA também podia ser feita em dólares e a partilha dos proventos seria decidida da forma conveniente. O embaixador afirmou que o seu governo esperava que não fracassasse nas negociações com Portugal e por isso precisava de saber “que compensação ou preço pedíamos, em troca de o Governo Britânico poder utilizar o urânio português”80.

Salazar não se deixou convencer pelos argumentos do embaixador, sublinhando que o assunto era de natureza económica e que deveriam ser salvaguardados os potenciais interesses portugueses que lhe pareciam “sacrificados pela orientação geral do projectado Acordo”. Só havia um caminho, conduzir a solução dentro do quadro da actual legislação mineira. A verificação das necessidades das sociedades mineiras inglesas, para trabalharem economicamente na exploração e produção de concentrados, deveria fornecer a orientação sobre as novas concessões mineiras a autorizar. Além disso, deveriam ser adoptadas regras relativas à exportação “e não adiantei mais nada”. No final do relatório, Salazar anotou que o embaixador apesar de estar nervoso tinha sido absolutamente correcto e lhe tinha parecido sincero. Os seus argumentos estribavam-se em dois pontos: “a inexistência ou

                                                                                                                         

79 A Lei nº 1994, de 13 de Abril de 1943, atribuiu a exploração dos sectores estratégicos da economia do país a empresas de capital maioritariamente português.

desconhecimento do valor comercial do Urânio” e o “valor estratégico do mesmo para a defesa do Ocidente”81.

O embaixador entregou a Salazar uma cópia do projecto do acordo discutido, uma nota com uma cláusula sobre a Companhia Anglo-Portuguesa de Compras e um apontamento sobre os interesses britânicos e portugueses. Esta documentação foi anexada ao relatório da entrevista mas não pareceu a Salazar que acrescentasse algo de importante ao que tinha sido discutido82.

A entrevista concedida por Salazar ao embaixador britânico mudou o rumo das negociações. Com data de 31 de Julho de 1948, um “Apontamento” do Ministério dos Negócios Estrangeiros, aparentemente supervisionado por Salazar, retomava o articulado do relatório de Salazar sobre a entrevista com o embaixador e reafirmava que o projecto de 18 de Dezembro 1947 não podia ser aceite como base de negociação. No entanto, registava-se um avanço. Perante o “grande interesse revelado pelo Governo Britânico” e as “considerações de ordem política e estratégica” invocadas, “o Governo Português não quis deixar de continuar a examinar o assunto” e de procurar “em nova direcção a conciliação satisfatória dos interesses em causa”. Esta nova direcção apontava para uma solução que atendesse às “necessidades reais e razoáveis de uma exploração económica do minério e das exigências mínimas da instalação local da indústria de preparação de concentrados”. Propunha que as empresas britânicas interessadas prestassem todos os esclarecimentos solicitados pelas instâncias oficiais portuguesas que ficariam, então, habilitadas a estabelecer as condições relativamente a concessões e quantidades de minério ou de concentrados a exportar, “dentro do regime jurídico vigente, ou no que fo[sse] necessário em disposição a acordar”. A sugestão do embaixador de uma sociedade mista ou agência de vendas luso-britânica seria assunto para

                                                                                                                          81 Idem, fls. 119-20.

aprofundar de forma a encontrar “solução para a repartição equitativa de benefícios resultantes da exploração e venda do minério”83.

Com a mesma data deste “Apontamento”, Faria escreveu ao embaixador informando-o em linhas gerais sobre o conteúdo do mesmo84. A 9 de Setembro, a embaixada britânica informava o ministro de que o governo britânico concordava com a proposta portuguesa de que “a questão continuasse a ser discutida à luz das reais necessidades do desenvolvimento económico das minas e das instalações necessárias ao estabelecimento de uma indústria local de concentrados”. Além disso, um representante das empresas britânicas já tinha discutido com o director-geral de Minas um programa de desenvolvimento do urânio e de construção de uma instalação para produção de concentrados85.

As negociações internacionais promovidas pelos EUA – o Plano Marshall86 e o Tratado da Aliança Atlântica, já referido – em que Portugal esteve envolvido durante este período, provavelmente, influenciaram a decisão de Salazar relativamente à exportação dos concentrados de urânio, particularmente o North Atlantic Treaty Organization (NATO) que, segundo os argumentos britânicos, ajudaria ao reforço da “defesa do Ocidente”.

Apesar de ter sido encontrada a base de acordo das negociações sobre a exploração e exportação do urânio português, nem por isso estas aceleraram. O processo arrastou-se durante nove meses até ao completo esclarecimento dos seus termos. Ficou finalmente estabelecido, a 11 de Julho de 1949, por troca de cartas entre o embaixador britânico, Nigel Ronald e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Caeiro da Mata. Nestas cartas, ambos

                                                                                                                         

83 Idem, Apontamento, 31 Julho 1948, fls. 131-134.

84 Idem, António de Faria a Nigel Ronald, 31 Julho 1948, fls. 141-143.

85 Idem, C. N. Stirling, British Embassy a José Caeiro da Mata, 9 Setembro 1948, fls. 150-51.

86 A 4 de Julho de 1947, Portugal foi convidado formalmente a participar na Conferência Económica para a organização do Plano Marshall pelos representantes da França e do Reino Unido em Portugal, tendo então argumentado que não carecia dos créditos americanos. O seu objectivo era adquirir equipamentos industriais e oferecer em troca os seus produtos aos países fornecedores desses equipamentos. Porém, a 27 de Setembro de 1948, Portugal anunciou informalmente a intenção de recorrer ao auxílio Marshall, devido à deterioração da situação financeira e cambial do país. Chegado tardiamente, Portugal só pode ser beneficiário a partir do segundo ano do exercício da ajuda, 1949/1950, mas também voltou novamente à posição de não beneficiário no último ano do exercício, de 1951/1952. Ver Rollo, Portugal e o Plano Marshall (ref. 1).

concordaram com “a exportação para o Reino Unido de 100 toneladas anuais de óxido de urânio (U3O8), sob a forma de concentrados a 25% aproximadamente, pelo período de 7 anos,

de 1 de Janeiro de 1951 até 31 de Dezembro de 1957”. O governo britânico comprometia-se a completar a instalação de uma unidade de produção de concentrados até 31 de Dezembro de 1950. De acordo com o parágrafo 6, o governo português comprometia-se a tomar “as providências necessárias para manter secretas as quantidades exportadas de minério ou concentrados e em particular o teor dos concentrados”87.

Em Agosto de 1949, numa nota para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Salazar dava instruções sobre a condução política, no caso de consulta relativamente à exportação de urânio. Lembrava que a política portuguesa tinha sido de “acautelar as existências daquele minério para o caso de ele vir a ser um elemento valioso da economia nacional”. Reconhecia que o minério tinha sido vendido ao governo britânico em condições financeiras desfavoráveis, “ao preço de custo” (sublinhado no original), mas “razões de ordem política e estratégica invocadas por um governo aliado” justificavam-no. No futuro deveriam ser evitadas essas condições não sendo de “excluir a priori as competições dos compradores”. Devia ser observado o compromisso de não permitir exportações para países com interesses contrários aos da aliança luso-britânica, mas a França era um caso particular. O facto de Joliot, o alto comissário do Commissariat à l’Énergie Atomique, ser comunista exigia cuidados com os pedidos de licenças franceses. Embora a França estivesse na disposição de pagar preços elevados, no caso de pedidos numerosos as concessões deviam ser retardadas, de modo a dar aos vendedores a oportunidade de preferirem o mercado americano. Salazar considerava o mercado americano “política e economicamente o preferível” porque pagavam em dólares mas deviam ser acautelados os preços demasiado baixos, enquanto não houvesse

                                                                                                                         

87 MNE-AHD (ref. 67), pasta I-8, Caeiro da Mata ao Embaixador e Nigel Ronald ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, ambas de 11 Julho 1949.

mercado comercial para o urânio88. Estas directrizes foram radicalmente alteradas em 23 de Junho de 1950 (subsecção 2.3.4).