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Capítulo 1 A Física experimental no começo da Guerra Fria, 1947-1952 13

1.5 Um olhar sobre o advento da energia nuclear em Portugal 64

Em 1945, Gibert encontrava-se em Zurique, a preparar o doutoramento em Física Nuclear, no Physikalisches Institut da Eidgenössische Technischen Hochschule (ETH). Impressionou-o a actividade desencadeada, na sequência do lançamento das bombas atómicas sobre o Japão, em Agosto de 1945. Neste Instituto havia dois grupos de investigadores, sendo o mais numeroso e o mais bem equipado o que se dedicava à Física Nuclear, dispondo de um ciclotrão e de vários aceleradores. Toda a actividade corrente foi suspensa durante quinze dias para, sob a forma de colóquios, discutir o problema físico que a explosão das bombas trazia para primeiro plano163. Os acontecimentos do final da guerra e a formação ligada à tecnologia avançada moldaram a sua visão do mundo. O seu país parecia-lhe parado no tempo e ele mais do que ninguém sentia-se preparado para intervir.

O trabalho intitulado “Aproveitamento da Energia Atómica”164, foi publicado no início de 1947, mas havia sido escrito quando se encontrava em Zurique, já no final do doutoramento, em 1946. Na sua correspondência com Palacios, que se encontrava em Madrid, em Janeiro de 1946, Gibert informava estar recolhendo informação sobre as aplicações da energia atómica, tanto industriais como bélicas, com vista à publicação de um artigo de

                                                                                                                         

163 Armando Gibert, “Localização do Problema da energia atómica – Simpósio sobre Energia Atómica”, Bol. Ord. Eng. 3 (7) (1954): 28-32.

164 Armando Gibert, “Aproveitamento da Energia Atómica”, Técnica – Revista de Engenharia dos alunos do I.S.T. (1947), separata.

divulgação, tanto em Portugal como numa revista de Madrid165. Este artigo sobre o aproveitamento da energia atómica e as suas bases físicas utilizava como principais fontes o “livro do Smyth e o que ouvi em duas conferências, uma do Prof. Scherrer166, outra do Prof. Joliot”167. Ao mesmo tempo Gibert escrevia a Manuel Coelho Mendes Rocha168 (1913-1981), engenheiro civil, ex-bolseiro do IAC em Zurique no tempo de Gibert, para intervir junto da

Técnica, Revista dos estudantes do Instituto Superior Técnico, com vista à publicação do seu

artigo em Portugal169.

Gibert dividiu a sua exposição em seis partes: “Introdução”, (conhecimentos gerais de Física Nuclear), “Cisão do urânio”, “Separação do urânio-235”, “Máquina atómica”, “Bombas atómicas” e “Perspectivas de futuro”. A última parte é a mais interessante porque mostra o seu entusiasmo pelo aproveitamento industrial da energia atómica, quando este ainda se encontrava na infância do seu desenvolvimento170.

No seu entender, era o aproveitamento industrial que suscitava “o interesse de toda a humanidade consciente”, independentemente do carácter agressivo desta energia. Considerava este problema realmente merecedor da atenção que tantos países lhe estavam concedendo e apresentava dados sobre as designadas “máquinas atómicas”, os reactores nucleares. Além disso, argumentava sobre as “imensas possibilidades abertas pela nova fonte de energia, inesgotável e ilimitada” que obrigaria à “revisão e alargamento de todos os planos de industrialização a longo prazo em curso de realização”. No final, em jeito de conclusão, Gibert interrogava “Qual a posição de Portugal relativamente ao problema da energia

atómica?” Na sua reposta enumerava as vantagens e as desvantagens. As desvantagens eram                                                                                                                          

165 AHMUL, MUHNAC (ref. 99), pasta 2866, Correspondência recebida e expedida, Gibert a Palacios, 19 Janeiro 1946. Não foi encontrada informação sobre a publicação do artigo em Espanha.

166 Paul Scherrer foi o supervisor da tese de Gibert, titulada “Effet de la température sur la diffusion neutron-proton”, defendida em 1946.

167 Gibert a Palacios, 10 Fevereiro 1946 (ref. 165).

168 Manuel Rocha deixou o seu nome associado à fundação do Laboratório de Engenharia Civil, em 1946, e à sua direcção de 1954 a 1974.

169 Gibert a Manuel Rocha, 10 Fevereiro 1946 (ref. 165). 170 Gibert, “Aproveitamento da Energia Atómica” (ref. 164).

grandes. Não havia técnicos, físicos ou químicos qualificados e faltavam laboratórios de investigação. As indústrias química e metalúrgica não estavam suficientemente desenvolvidas, nada se podendo esperar do grande capital privado e pouco mais do apoio do Estado para uma mudança da situação. A compreensão dos cidadãos sobre a importância deste problema era ainda a falha mais grave. Do lado das vantagens o factor mais importante era a existência de minas de urânio em Portugal e o potencial de formação representado por físicos, técnicos e engenheiros. Além disso, podia contar-se com uma estrutura nacional de apoio, como o Instituto para a Alta Cultura, as Faculdades de Ciências, de Medicina e Farmácia, os Ministérios das Obras Públicas, das Colónias e da Guerra. Gibert apelava aos engenheiros como “os indivíduos capazes de compreender, imediatamente, a importância e urgência do problema, além da escassa dúzia de físicos” e terminava com um projecto a 20 anos, faseado em períodos de cinco anos para implementar a montagem de duas ou três grandes máquinas atómicas171.

O entusiasmo de Gibert pela energia nuclear manteve-se ao longo do tempo e atingiu o auge em meados da década de 1950. O seu projecto principal foi a constituição da empresa Companhia Portuguesa de Indústrias Nucleares (CPIN), que apesar do forte apoio da iniciativa privada desapareceu em 1964, sem atingir os objectivos a que se propôs (sub secção 3.6.2).

Em Setembro de 1947, já após a demissão da Faculdade de Ciências, Valadares dava uma entrevista, ao Diário de Lisboa, motivada por um anúncio relatando que os Estados Unidos da América e o Canadá estariam em condições de exportar radioisótopos e que Portugal tinha mostrado interesse na sua aquisição. Ao abordar a natureza dos radioisótopos, Valadares explicava o interesse da investigação médica na sua produção e a necessidade desta ser apoiada de forma a tornar possível quantidades mais substanciais e a preço mais reduzido.

                                                                                                                          171 Idem, pp. 14-16.

Os aceleradores de partículas tinham sido, inicialmente, desenvolvidos com este objectivo e, no início da guerra, foi financiado o grande ciclotrão de Berkeley. Segundo Valadares, Portugal também se poderia dedicar à produção de radioisótopos para fins terapêuticos e como marcadores radioactivos. Com esse intuito, o Laboratório de Física havia proposto que fosse adquirido um acelerador de partículas, em 1940, no âmbito das comemorações centenárias. A entrevista terminava com uma referência ao urânio, abundante no subsolo português. Valadares defendia então a construção de “uma pilha de urânio”, a qual poderia contribuir para modificar completamente a economia portuguesa. Poderíamos, afirmava, ser um dos primeiros países da Europa a utilizar a energia atómica, “acabando com o conceito tão discutível de que somos uma nação pobre”172.

Também a Gazeta de Física, de Outubro de 1947, informava, em duas breves notas, sobre “A primeira pilha atómica francesa” e “Os prospectores de urânio em França”. Quanto à primeira, a pilha atómica francesa, a sua instalação provisória decorria no forte Châtillon e na Fábrica de Pólvora de Bouchet. A sua potência era reduzida, destinada fundamentalmente à produção de radioisótopos para substituírem o rádio em Medicina e em Biologia, e previa-se que entrasse em funcionamento antes do fim de 1948. Esta nota também informava que a investigação em França sobre a energia nuclear era dirigida pelo Alto Comissariado da Energia Atómica, da responsabilidade de Frédéric Joliot (1900-1958). Na outra nota, informava sobre a prospecção de jazigos de urânio e outros metais radíferos conduzida por 64 prospectores. A purificação do urânio ocupava uma parte importante dos trabalhos em curso173.

Em Novembro de 1947, Quirino José Salgueiro Machado, engenheiro de minas do Porto, concedeu uma entrevista a um jornalista e ex-aluno que a publicou, em dias diferentes,

                                                                                                                         

172 S.A., “A propósito da importação de isótopos radioactivos. Justifica-se a construção de uma pilha de urânio em Portugal, afirma-nos o dr. Manuel Valadares” Diário de Lisboa, 6 Setembro 1947.

173 X.B., Noticiário, “A primeira pilha atómica francesa”, “Os prospectores de urânio em França”, Gazeta de Física, 1 (5) (1947): 157.

na Gazeta dos Caminhos de Ferro e no jornal Diário Popular. Entretanto a revista Vida

Mundial de 6 de Dezembro transcreveu um artigo publicado em La Vanguardia Española

titulado “Em Portugal há urânio, muito urânio” com afirmações que foram corrigidas por Quirino Machado na edição da Vida Mundial da semana seguinte. Essencialmente as suas declarações limitavam-se a contabilizar 110 concessões de jazigos de urânio com dezenas de anos, a referir a preparação e concentração do minério da mina da Urgeiriça e defender que “urgia encarar e estudar em Portugal o problema do urânio”, mobilizando cientistas e técnicos, de minas e de química174. No mínimo, o que se pode concluir é que este artigo teve grande publicidade.

Em 1948, realizou-se o 2º Congresso Nacional de Engenharia, ao qual Quirino Machado apresentou uma tese sobre o urânio na perspectiva de uma nova matéria prima com grandes possibilidades de revolucionar a técnica industrial. Trata-se de um estudo de natureza técnica e histórica. O primeiro capítulo incide sobre a composição química dos diferentes minérios, génese de diversos jazigos de urânio e ocorrência em diversos locais do globo. Um estudo mais detalhado é dedicado aos “Jazigos portugueses de urânio” que termina indicando a localização dos principais jazigos, nos concelhos de “Aguiar da Beira, Nelas, Mangualde, Celorico da Beira, Guarda Sabugal e Belmonte”175. Os capítulos seguintes abordam outros

temas de natureza técnica e histórica incluindo as aplicações bélicas e industriais da fissão nuclear176. Os dois últimos capítulos referem-se novamente a Portugal. A “Resenha histórica da exploração dos jazigos portugueses de Urânio e Rádio” informa sobre a exploração do urânio para extracção de rádio, de 1907 a 1939. Em 1911, foi instalada uma oficina de concentração do minério na mina do Barracão, tendo sido exportados concentrados de minério

                                                                                                                         

174 MNE-AHD, Relações com a Inglaterra respeitantes aos acordos relativos ao Urânio, 2º P., Arm. 52, M. 128, pasta I-1. Vida Mundial, “Em Portugal há urânio, muito urânio”, 13 Dezembro 1947. Ver também Diário Popular, “Urânio e Rádio: Grandes riquezas nacionais, depõe um engenheiro de minas”, 19 Novembro 1947.

175 Machado, O Urânio Português (ref. 8), pp. 15-22. 176 Idem, pp. 23-54.

e óxido de minério para França. Desde 1914 e até 1923, Portugal passou a exportar minério com de óxido de urânio, de concentração entre 0,5% e 1%. Entre 1923 e 1932, a exportação praticamente desapareceu com a entrada no mercado do rádio congolês. De 1932 a 1939, a exploração da mina da Urgeiriça, concessionada à Companhia Portuguesa de Radium Ldª., foi activada “e com uma oficina judiciosamente instalada sob a proficiente direcção e orientação do conhecido técnico Manoel Cardoso Pinto”, foi possível vencer a concorrência congolesa e canadiana. A guerra e a entrada no mercado do urânio canadiano paralisaram novamente a exploração177. O último capítulo “Portugal perante a energia atómica e as suas possíveis aplicações” analisa o caso português “perante as possibilidades de utilização da energia atómica”178. Neste capítulo Quirino Machado desenvolveu o tema, enunciado na introdução do trabalho, sobre a existência de jazigos de urânio nas províncias graníticas do norte que tornavam Portugal senhor de uma matéria prima que muitas nações cobiçavam, pretendendo chamar a atenção para “este magno assunto que consideramos primário de Fomento Nacional”179. Este trabalho pode ter sido influenciado pela publicação de Gibert, acima referida, na Técnica de 1947.

O estudo de 1950, de Alberto Cerveira, engenheiro de minas da Universidade do Porto e primeiro assistente da Faculdade de Engenharia do Porto, tem poucas semelhanças com o de Quirino Machado, pois o conteúdo é quase exclusivamente técnico e o seu pendor é marcadamente académico. Ao contrário de Quirino Machado, utilizou referências com abundância, incluindo este autor. Na conclusão considerou que o minério português não possuía um elevado teor de urânio, no entanto, os jazigos eram susceptíveis “de constituir um conjunto de grande valor económico” tanto pelo elevado número e reservas como pelo valor que o urânio revestia. Na sua opinião, a política que vinha a ser seguida não acautelava os interesses do país e por isso defendia uma política nacional do urânio que valorizasse os

                                                                                                                          177 Idem, pp. 61-66

178 Idem, pp. 67-74. 179 Idem, pp. 6-7.

jazigos uraníferos. A economia nacional deveria tirar partido da fonte de riqueza oferecida pela natureza, para que Portugal se tornasse um grande produtor de urânio. Não deveria também ser desperdiçada a oportunidade de utilizar a energia atómica nas suas aplicações à indústria180.

A posse do urânio revelava-se, para esta elite de físicos e engenheiros, uma esperança de desenvolvimento científico-tecnológico. As centrais nucleares representavam não só um via para a autarcia energética, como também um forte impulso para o desenvolvimento económico do país devido às indústrias química e metalúrgica que deveriam ser instaladas a montante e a jusante das centrais nucleares e que, de acordo com Gibert, necessitavam de ser estimuladas.

No dia 9 de Março de 1950, a energia atómica foi alvo de uma intervenção na Assembleia Nacional pelo deputado Américo Cortês Pinto, no período “Antes da Ordem do Dia”. O seu objectivo era chamar a atenção do governo para os problemas da energia atómica e propor uma comissão que se dedicasse ao seu estudo. Considerava que a energia atómica não se resumia ao fabrico de bombas destrutivas, defendendo que se um país não tivesse a possibilidade de fabricar bombas teria, contudo, de tomar providências para proteger as vidas e a saúde dos seus cidadãos, bem como tratar as vítimas de uma agressão atómica. Neste domínio, deveria usar-se o conhecimento científico na preparação dos meios de acção. A energia atómica também revestia grande importância no campo da medicina, da indústria e da agricultura interessando, ainda, às Ciências Biológicas e Físicas. Os radioisótopos, tanto na investigação como na utilização principalmente em medicina, ocuparam uma parte importante do seu discurso181.

A defesa do aproveitamento dos recursos uraníferos para o desenvolvimento científico e tecnológico do país, por físicos e engenheiros, tem como pano de fundo “o entusiasmo

                                                                                                                         

180 Alberto Cerveira, Sobre a Metalogenia do Urânio (ref. 8), p. 43.

público inspirado pelo ‘mito do átomo’ e o potencial da potência nuclear”182. De facto, não foram encontrados estudos de economistas que fundamentassem a criação de centrais nucleares defendida por físicos e engenheiros portugueses. Como veremos no capítulo seguinte, Salazar optou por guardar o urânio para a exportação num futuro longínquo, que parece atender a factores realistas de natureza económica.